Nesta situação histórica de quarentena que nunca me imaginei a viver, tal como os milhões de seres humanos que me rodeiam e partilham este tempo, fui correr às seis da manhã para a várzea de um rio poluído.
Enquanto a minha cadela apanhava o fôlego atrás de mim, vi um gato esqueirar-se por um monte de erva, e ao aproximar-me dele, permaneceu agachado, convencido que eu não o estava a ver, mesmo ele sendo branco e a erva verde. Tão convencido estava das suas capacidades de camuflagem de pequeno predador, que não colocava a hipótese de poder ser visto por um ser que considera inferior. Bati uma palma e ele desatou a correr só parando a 100 metros de mim, voltando-se para me observar e possivelmente ficar a avaliar a situação. Ri-me com o bicho e continuei a marcha. Sem saber porquê, lembrei-me da Susana. Acho que foi por causa do traço tão comum a quase todas elas, de acharem que o gajo é sempre um parvo, com acesso limitado à realidade, incluindo ao que lhes vai na cabeça. Xiiiiii, como é possível falar blasfémias sobre a deusa que existe em todas as mulheres? Como se não existissem cabras e tolinhas no elemento feminino. Aparentemente, o zeitgeist actual diz que o monopólio dos defeitos é masculino. A mulher, só por o ser, está isenta de qualquer tipo de culpabilidade ou imperfeição. Quem te magoou? Porque amargaste? Aparentemente nada se pode dizer de menos agradável sobre alguém, de sexo oposto, que é retirada qualquer objectividade ao que é dito. Por exercício de imaginação, imaginemos que num cenário ou impossível ou improvável, o ser humano do sexo feminino faz merda, comete erros e tem falhas de carácter. Eu sei que é algo análogo ao campo do maravilhoso ou da ficção científica, mas imaginemos que sim, que a mulher pode ter defeitos. A Susana parecia o gato, ou o gato a Susana. Escondia-se à vista com a certeza de que as suas motivações e modus operandi eram totalmente inacessíveis ao tipo que se lhe apresentava à frente. Neste ponto, são, a maior parte das que conheço, sexistas. O gajo que consegue ver e calar, tem vantagem, esse gajo não sou eu. Vejo e aponto para o que é visto, talvez para ela desistir e granjear-me admiração e concessão de cueca. Só para iniciar uma corrente de racionalizações e desculpas ilógicas e a puxar para o sentimentalismo para me desviar do ataque de vergonha que vem com o saberem que são passíveis de falhar eticamente. A culpa arde, e é preferível culpar a chama. Mitómanas peritas em camuflar a estrutura dos seus ‘defeitos’. Não são defeitos, é a Terra a manifestar-se nelas, arrepiando por completo o indivíduo que nunca toma posse dos seus instintos. Por exemplo, apanhava-lhe o telemóvel (porque ela fazia questão de não termos segredos electrónicos um para o outro) com mensagens do ex namorado dizendo «-Quero fazer-te malinhos…», ou seja, linguajar próprio da relação anterior entre ambos que significava fofamente, sexo. Eu calmamente a confrontava, mas então, estás comigo, e permites este tipo de conversa de outros? Como não podia jogar a carta do ver o meu telemóvel, pois não queria ela perder o mesmo acesso ao meu, variava as hipóteses de virar o bico ao prego. Ou era porque eu estava a imputar-lhe qualidades que de todo ela não tinha ou sequer admitia que eu lhe imputasse, ou porque estava controlador o que era muito preocupante e selado com uma ameaça velada no tom de voz, do género mau mau ficas sem o punani se continuas assim. Ou era, porque não podia controlar o discurso dos outros, ao que eu retorquia calmamente que ninguém fala de nabos a um soldador, ergo, por algum motivo achavam obter recepção ao que diziam. Mal formada como era, aproveitava esta minha exposição lógica para me desqualificar e virar contra mim o meu próprio argumento, revelando cabalmente que se estava a borrifar para a minha individualidade, dizendo geralmente, que ou não admitia ciúmes, ou que eu tinha feito algo análogo. Nunca a ouvi ou a pedir desculpa ou a assumir algum tipo de falha. E ao parar, exausto por 45 minutos de jogging, e ter de voltar para trás, fiz um esforço para me lembrar, quantas me pediram desculpa por situações semelhantes. Sombriamente, não me lembrei de nenhuma. Tenho feito muita merda no livro das relações com o outro