I Falo aos ventos sobre a minha capacidade de reflectir os pés de barro dos outros, mas na realidade, quando se olha o abismo o abismo olha-nos de volta. E nesse sentir-me observado sei que vejo os meus pés de barro também. O pior deles é a facilidade com que pinto lentes que coloco nos olhos de forma a não ver a realidade mas miragens em jardins perfumados. Douro a pílula para poder extrair dela o paliativo para uma qualquer dor de existir. Não vejo a mulher pelo que ela é. Cego-me deliberadamente aos seus defeitos para poder viver uma fantasia a dois. É o cúmulo da idealidade. Somos idealistas fingindo que somos realistas, elas realistas fingindo que são idealistas. O nosso realismo baseia-se em imaginar como fazer uma ponte sobre o rio, afinar uma árvore de cames. Olho ao espelho e percebo que a idealização não é só fuga. É algo a que dou sentido cósmico para não me aborrecer com tédio de uma existência sem sentido que não a anulação completa de cada indivíduo. Se Deus existe, tudo é permitido. II A Sandra tinha sido parceira horizontal em anos idos. Nesse passado, apanhei-a no Rubicão do seu valor de mercado da carne. O seu acme misturava o topo da sua presença mental com um corpo amadurecido mas já na curva descendente. Já na altura o eco de cada acção sua revelava demasiado jogo e bagagem. Era impossível acreditar nela, mas tinha dois lados, o de pessoa vulnerável e outrora franca, e depois uma espécie de alter ego materializado em personagem que desempenhava, que deixava ver à distância, que ela era marioneta dos seus demónios. Gostava de mandar-me fotos parolas que eu interpretava como tentativas suas para que eu a mistificasse. Fumando e olhando o infinito numa noite de lua cheia, dentro de um elevador estroboscópico com quatro paredes de espelhos. A confiança no seu olhar vinha da ilusão de se sentir no trono que o seu corpo permitia. Era bem feita, se bem que nada de especial, para o meu gosto e hábito. Mas isto dos corpos é a coisa mais relativa. Se fossem eles que me movessem, não havia necessidade de escrever. Tinha corpo de namorada. Espírito não. Turista de falos, embrenhava-se como eu descobrindo a humanidade dos outros através do sexo, mas com a vantagem de uma maior facilidade de corte. Como carrinhos de choque que se estampam em pista exígua, os meus choques levavam sempre tinta da minha carroçaria, e deixavam vestígios da tinta das outras que comigo chocavam. Ela não, não criava ligações, senão no que lhe interessava na composição da sua fantasia de mundo. Os parceiros eram experiências, bonecos menores na composição da sua casa de bonecas a que chama ‘realidade’. Sabia vestir-se para tirar o melhor partido do seu anzol, o corpo. Enquanto tinha as pernas tonificadas, usava leggings e botas de cano alto. Deixava o observador mordendo o lábio por causa da imaginação de uma sensualidade que nela era apenas instrumental. E por isso não se vinha. Estava demasiado entregue a observar, e a meter mobília na sua casa de bonecas. Sabia-se estéril na sua capacidade de se entregar. Tão estéril que tornou o defeito em virtude. Identificava essa incapacidade de criar laços emocionais com uma sofisticação emancipada. A sua imagem de si mesma como sofisticada era o deus a quem orava. Sem a oração sentia que estagnara ou que não evoluíra. Nunca se preocupou com o seu carácter. Com a consequência das suas acções. Os acólitos do seu deus eram os que ela colocava como modelos do que queria para si, esses gajos sofisticados que espremidos pouco mais que caroços secos deixam sair sob uma pele lustrosa de fruto emplumado. Como ela. Era, é só aspecto. Como pessoa é uma cabra, só lhe dão atenção por isso. É uma cabra não pela falta de carácter, mas pela teimosia em não conseguir uma introspecção crítica. E não consegue porque só pensa nela. Sofreu algures, por um desses que elegeu como modelo, um golpe mortal na sua complacência e bonomia e jurou nunca mais se sujeitar a isso. A sua implacabilidade trouxe-lhe orgulho e substituiu a verdadeira afecção por coisas e pessoas, com uma sensibilidade de celofane decalcada do mundo dos seus modelos. Enquanto o corpo lho permitia, havia sempre um palhaço pronto a arder na fogueira da sua validação. Escolhia os momentos próprios para o abandono e rejeição, sem qualquer explicação e satisfação, pois sabia exactamente o que isso provoca na cabeça de quem pensa como construir pontes entre margens de rios. Desde nova que pintava o cabelo de azul. Gostava de ver a reacção das pessoas quando a olhavam. Era uma mensagem e um anzol. Dizia a todos e a si mesma, que era moderna por pintar o cabelo castanho, e em espaços