As gotas cada vez mais grossas vindas do céu morrem no pára-brisas que antecede um cinzento tom no horizonte. Venho da casa da Sofia, e num semáforo que há ali para os lados de Telheiras, noto além do vermelho que me faz parar, que um pintelho está preso num interstício dos meus dentes, só se deixando perceber à passagem da língua. Coisa arriscada fazer minetes nos tempos que correm, onde as mulheres fodem por desporto e emancipação. Só falta usarem mangas de alpaca e fumar charutos, e a completa osmose dos trejeitos masculinos será completa. Chama-se isto ‘emancipação.’ E no entanto castigam-se os putos na escola, se copiam pelos colegas. As trombas de água que Novembro traz, provocam estes engarrafamentos, bicas de água que brotam do solo lisboeta, e taxistas que saem das viaturas para ensaiar óperas de pugilato com os restantes condutores com quem se envolveram previamente num duelo verbal. Enrolam-se os dois, caem na poça de água na berma, enlameando-se, os outros primatas observam na esperança de ver sangue ou só dois seres humanos descendo baixo na escala da dignidade, o que os faz sentir elevados na estratosfera moral. Levantam-se e trocando sopapos e desequilíbrios que os estatelam no solo, algures esbarram no meu carro, trazendo a atenção da plateia para mim, para a minha potencial reacção. No momento em que tento com uma senha de parqueamento, retirar a pilosidade do meu maxilar superior. Mais do que a tromba de água judicativa de todos aqueles que na minha cabeça penso julgando-me, o porco palitando os dentes sem modos, preocupa-me a ideia idiota de que não tinha problemas em dar prazer oral a mulheres de vinte anos, mas que agora, espera lá, por mais asseadas que sejam as trintonas e quarentonas, não beijo casa de outros. Mais que a filosofia do minete, estava perplexo com uma alteração de comportamento em mim, que era instintiva, completamente alheada do meu controlo. Interrompe-me o toque do meu telefone. Era Pedro. Telefonema muito estranho, dizendo-me que gostava muito de mim, e que me queria ver. Ok, combinemos. Quando estamos na fase de despedida para terminar a chamada, desata a chorar do outro lado e pergunta-me em desespero: «-João, ela vai voltar? Achas que ela vai voltar?» «-Não Pedro, ela não vai voltar.» Os soluços do outro lado acordaram-me para a minha falta de tacto, dizendo a verdade sem pensar na consequência da mesma, esvaziar o outro de esperança. «-Pedro, já te disse para te deixares disso.» - debalde, estupidez da minha parte, como se ele pudesse. A tipa violou-o com a sua ausência e eu para aqui a dizer para ele não ligar à violação, numa variante de sê um homenzinho. «-Já te disse para pensares, se ela voltasse a aceitarias de volta. Como já falámos, ela não era o que pensavas e os últimos meses não foram uma afecção de espírito, o ‘andar com a cabeça no ar’ como o povo diz. Os últimos meses foram a expressão do que ela realmente é. Quando perdes o valor de tal forma que já nem ache que mereças que ela finja, ela revela-se. Podem fingir anos. Mesmo que revelem os óculos do amor não te permitem ver defeitos. Diz-me, queres aceitar de volta quem te tratou assim?» «-Não…» - responde ele com um suspiro bem pesado e bastantes momentos de avaliação do que eu dissera. «-Então, não gastes energia mental nessa imbecil. Não teve o mínimo respeito por ti, pensares nela apenas é perder tempo com alguém que não merece isso de ti. Eu sei que dói, já passei por isso. Mas dói cada vez menos, todos os dias, até que um dia sem dares por isso, deixa de doer, e começas a sentir falta da dor que sentias, por ter durado tanto e desaparecida, só te lembrar a contingência do devir da atracção e da repulsão.» «-Que raio lhe fiz eu para ela proceder assim comigo?» «-Essa pergunta não é útil para ti, Pedro. As pessoas querem viver o melhor possível no curto espaço de tempo em que estamos vivos. As