sexo, e cuspi em muitas individualidades, essencialmente por causa de uma mentalidade de carência, e falta de experiência. Mas… Mas, por mais que tenha falhado enquanto ser moral, carreguei a culpa e pedi desculpas. As desculpas não se pedem, evitam-se, mas árrefoda-se, assumi, e contactei os indivíduos e assumi a minha falha, com manifesta e genuína vontade de que gostaria ter agido de forma diferente, mas por falha de carácter, não consegui. Sendo a pistoleira que se sabia, a Susana nem era ou foi das piores. Existem várias formulações destas cores, em matizes diferentes noutros indivíduos. A Susana, como a Jan, tinham uma forma engraçada de estabelecer critérios de lixiviação. Comigo dentro dela gostava de dizer que só permitira que 10 antes de mim tivessem ejaculado dentro dela sem preservativo. Tive de conter uma gargalhada que planeava fugir pela Piombi da minha boca. Fofinha, tentava aparentemente fazer-me sentir especial, por manifestamente me ver nos olhos, que não confiava nela. Mas não. Era um discurso que compunha só para si, para se ver sempre a uma melhor luz. Convencia-se a si mesma ao som da sua voz. Jan dizia que só tinha tido 5 namorados, após anos de tinder, bumble e okcupid. A sua capacidade de se ligar a alguém, era camuflada com um elevado sentido de exigência. «-You see João, i am very picky regarding choosing someone.» Fazia do defeito, virtude. Entrava nas interacções sempre à procura de motivos para desqualificar o tipo em uso, sempre procurando os defeitos, as falhas, as desculpas que podia evocar para sair por cima descartando-o e passando ao próximo. Sair por cima, leia-se, moralmente por cima, sem manchar a auto imagem que tanto trabalho lhe dava a efabular e onde tanto ego tinha investido. Tinha assim sempre histórias novas para contar às amigas, incapazes de se ligarem a um qualquer gajo, por comparação com os anteriores que mais as marcaram. Um pouco como quando visitamos locais que nos impressionaram quando éramos crianças, mas ao rever os locais, achamos tudo mais pequeno e menos impressionante. Já não somos a mesma pessoa, tal como ela(s) não são, mas na memória ficou o tipo que as levava a ver a cidade na sua mota a 200km hora num ermo pouco conhecido. Qualquer um que apareça depois disso, sabe a vinho bebido depois de vinagre. A Susana também era viúva alfa do anterior namorado. Por algum motivo, durante algum tempo, apresentei-me como desafio. A miopia geral dos critérios avaliativos não introspectivamente inspeccionados a intervalos regulares, ditou-lhe o comportamento, como a outras. Assim que o desafio se esfuma e o tipo se desqualificou por se mostrar demasiado entregue, controlável por sexo, são incapazes de respeito. O placebo de respeito que aparentam ter, não é um reconhecimento pela dignidade da alteridade alheia, mas mais uma vez, uma toalha ou naperon na casa onde mora a sua auto-imagem. A incapacidade de respeito torna-se portanto o efeito secundário da sua capacidade de avaliação. É fácil de perceber, se fosse gaja pensaria igual, então veja-se, algo neste gajo deixou de ser apelativo, eu sabia que havia qualquer coisa de falso nele.No fundo é fraco fingindo que é forte. Como gajo de ginásio, musculado mas que se borra todo numa escaramuça de café. A minha capacidade avaliativa de mulher, a chamada intuição feminina, é algo de que me orgulho, e nunca me falhou antes, porque mascarei as falhas com racionalizações internas e com a atenção que outros me dando por fora, me certificavam de eu estar certa. Portanto, é impossível à anterior amante respeitar-te, se perdeu o respeito por ti. La Palisse não diria melhor. Pior ainda, como no meu caso, se uso da táctica do espelho, que é agir de forma a reflectir os defeitos do indivíduo. Entre a fantasia subjectiva que reforça o solipcismo intrínseco, e confere dignidade moral à sua vida, e o gajo que subjectivamente me mostra umas coisas menos agradáveis sobre mim mesma, não menos fantasiosas, claro que optarei pela protecção do meu ego. Até porque esse conas que me critica, só o faz porque não pode ter ou manter o que queria, é portanto um ressabiado. Mas há uma razão para a Susana ter a convicção de gato. Os homens são geralmente uns tolos adoráveis. Manifestam uma