I
Farto de estar em casa a ler Dante, e a esmagar tostas de queijo crime derretido pelas promessas de enfartes futuros, resolvi ir pela manhã correr num campo isolado. Os coelhos vespertinos fugindo à minha frente antes de mergulhar pêlos tufos de erva já meio seca. Gosto de vir cedo para ver a natureza a acordar, lembrando-me das mil e umas tragédias onde a alegria não entra, de presas predadores, infanticídios e outras merdas que os optimistas escolhem como mantra, para poderem viver neste mundo, não o olhando de frente como o horror infernal que é. Tu que lês, no conforto confinado do sítio onde estás, tens a sorte de não fugir de tudo o que tenha garras ou dentes. Sais à noite com amigos e queixas-te de conjuntura política e da fome no mundo, tragando uma bela bifana, e pousas a cabecinha na almofada para dormir, na satisfação de saberes que és uma boa pessoa porque te preocupas com a questão do mal. Ainda era Nietzsche um ‘puto’ e já se perguntava se haveria um pessimismo da abundância. Numa sociedade que tendo tudo, tenha ainda de contactar com o horrível para poder dar valor ao que tem, confrontando o horror da existência como maior inimigo e dizendo-lhe ‘-Eu vejo-te, mas não me determinas.’ Que merda de pensamentos para se ter quando se corre. Calei a matraca interna e liguei os phones, voltei a desligar e colocar no bolso. Quero ouvir os pássaros e aproveitar enquanto a merda dos aviões não voltam, consumindo o oxigénio da atmosfera e libertando ruído. O ar fresco da manhã beijando os contornos do meu rosto, e senti-me como há muito não me sentia, livre, algo me faltava, procurei, vasculhei os bolsos atabalhoadamente, para manter o equilíbrio da passada larga, , procurando algo incerto, e só depois me ocorreu, havia deixado o ego em casa. Pior teria sido se fossem as chaves de casa. O cabrão ficara em casa a dormir, eu saíra cedo demais para os seus hábitos. As pernas cederam ao fim de meia hora, os pulmões não. Esses nunca me deixam ficar mal, o quer que seja que lhes atire, correspondem sempre à altura, como dois bons cavalos de carga. Só quando o ar inspirado é sentido como enxofre ardendo por alvéolos fora, é que fica claro que há um fim possível da minha individualidade, e do especial que sinto ser, por ocupar um espaço único num mesmo tempo, só ‘meus’. Tal como o ego que deixei a dormir em casa. E tão livre me senti por ter abdicado de todas as lentes que deixava que me determinassem, que voltei a sentir leveza no trote entre as veredas numa planície perto do sítio onde o Tejo vem morrer. A liberdade que procurava, isto é, as condições óptimas, incondicionadas, para me exprimir, individuar-me em todas as variáveis que me tornam único e diferente de ti, sem pensar em gajas, erros, falhanços, insuficiências, sem arder no desejo de ver além das minhas próprias lentes. Para lá do que é vedado ao homem, e só possível através de um terrível esforço de introspecção. E de novo, o mundo pareceu voltar a olhar para mim como filho, como especial. Algo digno, na imensidão anónima do espaço e no anonimato imenso do tempo. Perdida a querida visão teleológica, regressei ao húmus original, normal, ao meu eu mais eu, mais elevado, de novo o Sol voltou a brilhar. Sei que me lendo, achas que são só achaques de gajo sinuoso que passou muito tempo a ler e a perceber mal, mariquices. Tenta imaginar uma vontade profunda de seres quem és, como se te envolvesses com um oponente em luta corpo a corpo sem quartel, onde ambos lutam por viver. O meu ficou em casa, após anos de vitórias, ficou finalmente a descansar. A sombra cancerígena que tão longamente me toldara o pensamento, dissipa-se a alturas do meio dia, e volto a sorrir com a bênção de estar vivo, depurado. Aqui. Contigo. E bastou apenas um pequeno ceder, um pequeno libertar, um pequeno abdicar da ilusão de controlo, que me controlava. Aceitar a morte que é viver, e olhar o monstro de frente, do sentido ser o que lhe quisermos dar. Aqui. Contigo. O milagre diário, só morto pela familiaridade. Apetece-me jurar nunca mais me deixar ser familiar, com ninguém, emprenhado na missão de me fruir a mim mesmo, mas isto é um inferno, e