![]() I 1994. A viagem de Primavera ao Parque Nacional Peneda-Gerês já prefigurava as viagens de finalistas. Naquela idade sentíamos ser uma questão de vida ou de morte ir a estes acontecimentos, sine qua non. Como que se os deixando passar, deixaríamos passar uma parte memorável da nossa vida que nunca retornaria sob o peso de um arrependimento eterno. Sei lá quantos anos de escola, sem muito esforço da minha parte, confesso. Sempre abaixo do radar. Sempre a esconder-me de mim próprio. Mas já estava farto de livros. Precisava de descanso, pensava eu, mal sabendo que iria passar mais do dobro do tempo que já levava de vida, agarrado a papeis escritos. Sei lá quantas horas de viagem em autocarro, uma excursão em grande, um fim-de-semana completo, com alojamento em pousada, uns 6 ou 7 professores. À francesa. Sei lá quantos autocarros em fila pela A1 fora em direcção ao topo desta esfera planetária achatada nos pólos. O Sol espreitando omnipresente pelas janelas dos autocarros com ar forçado e logo à saída de Lisboa, a cerveja começa a trocar de recipientes, do alumínio para corpos de carbono que reagem obliterando inibições. Os mais populares não se misturam com a ralé nas traseiras, optando por manter alguma diferenciação para com quem não sabe estar. Para variar fiquei no meio. Chegamos à pousada já de tarde, numa mistura de turmas, cujos elementos se conheciam de vista mas não de proximidade. Cachopas que me amaciavam os olhos à distância estavam agora em frente a mim, forçadas a lidar de perto. Eram tão estranhas para mim como eu para elas, e portanto a deferência era igual, o que do lado masculino leva sempre a confundir com elegância de modos, o que na altura se designava de ‘porreira’. Descarregadas as mochilas nas camas e armários, era altura do jantar, espalhado pelo terreno da Pousada. Um dos professores, o António, aparece perto de uma fogueira sob as estrelas, e alguns alunos se congregam em torno dele, um dos quais um cujo nome não me lembro, que era dos mais populares da escola, pelo à vontade com que estava na vida. Sentei-me por perto, interessado pelo que se falava. Olhávamos as estrelas e falávamos de uma vida que projectávamos sob o mistério do futuro. Que lição se levará da vida, antes de a vivermos? Serei um velho porreiro, serei alguém queimado pela passagem dos anos e dos desgostos? Onde estarei quando tiver a idade dos meus cotas? A conversa descamba para o filosófico. O professor António, hoje professor da Faculdade de Motricidade Humana, lidera habilmente como pivot, a conversa. Intervindo o mínimo. Na encosta onde estávamos dava para ver a piscina, desaconselhável pelo frio que só a fogueira mitigava. O assunto ia no sentido da vida e nas luzes que no firmamento prometiam mundos novos. «-Pá sabes que a luz que estamos a ver é o Passado?» A luz de estrelas que podem já nem existir, tal como as memórias de quem amámos e que morreu e se desfez no solo do enterro. «-Ya a malta vive sem dar por isso e tipo…» Eu atalho e faço uso do Sócrates platónico que lera no ano anterior no Faial, e que me havia provocado enorme impressão «-Platão diz que vida não pensada não merece ser vivida.» O fulano com sweatshirt de cornucópias azuis e cabelo comprido dois dedos abaixo do ombro, lixiviado louro à surfista norte-americano prossegue «-A malta vive sem dar por isso, gastam a vida a trabalhar.» O tipo parecia querer dizer que a malta a partir de certa idade deixa de saber (ou merecer) viver porque se acomoda ou porque o amealhar dos anos se torna uma doença degenerativa. Mais ressabiado por ninguém ter ligado ao meu comentário, que pelo conteúdo do mesmo, ruminei no que foi dito. Os meus pais eram derrotados pela vida? Não. Perseguiam determinados, aquele projecto de longo fôlego do qual eu era