mulheres têm uma curta janela de poder sobre os homens, e uma longa velhice para se sentirem desapossadas. Descartou-te porque te perdeu completamente o respeito e não te respeitando não te pode amar. Apareceu algo que lhe pareceu melhor e a vida é curta e ela não fica mais nova. Já nada tinha a perder contigo, e arriscou no outro passar para uma liana mais elevada. Se correr mal pode ser lamuriar-se às amigas e familiares que seguiu apenas o «amor» . E como o que a mulher odeia mais a responsabilidade que Maomé a entremeada, confirmação umas com as outras e umas para as outras, que de facto o «amor», essa energia ou força invisível, é a causa última das suas tomadas de decisão.» «-Não valho nada, mesmo, não é.» - o meu discurso não edificara, tentando eu passar a ideia de concatenamento lógico, o indivíduo preso demasiado próprio do seu ego apenas via que aquilo que eu dizia confirmava a justeza do abandono e não a crítica a um conjunto de ideias Disney. «-Que merda de conversa é essa, então depois do que te tenho dito é essa a conclusão que tiras? Que o teu valor próprio está dependente das decisões e apreciações de outro?» Silêncio do outro lado da linha, agora era eu que reagia demasiado próximo do meu ego. «-Eu sei que pareço tão bruto como um ortopedista a lidar sem anestesia com a tua fractura exposta do fémur. Na dor dos outros somos turistas. Mas tu precisas de uma sacudidela nesse poço de negrume em que estás. Vais macerar-te ad aeternum com a ideia de que devias ter feito algo. Devias, mas não era agora no fim.» «-Então?» «-Lembras-te do casamento do Marques?» «-Sim…» «-Em que eu levei uma tipa que andava a comer na altura e passaram o tempo todo, os casais naquela mesa, a defender as virtudes do casamento burguês e o mito da alma gémea?» «-Sim, lembro bem, a mulher do Porfírio estava vermelha de ódio contigo, por defenderes que as mulheres amam oportunisticamente e os homens idealmente. Teve de vir o pai da noiva pedir para falarem mais baixo.» «-Essa gaja seguiu-me até à casa de banho quando fui mijar, entrou e agarrou-me na tomateira e disse-me que me queria chupar todo. Por isso saí da casa de banho a correr e atravessei o salão de danças em passo acelerado.» «-Eu lembro-me disso! Vinhas vermelho e a gente até gozou que tinhas ido depositar o mexilhão das entradas. A sério?! Porra, quem diria, essa gaja com cara de quem é séria e moralista…» «-Esta conversa não sai daqui.» «-Claro, o Porfírio é um gajo porreiro, porra.» «-É e não vai deixar de ser, até ao dia que descobrir que a mulher não é quem ele pensa. Adiante. Lembras-te da tua postura?» «-Não…» «-Estavas com uma postura confiante, e também tu tentaste rebater a minha argumentação. O teu motivo de confiança na altura era teres uma gaja ao lado, um totem externo que assinala ao mundo e aos outros o teu valor intrínseco, do tipo, sou amável porque esta gaja me ama. Venci a batalha genética, portanto algo estou a fazer de bem.» «-Sim, lembro-me, na altura disseste o mesmo.» «-Era nessa altura que devias ter percebido, que a tua relação não avançaria para lado nenhum. Porque tu próprio te anulaste para fugir ao abismo.» «-Sim.» «-Disse-te o mesmo, quando andaste aluado com aquela tua aluna, que vestia toda de cabedal, e que gostava de Aerosmith. Disse-te que se ela se comprometesse a dar-te acesso às gónadas em base regular, largarias a tua ex em 2 tempos. Quando te descartou, desculpaste-te com a ideia de que tinhas muito investido numa relação que era mais importante que uma relação passageira. Lembro-te isto apenas para que vejas que aquilo que agora te parece absoluto, parece-o porque os teus sentimentos estão a levar a melhor sobre ti. Racionalmente a situação é até risível.» «-É risível porque não é contigo.» «-Não, é risível, pela forma como ela meteu as mãos pelos pés, como alguém se deixa aviltar assim no tratamento com outros. Ou achas