no Inferno testam-nos a ver como somos com outros. O restolhar da erva parece ser a resposta de contentamento indiferente que o mundo me dá a estes inóquos pensamentos de filósofo aprendiz. II A Érica passa por mim. Nem dei por ela, senão quando a uns metros de mim. Rindo-se, diz os bons dias e vejo-a passar com aquele rabo-de-cavalo oscilando em semi-círculo consoante as pancadas que os pés amortecem no chão. Entre a cabeça e os pés fica o rabo no qual perco o olhar tempo suficiente para ela se virar para trás e me ver olhando para ele. No mesmo instante em que tropeço por não ser possível manter o equilíbrio a correr, ao mesmo tempo que não se vê para onde vai. In extremis recupero o equilíbrio e por pouco não mergulho como coelho num tufo de erva. Se tivesse trazido o meu ego teria ficado envergonhado com o que pensaria de mim, agora que me via como um qualquer, a olhar-lhe o rabo, a reifica-la com desejo pelo apêndice adiposo. Nem me passou pela ideia, e continuei a correr imperturbável, até chegar ao local onde calculo que tenham estado as ruínas da antiga ponte de Sacavém registada por Francisco de Holanda. Gosto daquela zona e imagino quantos episódios de condição humana ali ocorreram ao longo das eras, que se sobrepõem umas às outras como folhas mortas após as estações. Nela solto a minha imaginação, erotizada pelo passado possível e pelo olímpico desfiar do tempo, que sai a correr pela planície como cão sôfrego, entre espectros de possível dos mortos que outrora por ali gastaram vida nesta Terra girando em torno de uma estrela, em mais uma volta. Vejo o cimento velho, gasto e amarelecido como pele de geronte, imagino esta zona, sem aviões, internet, quando a vida dos lugares era recheada de uma liturgia geográfica mais próxima do mágico e não tão crua e despida como a vida despida de encanto como é hoje. III Sem me aperceber, a Érica tinha voltado para trás, e com um riso jovial quando me vê com os passinhos curtos e atabalhoados com que fazia a inversão de marcha para voltar para trás, me pergunta se já vou desistir. Se tenho trazido o ego, já estaria a magicar que se me dá conversa depois de me ver claramente a olhar seu rabo, quase mordendo o lábio de desejo e luxúria, é porque quer algo. Como que se por me ver olhando com deleite os dois perfeitos cabos glúteos na viagem para Sul, com o mesmo deleito que olho ruínas e imagino vida passada, imaginando vida futura chafurdando naquelas nádegas, é porque só pode querer à viva força oitenta e três quilogramas de mim em cima dela irradiando calor e suor. Refogando ambos os corpos em lume brando à luz de uma janela virada para Oeste, para o mar, numa boa hora e meia em que se mexe o caldo, pronto a servir em tijela larga, que é o meu actual período de refracção, para voltar a mexer de forma a que por fim fiquemos ambos a arrefecer olhando o tecto, exaustos exangues. Ela diz qualquer coisa que não percebo por causa da distância, e seria rude continuar a correr não ligando ao que ela me queria dizer. Faço nova inversão de marcha e rio-me não sei de quê, chegando à sua beira e digo que não percebi. Ela responde: «-Estavas a ir tão bem, porque voltaste para trás?» Eu respondo, «-Não vês que estava a ir para Sudeste, e que tudo já foi descoberto há quinhentos anos?» Fazendo tábua rasa, responde «-Há sempre algo de novo a descobrir naquilo que já foi descoberto. Devias ser mais crente.» O diálogo não fazia algum sentido, nem mesmo para mim. Apenas o seu olhar terno e interessado por criar e manter uma ponte comigo, como que unindo a margem de um rio semelhante ao que passava ao nosso lado. «-Há, mas sou. Se calhar sou é demasiado exigente querendo que todos os momentos sejam tão especiais, celebrações de vida, mas diz-me que há de especial no Oriente, que todos querem há anos ir para lá?» «-Um sítio onde me vais pagar uma água com gás, que se calhar passas lá muitas vezes mas não vês.» Visava nitidamente que eu acedesse pois o desafio era lançado como plano B, caso eu não fosse fácil de convencer com a sua atenção, apelava ao meu orgulho masculino de conhecimento da realidade física que me rodeia. Onde fica o poço, o