parte central. Tal como o do surfista sem prancha. Também os pais dele sacrificavam a individualidade criando as condições para a propagação genética ser bem-sucedida e feliz. Não me digas que isto do ser sucedido não tem nada que ver com a complexidade conceptual, e apenas com o controlo da percepção dos outros acerca de nós? Quê, para comer gajas, não é preciso ler Dumas? Foda-se. Como posso ser tão tapado? Este gajo é mais baixo, mais feio e tem os dentes encavalitados e saca o punani todo. Eu tenho conversas profundas e cenas. O gajo olha para mim e diz «-Pensar o quê, a vida tem é de ser sentida, entregarmo-nos aos sentidos, sermos selvagens e indómitos.» Mais pela atenção recebida que pelo que disse, dei por mim a pensar que o gajo era porreiro, apenas não respondia quando os outros queriam, respondia quando ele queria. Analiso posteriormente esta tomada de posição e percebo que a minha mudança de percepção se prende com validação externa, uma falha de carácter, que surge do meu sentimento de inadequação. Já não era só ao nível dos métodos e lógica, mas da validação que precisava. O que é uma pescadinha de rabo na boca. Mas espera lá, a vida ser sentida, born to be wild e mais quê? Então mas isso era o que os nossos pais pensavam, os tais que ele dizia que tinham sido vencidos pela vida. Na nossa idade, todas as gerações devem sentir o mesmo. O corpo jovem sente-se revolucionário. Mas que coisa é esta de entregar-se a um sentir pelo sentir, selvagem em relação a quê se somos nós e as nossas condicionantes, condenados a viver com outros…a merda não fazia sentido. Por onde quer que eu olhasse aquilo não tinha sustentação lógica nenhuma. Alto. Queres ver que o gajo é sofisticado na roupa, e o resto ficou em casa. Ao expor esta ideia ninguém à volta da fogueira pegou nela. Ouviram-me, mas continuaram a partir do que ele dissera, o que soa extraordinariamente bem, mas não fazia sentido para mim, algum. Cristalinamente verifiquei que todos os ídolos deviam ter pés de barro. Se este tinha, os outros não seriam diferentes. A popularidade na C+S é um exercício do deus da aparência. Contraposto mais uma ou duas vezes por mim, persistia nas frivolidades que ia dizendo, confirmando esta minha ideia, de que afinal a minha inadequação até nem era uma coisa má. Fui-me fechando à conversa, levantei o cú dorido do tronco com caruncho onde estava sentado e fui para a camarata a pensar na cena. Afinal, é a imagem, o controlo da imagem que têm de nós que determina o valor da mensagem. Mas espera aí, eu valorizo o conteúdo, mas é uma coisa minha. Há quem não se queira perder em punhetas de letras, ou punhetras. O contraste não me desiludiu. Na camarata Bellini e os outros estavam a fumar charros e a beber whisky. Passam-mo para a mão. Olho, e era feito em Sacavém. Foda-se, Sacavém não tem destilarias que eu conheça, só se for junto ao velho cais. O líquido a escorrer pelo esófago fez-me lembrar o que poderia sentir um cano entupido que engula líquido corrosivo para ser desentupido. Chupo a beata com vitaminas, e não demora muito até despertar um alter ego cambaleante, que só pela ponta dos dedos comunicava comigo escondido não sem onde sob a influência psicotrópica. Sem dar por isso bebi meia garrafa de néctar sacavenense, e misturei umas cervejas. Ficando próximo do ponto da náusea, tive de sair cambaleando pela noite. O ar frio primaveril salvou-me de um coma alcoólico. Uma luz no escuro trouxe alguma ordem ao desarranjo da ebriedade que andava ao repelão desequilibrado pelas pedras no caminho húmido. A outra parte do recinto tinha ainda a malta em animada conversa, e pessoas que reconhecia. Num desses grupos, onde entrei, estava dois professores de Educação Física. Não sei como a conversa descambou para o mar, e