fechados distinguia-se das concorrentes. Essa distinção enquanto móbil, era claramente assumida quando falava de outras menos castas e honestas que ela. Nos seus relatos não se apercebia que a narrativa que compunha a mostrava como igual às que encobertamente criticava. Porque era melhor que as outras? Porque não criava ilusões nos outros que a pinavam, e sabiam claramente que a relação não é condição para a cópula. Percorreu assim um carrossel de pilas sofisticadas, que lhe aliviou qualquer lembrança de tempos de carência num subúrbio de Bogotá, de onde veio com 14 anos. III A sua relação terminara e havia percorrido a lista de anteriores conquistas a ver se alguém lhe pegava aos 40 anos. Eu devia ser um dos últimos números, a quem ligou para um ‘café’, que é o que se usa para disfarçar se o interlocutor merece uma hipótese, se vale a pena ou não. Ou de pinocada ou de esmifrar ao gajo, atenção e validação. É tão bom ouvir alguém dizer que gosta de nós, embora saibamos lá dentro que é só por causa do nosso aspecto. Vingamo-nos tendo vários pretendentes em aberto, afluentes do rio do nosso solipcismo. Quando cheguei, ela estava a falar com vários deles por Whatsapp. Não me viu. Fiquei a olhar para ela e a lembrar, o então comparado com o agora. Então era boa, mas nada de especial. Agora, comia-se, mas nada de especial. A cara descaíra e a magreza fizera que o rosto parecesse uma tampa da caveira. Uma tampa ou carica com extremidade própria para ser arrancada, pelo queixo saliente e descaído que os filhos da puta dos anos tornaram missão em fazer mirar o chão. A sensibilidade ao aspecto permanecia na escolha da roupa e no escarlate escolhido para os lábios. Aparentemente estava mais polida, comparando com alguns anos atrás. Mais falsa. Os dentes já se iam afastando como continentes, e o aspecto geral decaía mais rapidamente por causa das más noites de sono e ingestão de espirituosas, e de dietas para não ganhar peso. O tabaco dava-lhe cabo da pele, que betumava com cosmética. O anzol com que me tentou iludir foi extremamente inteligente, revelando uma brutal capacidade de análise da minha pessoa. Fingiu uma entrega ingénua, primal de alma atormentada. Consegui resistir algum tempo, sabendo que a cachopa era má onda e traumatizada. Mas meti as lentes coloridas com a desculpa do deixa ver onde isto vai dar. Quando comecei a observar em mim respostas emocionais, soube que ela havia ganho. Raios. Puxei-lhe a blusa para cima, desapertei-lhe o soutien, tirei-lhe as calças de fato de treino que usa quando está em casa. A magreza tirou-lhe anca e rabo. As omoplatas sobressaem como duas rótulas que assinalam os ombros demasiado finos. Apenas as mamas permanecem redondas e apontadas para diante. As coxas com menos volume, distam uns quatro dedos uma da outra ao nível da vulva. Sabe-se fotografar, andou a aguçar-me o desejo durante semanas com fotos tiradas ‘para mim’. Os gemidos dela tinham um som hispânico. Os pés dela, emagrecidos, revelavam falanges sob a derme. Sinais de aproximação do caixão para nós os dois. A mesma lengalenga. Perdida nos subterrâneos em vez de presente no momento. Parei e perguntei-lhe, afagando o cabelo azul, se podia entregar-se em vez de observar ou tirasse notas. Que se tinha separado do marido, mas que nunca se casara com a sua própria vida. Algo de mim a fez, como a outras, achar que sou idiota. Nem ligou. Sentei-me e perguntei-lhe, o porquê de se ter lembrado de mim. Que nunca se esquecera. Perguntei-lhe se era porque quando tinha muitas escolhas me tinha descartado. Negou o descarte. Que as coisas são eram muito complexas e tretas assim. Como se eu não soubesse o que ia naquela cabeça, então e agora. Achava-se melhor que eu, porque digo coisas esquisitas e aparento ser pão sem sal. Talvez seja. Ela preferira sempre a miragem à imagem. A aparência à substância. Porque se sentia em casa na superficialidade. Perguntei-lhe se achava que eu não via que ela me via como prémio de consolação após ter perdido a sorte grande. Fez-se desentendida. Que conseguia quem quisesse mas que me havia escolhido a mim. Eu disse-lhe que não. Que só me contactara porque me achava imbecil o suficiente para não saber o que custara a sua infantilidade anos antes. Quando tinha opções e a barriga cheia de bajulação de pretendentes. Eu não sou Ulisses e não nos vou construir nenhum leito conjugal. Mandou-me sair, aos berros. Ao vestir-me disse-lhe, «-Deve ser triste, não teres evoluído um milímetro. Continuas a ser uma cabra, só com aspecto.» Ela riu-se, achou que eu o dizia por raiva, ou dor de cotovelo.
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