regato, o covil do tigre, os ninhos das aves comestíveis, as silvas prenhes de amoras silvestres. O cafés pastelaria ignoto. Eu respondi «-Está certo, estou com sede, portanto deixo-te pagar uma água que trazes dinheiro de certeza nessa bolsa em torno da cintura, que eu só trago as chaves presas ao cordão dos calções, arrebanhando-me a curta púbis pelo lado de dentro.» Era suposto ter graça. Riu-se ligeiramente. Responde, «-Podemos resolver de outra maneira, mas se calhar não é justo por causa da tua idade.» - aqui o riso foi audível numa espécie de provocação marota um pisar de risco que a familiaridade não permite, nem a irreverência deixa de exigir. Procurava claramente um gatilho emocional de um qualquer pórtico de reacção meu. «-Minha idade?!Fazemos assim, o primeiro a lá chegar, não paga. Paga o último. Onde é?» «-Perto da Torre Vasco da Gama.» Epá, ainda é um esticão, penso eu, sobre o cheque que a boca passara e que o corpo teria de pagar. «-Ok, vou contar até três.» disse eu, iniciando a contagem e preparando-me para corrar rápido. À entoação de ‘um’ ela dispara a correr desenfreadamente à minha frente como se a meta estivesse a cem metros. Fico atónito pela charmosa falta de lealdade, claramente revestida de uma intenção lúdica e intimista, e ainda me ocorrem pudores para continuar estoicamente a contagem, mas desconhecia o estado físico dela, tem corpo atlético, mas raios, sou um homem. Mas tais pudores só aumentariam o fosso da distância e não gosto de perder nem a águas com gás. Trezentos metros passados de corrida acelerada, o monsieur joelho começa-se a queixar da vida tal e qual o cabrão do ego se queixava de tudo o resto, sempre nas piores alturas, só para me humilhar, puxar para trás, reconduzir-me à zona de conforto onde podemos envelhecer mediocremente, todos juntos. Mando-o calar-se. Que é incómodo, uma birra de joelho, ignoro concentrando-me no belo rabo que à minha frente foge para que o persiga, tento não pensar no rabo afinal, porque é imperioso que controle a respiração ritmada. Rio-me sozinho nesta reedição de Marte versus Vénus e quando o meu joelho desiste de se queixar, e o ar fresco já não arde por dentro, acelero, passando por ela tão rápido quanto ela havia passado por mim previamente. Passei por fortes de guerras passadas rios navegáveis até há pouco, fábricas que deviam ser museus pelas vidas que nelas arderam incógnitas, pelo troço rodoviário inaugural de um Portugal passado, corria por veredas de História que deixava para trás, para longe, rumo ao Oriente. Nem era a promessa de vagina, alma mater do homem dono de si, no final da meta que me movia. Apenas a novidade e frescura da paisagem que passava como caleidoscópio, semelhante ao que recordava, mas tão diferente, era o olhar que estava diferente, e só por isso era o motivo de regozijo, afinal quantos de nós nos podemos dar por sortudos de renovar a forma de olhar para as coisas, as gentes e as palavras? O soalho de madeira dos passadiços começou a amortecer as minhas passadas e soube então que um pequeno sprint me colocaria em breve na meta. Lá chegado, ofegante e bem disposto, olhei para trás. Nem sinais dela. Quarenta minutos de corrida confirmei no relógio. Fora o tempo antes de a ter visto. Devo estar melhor que o que pensava. Quinze minutos de espera e por fim lá ao longe lá vejo a silhueta dela, a passo, e quando se apercebe que está em horizonte visível recomeça a correr, para não dar parte de fraca. Neste ano do Senhor do nosso confinamento, Érica chega ao pé de mim, por entre uma pequena multidão não confinada, uns tirando fotos com poses para redes sociais, e enchimento de egos não deixados em casa, outros pescando pobres taínhas com sabor a óleo, e ri-se. «-Tu és batoteira.» disse eu. «-Sou, mas como perdi, pago eu.» disse nitidamente alegre, pegando-me na mão e levando-me, para o que presumi, o tal café de que falara, realmente invisível porque por detrás de uns pilares, muito mal posicionado para estabelecimento deste tipo. Uma ou duas mesas de esplanada onde sentados podíamos ver uma nesga de estuário com Montijo ao fundo e outra nesga de Torre, onde o estandarte