É veterinária e tem uma clínica. Afoga as suas mágoas e vozes dos monstros internos, não se permitindo tempo a sós consigo mesma. Como outros afogam o desespero com canecas de cerveja na tasca, ela envolve-se de gente com quem lida como se coleccionasse pessoas. Não se permite ser ‘fraca’, e por fraca entende ser toda e qualquer pessoa que faz sofrer os outros e que não é independente. Tem um rosto bonito, e olhos esverdeados, que fotografados são colocados como foto de perfil nas redes sociais. Tal como o cabelo castanho descolorado a louro palha, tenta assim elevar-se acima da entediante multidão de morenas. Gente bonita e diferente recebe tratamento diferenciado na aldeia dos macacos. Contava-me da sua temporada em Sutton, e eu não estava na melhor das disposições para engate, e só me apetecia falar de Sutton-Ho e de navios afundados. Tentava esconder com excesso de normalidade, o facto de ambos os pais dos seus recentes filhos, a terem trocado por outras. Um, segundo ela, nem lhe fala. Ficou ofendida quando lhe disse que é estranho um homem abandonar assim os filhos, quanto mais dois. Pode dar-se o caso de ser uma mulher demasiado boa, no sentido de previsível, vanilla, PG13, o que lhe quiseres chamar. Essas de facto, também têm azar nisso. Como dizia Kant, se não tiveres uma pitada de maldade… Passou ao ataque dizendo-me que os homens evitam relações e não sei quê. E eu disse-lhe «-Joana, até te posso dar toda a razão no mundo, mas responde-me primeiro a isto, quem os escolheu?» Corou, calou-se, ficou a olhar para o chão, aproveitando para olhar para os meus sapatos e aferir se são da boutique cigano, ou comprados na Linha. Como não respondia, voltei à carga, «-Segundo a Lei de Briffault, é a fêmea que determina todas as condições da família. De onde a fêmea não pode retirar benefícios com a associação a determinado macho, essa associação não ocorre. Portanto, se tu escolheste os pais dos teus filhos, foste parte activa e responsável. Não tens legitimidade para agora passares o ónus para eles.» «-Olha, eu não vim para aqui para ser insultada, nem julgada, muito menos por ti.» Prepara-se para sair, agarro-lhe na mão e prometo que mudo o discurso. Que fique, que a compensarei. Percebi nesta altura, que me havia feito o raio x, e que decidira nos primeiros cinco minutos da interacção, que não iria foder comigo. Confirmando a lei de Briffault, com uma complexa equação de custo benefício, muito simplesmente não estava para lidar com alguém que lhe forçasse o espelho da lógica em frente ao rosto. Estava fodida, porque me havia dito ao telefone que não acreditava no amor, e, portanto, agora não podia usar a carta da paixão para desculpar as suas escolhas, só lhe restaria portanto, justifica-las a partir de a) a vida é assim, e não há problema nenhum e b) o que é preciso é olhar para a frente e sempre de forma positiva, pois quem nos fez mal é que tem um problema. Optei por meter o dedo no segundo ponto, pois é um que me faz achar as pessoas imbecis, além de que conheço todos os ângulos do primeiro. Finjo uma postura amena e passiva, e deixo-a falar o que quer, analiso as palavras que utiliza mais vezes, a forma como encara e formula erros e acções, e remato com uma pergunta inesperada: «-Achas mesmo que forçar fora da vida e consciência todas as experiências, pensamentos e pessoas ‘negativas’, é o caminho para uma vida de felicidade?» «-Ah, sem dúvida, sem sombra de dúvida. Estamos cá para ser felizes, e não tenho paciência para pessoas negativas, derrotistas e amargas.» «-Então divides o mundo entre pessoas positivas e negativas?» «-Epá, toda a gente tem más experiências e lida com isso sem infernizar a vida aos outros, passando por osmose as más energias. Eu trago-me a mim para cima, não preciso que os outros me afundem no poço fétido do seu sofrimento.» «-Certo, concordo, mas diz-me uma coisa, se concordas que a vida é sofrimento, e que todos sofremos, onde acaba a tua responsabilidade perante o outro? Uma vez que disseste que purgas da tua vida todas as pessoas negativas, e dizes que gostas de pessoas, então a questão que se coloca é se as pessoas que gostas são as que como tu limitam ou tentam limitar o espectro emocional com que subsistem na existência, e se só gostas ou tens empatia pelos positivos.» O bufar e ar de enfado na sua cara revelavam que ou estava prestes a levantar-se e ir-se embora, ou a usar-me como confirmação da sua ideologia da treta, encaixando-me nos negativos, pior, nos negativos chatos que nos perguntam coisas parvas. E eu fui-lhe contando para não levar a mal, é uma moda, no verdadeiro sentido da palavra, e que apenas os animais de manada aderem a ela. Que conheço muitos gajos que metem fotos com frases motivacionais nas redes sociais, e paisagens bonitas e bons sentimentos propagandeados como um bom xarope trasvestido de óleo de cobra. Que conheço inclusivamente um, que com boas frases e expressões públicas desta nova religião do positivismo, engatou pelo menos uma gaja, ainda mais tolita que ele. «-Então mas tu achas que temos todos de andar aí com cara de tragédia a olhar para o chão e a chorar pelos cantos por causa das agruras da vida?» «-Não, claro que não. Acho que a vida é