facilidade de sujeição ao poder sexual da fêmea ( o único até há uns anos atrás) que impossibilitam que ela os respeite. O stock de rebarbados nunca se esgota. Nem vale a pena o esforço com o tipo difícil que é ressabiado por não saber esconder que é um frouxo, ao olhar de águia que ela possui. Olhar que lhe consegue revelar todas as dimensões da alma de um homem. O maior número confirma a crença mais interna. Oh, este está ressabiado, tenho 12 aqui no telemóvel que me confirmam aquilo que acho que sou, portanto, o errado está ele. A Susana teve o dom da maternidade, e tal me deixa contente, não só alguma vez lhe desejei algum mal, como sempre lhe desejei que a vida corresse pelo melhor. Mas não consigo deixar de colocar uma questão. Conhecendo eu tantos e tantos gajos solteiros, e do que conheço, indivíduos sãos, escorreitos e incapazes de fazer mal a uma mosca, que provavelmente irão para a cova sem legar genes a gerações futuras, que justiça está no facto de que um indivíduo, só por ter nascido com útero, ter de forma escandalosa mais probabilidades de legar genes, por mais pessoas que tenha magoado e trucidado nesse caminho de ‘amadurecimento’? Quantos gajos destroçados não deixou Susana pelo caminho, na sua busca do melhor negócio possível, na escolha que melhor satisfizesse a vaidade, ou que desse sentido ao estádio particular de vida em que se encontrava? Claro, sempre a nebulosa desculpa do ‘amor’. Ah, já não o amava… Nada contra o indivíduo, mas sob o ponto de vista da justiça de uma existência que só é justa em romances de cordel, é que se percebe que é afinal um romance de cruel, uns indivíduos terem a chave da reprodução, e outros serem dela arredados, por motivos tão fúteis como a suposta capacidade de se saber mais que aquilo que realmente se sabe. Justiça, esse conceito humano ao qual o mundo é alheio, brutalmente mostrado pelo facto de uns marcharem sem apelo ou agravo para o total esquecimento, e outros durarem mais uns minutos através dos filhos. Há qualquer coisa nisto que me perturba, mas posso estar enganado, não sei, diz-me tu. O Silvestre é um caldeireiro que de manhã gosta de fazer uns percursos de bicicleta por onde corro, e a costumada passagem nos mesmos locais fez crescer conversas, que partilho com ele e com outros com quem me cruzo nas manhãs suadas. Vendo-me parado com rugas na testa, perguntou-me (travando a bicicleta que propositadamente ao deslizar me lançou lama para cima em forma de brincadeira) «-Que é hoje, qual é o tema hoje?» Como é um gajo que me respeita as introspecções, ou pelo menos finge ouvir as mesmas, partilhei estes pensamentos que leste agora. Apreensivo olhava para o guiador de braços cruzados. «-Nunca tinha pensado nisso.» - respondeu por fim. «-Pois é Silvestre, tenho sido injusto, colocando as questões erradas. Elas são incapazes de pensar da mesma maneira. Assumo, é impossível saber como pensa uma mulher. No fundo tenho esperado delas, que pensem e ajam como gajos.» Riu-se e gracejou : «-Nunca me enganaste!» Perguntei-lhe se tinha colocado o selim recentemente pois não me lembrava de alguma vez ter visto selim naquela bicicleta. Riu-se e fez-se de novo ao caminho. A regressar, com uma dor no joelho, a passo, passa a Érica por mim. A Érica é uma morenaça da Colômbia que fala melhor português que muitos portugueses. Morena e de olhos verdes, com uns leggings de corrida vermelho vivo, e sapatilhas impecavelmente aprumadas pese embora a lama por onde passam, é assídua nestas paragens às saias de Lisboa, onde vem agora mais regularmente, por causa dos ginásios estarem fechados. Pula à minha frente para não alterar a respiração e graceja qualquer coisa relativa à minha idade, ela que não deve ter 30 ainda. Meio à bruta meio a brincar respondo que sou o único vegetariano que conhece que a levará para meio da erva que nos circunda e não comerá a erva. Ri-se e diz o cliché «-Promessas!» Vira as costas a jeito de que solicitando que eu a perseguisse, ao que respondo arreliado: «-Só dizes isso quando estou magoado!» Ri-se de novo, meneando com a cabeça para que a siga, miro-lhe o rabo, rio-me também e lembro o que disse, magoado, deve ser isso, estou magoado.
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