nacional dança orgulhoso, comido pelo Sol armilar. «-Corres bem.», disse eu, antes de meter a garrafa à boca. «-Corro, faço-o regularmente. Então agora, com a virose, os ginásios estão fechados e eu tenho tendência a ganhar peso.» Respondi, armando-me em entendido : «-Correr em estrada é menos lesivo para os joelhos.» «-Acho que na tua idade tens de ter cuidado.», disse, provocando de novo, rindo. Ri-me também. «-Não me digas que é a idade, ou o correr mais que tu, que vai ser o teu problema comigo, sua batoteira.» «-Não tenho nenhum problema contigo, pelo contrário. Que estavas a pensar ainda há pouco, quando estavas a olhar para mim?» Tinha de mostrar-me que me tinha visto, e que há outro sentido para o facto de lhe ter mirado e apreciado ás nádegas. «-Estava a pensar que queria passar a minha língua por todas as curvas do teu corpo.» Riu-se. Pousou o copo , descruzou os braços, e olhou-me, de certa forma aliviada porque tomei a iniciativa indo directo ao assunto. «-E isso é assim? Largas essa bomba e ficas a olhar para mim com essa cara tão bonita?» Chegando-se para trás inconscientemente como que abrindo um amplo carreiro como o que acabáramos de correr, entre ambos peitos e bocas. Só a opção por ‘cara’ e não ‘rosto’, me lembravam que a língua de Camões era a sua segunda, e aqui e ali uma pronúncia tropical numa vogal ou outra, deixava antever o castelhano que lhe era natural. Lembrei-me por momentos do enconado eu de 16, 18, 24 anos, que tentaria fazer-se de difícil, ou a faria vir até mim, porque sempre gostei que as mulheres me perseguissem tanto como eu a elas, mas apesar de teimoso, aprendi tardiamente que isso só nos filmes. Deixá-las ficar com os jogos e com a ideia de que são o prémio. Que têm de sentir que controlam a interacção, que quem persegue é quem quer e quem quer tem menos poder porque carece de algo que precisa da aprovação de outro que só a dá se quiser. Submissão a uma vontade externa para satisfação de imperativos internos. O meio termo são estas quase claras indicações de desejo. Antes que o macaco ruminante interior prosseguisse com mais verborreia que não cessa lancei-me na sua direcção, não cessa de falar, retirando espontaneidade a toda e qualquer acção. Afogado na minha massa encefálica assola como mosca africana na boca de cadáver, todos os pensamentos, afinal o ego ficara a dormir, mas deixara o primo afastado na tarefa de tentar sabotar a minha entrega ao presente. Ou seria eu? Parte de mim, outro, me puxando para a eternidade? IV O sabor quente e doce da sua saliva, as gotículas de transpiração no seu lábio superior esmagado entre os meus, com minha língua afagando os seus dentes certos e branco esmaltados, em breve ambos os corpos tomaram conta e suas mãos me percorriam o corpo, enquanto eu a despenteava entre respirações cada vez mais aceleradas. Ela perguntou, «-Sobes?» Acenei que sim. Deitada na cama deixou-se facilmente apartar dos suados leggings desportivos que arranquei ao mesmo tempo que as sapatilhas da Decathlon. O suor dos corpos quentes dançou sobre nós sem qualquer pudor de higiene bacoca, para não estragar a celebração de vida. Em breve os aromas misturavam-se com os gemidos e abraços, e dedos rasgando carnes e pele um do outro, como que cada um puxando o outro para dentro de si de forma a preencher um vazio metafísico e redentor. Para vencer a cisão de um mundo ilusoriamente apartado. Apartado como a minha língua lambendo-a de baixo acima, com o clitóris rasgando a extremidade molhada que ao primeiro toque provoca pequeno frémito incontrolável, sem traumas, jogos, sem me ver como peça no seu puzzle. Arrastada rio acima como barca do Nilo, nossas bocas se reencontram e dançam por cerca de 48 horas interrompidas apenas para beber água e deixar arrefecer os corpos sob pena de asfixia ou golpe de calor. Sem sair da cama os gemidos dão lugar a exclamações na língua de Cervantes de mares quentes. Tal como a minha língua foi sendo rasgada ao meio pela saliência da sua vulva, assim o Tratado de Tordesilhas dividia de novo o mundo entre dois poetas ibéricos, o meu corpo e o dela.
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