para ser celebrada, mas essa militância do positivo, além de ser uma moda, divide o mundo em preto e branco, e se as gajas já andam todas baralhadas da cabeça e dos critérios de avaliação das coisas e das pessoas, essa diferenciação em dois tons apenas piora. É uma lavagem cerebral que cada um faz a si mesmo de modo a sentir que tem tudo controlado. Que é aliás a tua intenção.» «-Minha intenção?» «-Sim, tua intenção. Quando me convidaste para vir tomar café, e me contaste logo de início que apenas tinhas um dia livre para teres um relacionamento, sem que eu perguntasse algo, estavas a dizer-me uma regra. Queres um fuckbuddy, ou seja, alguém que podes usar para trocar intimidade, sem envolvimento emocional, que esgotaste nos teus parceiros anteriores. A outra regra, implícita, é que esse potencial parceiro de cavacadas, estará, portanto, sempre em quarto ou quinto lugar na tua escala de prioridades, primeiro os teus filhos e família e tu, em segundo o teu gato, terceiro a tua profissão, quarto os teus amigos. Para quem gosta tanto de pessoas como gostas de afirmar, só gostas de positivos e de que se deixem usar, ou no mínimo te façam sentir bem contigo mesma com elogios e poemas escritos no pára-brisas do teu carro quando te levantas de manhã para ir para o trabalho. O que me interessa perceber, nem é se acreditas no que dizes, pois sei que acreditas profundamente, precisas de acreditar. As maiores cabras precisam de acreditar que são boazinhas, especialmente no grupo de amigas que em relações de codependência, colaboram e cooperam para manter estruturas hierárquicas. Mostrando que são desejáveis, manipulando o desejo dos pretendentes como se fossem uma matéria-prima como outra qualquer. Gabando-se umas às outras para se sentirem acima dos homens, mas mostrando, como cromos as constantes conquistas, e a que saca o homem mais ‘valioso’, ou os mais atraentes e desejáveis, sobe na hierarquia do grupo. Curioso como de forma feminista advogam a igualdade, a destruição de hierarquias, apenas para se manterem nestes joguinhos hierárquicos. Existe competição num grupo de mulheres, não é só cooperação.» Este meu solilóquio já a apanhou de costas pois levantara-se e fora-se embora. Pago o café e vou atrás dela dizendo espera aí, não me digas que já não há sexo. Virou-se para trás para me bater, mas quando me viu a rir, percebeu que eu estava literalmente a gozar com ela. Espera aí Joana. «-Quem pensas que és para fazeres juízos sobre mim?» «-Sou um negativo, sou um daqueles que tu avalias como não merecedores da tua atenção ou de fazerem parte da tua vida. Pensei que se tu podias fazer juízos, eu também os podia fazer. É uma questão de igualdade.» Ao dizer ‘igualdade’ não consegui conter a gargalhada. «-Tu vais morrer sozinho.» «-Todos morremos sozinhos, mesmo que morramos numa hecatombe pública, nunca outro exala o último suspiro por nós. E antes sozinho que tua marioneta, que é o que acontece quando algum indivíduo se sujeita às tuas condições, é que ser positivo e não levantar ondas, é só mais uma forma de condicionares o comportamento do potencial fuckbuddy. Tu não queres mais um relacionamento, esgotaste-os no passado. O que tu queres é um adereço. Queres alguém que não te fure a bolha de ilusão que compões para ti mesma, de forma a não teres de pensar. Repara que até disseste que para ti, as pessoas não devem ser espontâneas e não dizer o que pensam porque podem magoar os outros. O que tu queres não é uma pessoa, mas um electrodoméstico. Estranho, gostares de pessoas...» Ela continuava parada em frente a mim, em frente à Zara do Louresshopping, não porque a conversa fosse a algum lado, mas porque estava ressabiada, e tinha de levar a melhor sobre mim, ou seja, tinha de ganhar a discussão (que ganham sempre que viram as costas e vão embora como ela fez) ou ridicularizar-me, quebrar-me. Era a intenção dela. Esqueci-me de lhe perguntar se querer humilhar alguém, ou ostracizar outrem que tem opinião diferente, é ser positivo, gostar de pessoas, ou não magoar as outras pessoas. O fácil destes crentes do positivo, é a estupidez de como se deixam encurralar. É só jajão, são só frases bonitas para se sentirem bem. Por isso detestam o exercício racional. E os que repetem frases positivas e motivacionais, são os mesmos que caso a moda fosse niilística, passariam o tempo a citar epitáfios no Instagram, para impressionar as cachopas. «-Joana, não é preciso olhar para as coisas como se fossem uma tragédia constante. Isso é o preto com que pintas a tua divisão infantil do mundo e das coisas a preto e branco. Ter a noção do carácter agónico do mundo, isso sim, é algo útil para valorizar a vida que temos, e os outros, que são pobres diabos como nós.» Ela já não queria ouvir nada, e ao despedirmo-nos no parque de estacionamento, ainda fez um compasso de espera a ver para que carro eu me dirigia. Esta malta positiva é perigosa. Gostam de um mundo melhor, onde podem queimar os negativos nos fornos de gás das suas certezas absolutas. Movie VHS (2012) all rights reserved - Fair use
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Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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