naufrágios. O esforço que fazia para não enrolar a língua e para não parecer embriagado, dissolve-se completamente com a palavra ‘naufrágio’. Andava fascinado com a história do Titanic e fiz questão de expor tudo o que lera sobre o assunto. No grupo estavam duas miúdas, uma das quais me via regularmente no campo de basquete, e a quem até impressionara com a minha impulsão vertical agarrando o aro do cesto e quase me estatelando no regresso ao solo. Não sei quanto tempo falei, mas sei que partilhei o número de balsas salva-vida que estavam a bordo, as que faltavam, o sistema de construção do casco, a técnica de rebitagem, a velocidade e as condições de navegação, o diâmetro dos cilindros da máquina principal, os navios próximos na altura do choque e até, como bónus, da maldição dos navios gémeos Olympic e Britannic. Pelo périplo narrativo lembro das caras dos intervenientes, dos adultos compreensivos com o tema que claramente me fascinava, da apreensão das cachopas, obviamente por mim interpretada como êxtase perante a minha magnificência, o silêncio aparecia como uma vontade de ouvir mais, pelo que dei comigo a ter a certeza de que ia conseguir o punani, indubitavelmente, a ter a certeza de que não percebia nada do jogo, quando dou por mim a falar sozinho, logo na parte mais interessante, os danos estruturais no navio ao afundar-se no abismo. Epá mas ela parecia tão interessada. Isso sim, deprimiu-me, fui para o beliche dormir, a pensar que desperdiçara o crédito ganho com as proezas atléticas. Afinal caíam por terra as expectativas de ter um namoro como se via nos videoclips da MTV, com gente exótica no meio de exótica gente, celebrando luxuriantemente no centro de atenções o encosto dos corpos jovens e magros em simulações de cópulas insinuadas, combinando sucesso social com sexual. Que injustas, as mulheres, não apreciando engenharia naval. Realmente, nãos as entendo. A minha boca de manhã parecia mais virulenta que a boca de um Dragão de Komodo. Aliás se mordesse alguém mataria a pessoa com ressaquite. Um demónio dentro da minha cabeça parecia chafurdar na mioleira com dentadas pungentes. Ao colocar os pés no chão frio senti que ainda tinha a cabeça à volta. Perdera mais neurónios nesta brincadeira que assistindo a 10 repetições de todos os episódios da mais estúpida telenovela. II Logo de manhã partimos para os lagos, laguinhos e lagoetas escavados na rocha. A água estava para lá de fria mas nunca nenhuma massa de água me deixou de entusiasmar. O Mário abre as hostilidades tirando os calções e saltando nu. O Bellini a seguir. Eu prossegui, procurando uma maior e mais profunda concavidade onde mergulhar. Na maior da zona, estava a maior parte do contingente. A minha professora de Biologia do 8º ano, que já me conhecia, os mesmos professores de Educação Física da noite anterior, umas cachopas aqui e uns cachopos acolá. Ninguém na água. Ah estava fria diziam. Temperaturas baixas não me condicionavam. O tempo que demorei a entrar foi mais por vergonha de ter um colete de pêlos farfalhudos e não por mariquice a entrar na água fria de montanha. Envergonhado por ter sentido vergonha, deixo a roupa na margem, e perto da professora de Biologia, pergunto se ela, de biquíni, não vai à água. «-Não, também não devias entrar João, está muito fria.» responde-me, com um acanhamento que se perdia num olhar rapidamente baixado após passar pelo meu corpo, onde por certo reconheceu traços adultos num aluno seu. A água fria veio limpar a minha alma e a minha pele do veneno da noite anterior. A água estava mesmo fria mas movimentos mais bruscos depressa me deram a sensação de estar como peixe, na água. Estive umas duas horas a percorrer o caminho entre o fundo e a superfície. Entre as margens e o meio. Alguns entraram na