que no seu íntimo ela não sabe que só faz merda com os homens, elas sabem. Nenhum bando de amigas adúlteras lixiviará isso. Em bom português, as cabras sabem que são cabras, por mais naperons rosados que ponham por cima da canalhice. É a vida Pedro, uma triste anedota, que perde o tom assustador se nos rirmos dela.» «-Tens razão.» A voz dele parecia-me mais animada. Fiquei orgulhoso de mim por minha verborreia, ainda que pensada, servir para aliviar o sofrimento de outro. «-E tu que andas a fazer?» perguntou-me ele. «-Estou a sair da casa de uma tipa.» «-Como não podia deixar de ser, não mudas!» Como sempre gosto de contar os pormenores quer da sedução quer do contexto, para que os meus amigos possam discorrer comigo sobre a anedota que o mundo é. «-Metia-me com ela, dizia-lhe bom dia e sorria-lhe, mas sem nada ter como intenção oculta, estás a ver. Achava-lhe piada ao espírito e metia-me com ela, provocava-la, porque a sua reacção me divertia. Postava-lhe memes engraçados no livro das caras, e esse tipo de merdas, e ela deve ter começado a achar que eu queria alguma coisa. Tal como elas pensam sempre que um gajo as aborda, tem sempre segundas intenções, caguei para isso. Convencida deixou de me dar troco e até passou a evitar-me. Eu percebi e ignorei. Acho que numa altura em que estava vulnerável, voltou a meter-se comigo, e eu educadamente respondi. Tinha terminado com o namorado e nada como emoções presentes para abafar as passadas e eu deixei-me ir na coisa.» «-És incorrigível.» - a frase curta demonstra que ele não estava minimamente interessado na minha elaborada ruminação, e portanto não insisti. «-Sabes, és um bom amigo e tens sempre estado cá para mim.» «-Foda-se Pedro, não gosto quando falas assim. É abichanado e parece que te estás a despedir ou o raio.» «-Eu sei, não ligues, estou emocional que até enjoa.» «-Vai passar, e em menos de nada vamos estar com umas gajas boas ao colo, champanhe a escorrer pelas peles esticadas e cachecóis de plumas a envolver os beijos sorvidos num hino qualquer à alegria de estarmos vivos.» «-Podes crer, é uma imagem bonita. Vou-me.» «-Vai, alivia e tem calma. Depois ligo-te.» Terminada a chamada, prossigo viagem. A sessão de sexo atrasou-me o trabalho todo, tenho de regressar à minha secretária e compor 10 páginas de prosa minimamente decente sobre a escravatura berbere, e tentar não me afectar com os relatos e a aridez dos números, preso ao que as pessoas podem fazer umas às outras. Sei que o confinamento faz com que ninguém saia de casa e que por vezes se perca a noção do tempo. Passam dois dias, esqueci-me de ligar ao Pedro. Toca o telefone. É ele. Do outro lado recebe-me uma voz feminina. Conhecida. A mãe dele. O tom dela é desolador. O Pedro morreu, suicidou-se. Electrocutou-se num motor trifásico que andava a modificar. Deixou um papel escrito dizendo entre outras coisas, que te deixava todos os seus livros de ficção. Os outros, doaria à Universidade de Lisboa. Não consegui esgrimir uma palavra. Nenhuma mãe deveria passar pelo anúncio da morte do filho. O enterro é amanhã às 13 no Alto de São João. Terminada a chamada, dirijo-me à garrafa de whisky de malte que tenho guardada para as ocasiões, e só paro quando está vazia. Não sei quantos meses vou ter de anular a dor com álcool. Vejo o caixão descer ao chão e é como se um zumbido permanente ecoasse nos tímpanos, isolando-me do mundo lá fora. Dói-me tremendamente a cabeça da ressaca e o cabrão do pintelho ainda não saiu do intervalo dos meus dentes. Estou sozinho junto da campa. Rio alto pela anedota desta merda toda. Corro a agenda telefónica procurando quem queira anestesiar-me com sexo, sim fujo de novo. Mordo os dentes e acabo por não cumprir com as que acederam em dormir comigo ao telefone. Fecho-me em casa e baixo os estores e deixo o negrume abraçar-me.
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