água, deram umas braçadas e saíram. Sentia-me só comigo, apesar de acompanhado, ao mesmo tempo. A flutuar. A olhar o céu e o Sol que me beijava a cara. Quando saí da água estive uma hora a tremer sem conseguir parar. Mais tarde descobri que se chamava hipotermia. As minhas nádegas pareciam castanholas em boda de ciganos. Não conseguia falar mas a custo lá fui aquecendo. Entretanto chega a tarde e a noite. Fui sozinho para o bar no meio do Parque, decidido a nunca mais tocar em álcool e a ouvir um pouco de música. Longe do rebuliço e do acne, nos vários ajuntamentos prévios, ali no meio do bar no meio da serra, sentei-me com a Coca-cola e fiquei a observar os nós da madeira que fazia de parede. O tempo passado a olhar o que me rodeava ao mesmo tempo que deixava as expressões externas guiar as internas, fez o tempo passar e o copo ficar vazio. Vou ao balcão alongado, e sento-me num banco alto. Espero que me atendam para uma nova dose de açúcar e água. Ao meu lado senta-se um vulto. O vulto trata-me pelo meu nome, chamando-me. Era a professora de Geografia. Não era a minha, mas conhecia-me da Escola. Era uma das mais activas e estava sempre a organizar coisas. Era uma das mais, senão a mais bonita mulher de trinta anos da escola. Toda vestida de ganga, com calças coladas a umas pernas bem torneadas e religiosamente proporcionais, cabelo preto com as pontas fulvas, uma camisa preta aberta dois botões com alguns fios prateados pendurados no pescoço de mulher, rosto meigo e ao mesmo tempo experiente, como se reflectisse algumas décadas neste calhau orbitando o Sol, sapatos de salto alto pretos de verniz, mãos brancas e cuidadas mas não exageradamente ornamentadas. A diferença nas nossas carnes era observável por mim, os poros da sua eram mais largos, mas ainda uma pele esticada, como a minha. Desde o momento em que percebi que se sentou ao meu lado, até ao momento em que me fui embora, foi constantemente abordada por locais, que de todos os lados a olhavam, como lobos para ovelha. E ela sabia. A conversa começou com ela a querer saber da minha opinião sobre a excursão. Que estava a gostar. Era bom o contacto com a natureza. A sua forma de falar, e de mostrar interesse, nada tinha de erótico ou de frívolo. Era uma pessoa com quem me sentia íntegro. Sem dar por isso estávamos a falar sobre o sentido da vida. A trocar ideias, como quem joga um desporto de raquetes, e no intervalo onde o silêncio se costuma instalar quando não sabemos o que dizer a seguir, ela diz-me que sou uma pessoa muito adulta e interessante. Isto vindo de um adulto significava muito para mim. Um dos tipos que a abordara duas vezes, chegando-se ao pé dela, insistindo que bebesse um copo com ele, ou se lhe podia pagar um copo, aborda-a uma terceira vez. Ela, educada, sorrindo, responde, «-Obrigada, podes. Mas estou aqui a falar com esta pessoa e vou beber com ela se não te importas.» O homem ficou preso entre a afirmativa, de que sim, podia pagar, e a negativa, de que estava a falar comigo. Vinda a bebida e num intervalo da conversa comigo, vira-se para o anfitrião das bebidas e conversa com ele, vejo-o afastar-se calmamente e sem sinais de rejeição. Ela sabia tratar as pessoas com respeito, e frontalmente. Não era o elogio que me prendia. Mas sim uma presença em que a compreensão e a vontade de compreensão, a humildade para troca de opiniões em pé de igualdade, não tinham condicionantes. Que personalidade a dela. Que mulherão. Fui pelo caminho de regresso para o beliche esperar pelo dia seguinte, com a alma aquecida por ter tido a troca humana com alguém cuja grandeza da sua personalidade, fez também emergir a minha. Sem pensar em desastres marítimos. No dia seguinte partimos para Lisboa.
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