«-Tenho de falar contigo João. Tem mesmo de ser!» Oh diabo, pergunto mas que raio se passa, se precisa de alguma coisa, está a deixar-me preocupado. «-Marília, que se passa, estás bem?» «-Diz-me que vais ter comigo!» Dasse. Vou, claro que vou, mas o meu instinto me diz que pode ser uma das manhas dela. De outra forma sabe que não teria a honra, o prazer e o deleite de alguma vez poder voltar a privar comigo. Não depois das merdas que fez. Sabes, eu nem ligo às falhas de carácter. Mostram-me o humano que és. Ligo sim à completa boçalidade de asfixiares-te a ti mesma, e à tua consciência, só por paradigmas que definiste na tua cabeça. Com dizia o velhinho Kant, há uma lei moral em ti. Com a mania de que és mais esperta do que realmente és, atropelas essa consciência porque o brilho de uma ilusão te norteia o astrolábio. O vulgo diz isto com maior elegância «Tem a mania de ser esperto.» E ela tem. Aí vou eu para São Domingos de Rana onde ela mora. A meio caminho, liga-me, e já não chorando, diz que afinal não preciso de ir ter a casa dela, antes nos encontramos na pastelaria onde costumávamos ir. Mau. O sentimento de urgência em mim dissipa-se, e começo a suspeitar que é mesmo mais um esquema dela. Tenho trabalho de pesquisa a fazer, e ando aqui de volta dos natais passados a fazer nem sei o quê. É que nem sexo quero alguma vez, mais com ela. Ganhei um pó à pessoa, que prefiro não ter de lidar com ela. Sento-me na esplanada, porra que as noites ficaram geladas num instante. Mordo a gola do casaco, como forma de me entreter. A pele de um animal trucidado em morte agoniante, tem um dom de me acalmar, gosto da superfície orgânica, e não como carne para evitar o sofrimento dos bichos, mas na roupa não gosto de usar porcarias artificiais. Artificial. A minha relação com ela. Ela no costumeiro afã de resolver parte da vida dela para outro ver. Sexo imitando verdadeiro desejo nos primeiros três meses. Até me sentir anzolado. Depois só o suficiente para me manter mediocremente feliz sem desconfiar. Eu, sem sentir qualquer fulgor com a vida dela, com a sua vida interior e experiência subjectiva. Então porque raio me envolvi com ela? Começo a olhar para mim como um recolector de informação, surripiada por uma sucessão de pessoas a quem estudo como ratos de laboratório. E para me convencer que o que faço é ético no grande esquema das coisas, forço-me a gostar delas. O copo de cacau quente aquece-me as mãos, e ela desce do seu andar, vejo no prédio em frente a luz das escadas acender e apagar. Traz um casaco de cabedal negro, apertado à carne, e não podendo trazer mini saia, traz o decote do 36 bem à vista. Senta-se, força uma cara séria, mas não consegue deixar de sorrir. «-És tão macaca. Nada se passou de grave, que queres de mim?» «-Estava doente de saudades. Tuas. Queria mesmo ver-te.» Uma ira incontrolável avisa estar a caminho, e forço-me a manter a compostura. «-Marília, eu estou atolado em trabalho. Não te queria ver, a única coisa que quero de ti é o prazer da tua ausência. Enganas-me assim, usando a minha natureza de ficar preocupado e de não extirpar quem algum dia já significou algo para mim. Para quê, que queres dizer?» «-Tinha mesmo de ver-te. Talvez tenha procedido mal contigo.» «-A sério, achas? O que te leva a dizer isso?» O sarcasmo e ressentimento forçam-me a ter de engolir a bebida quente para desazedar a boca. «-Escusas de gozar.» «-Pelo amor da santa. Que queres de mim?» Pela conversa, o mesmo de sempre, as epifanias momentâneas em fins de ciclos. O retorno ao ponto de maior segurança conhecida, eu, para preencher o vazio e afugentar o medo do desconhecido. Por outras palavras, para entreter à falta de melhor. «-Sabes Marília, quando estudava as bases filosóficas do mundo e arredores, surpreendia-me que os filósofos não se debruçassem sobre estes assuntos da vida corriqueira, amores desamores, paixões e rupturas. Compreendo-os agora. A partir de certo ponto perde-se a paciência. E eu prometi a mim mesmo que nada de amargo ou pejorativo, diria em relação a ti.» «-Que tanto mal te fiz para me odiares tanto?» «-Eu não te odeio. Mas também não percebo, admites que fizeste mal, mas pelos vistos achas que te odeio apesar de nada teres feito. Em que ficamos, fizeste algo que mereça o meu desprezo ou não?» Apanhada na contradição lógica, nega a mesma, revelando que o assumir de culpa era também ele um engodo, instrumental. Começa a chorar, para me desviar a atenção. Não me comovo por isso, mas pela abstracta ideia de que perante mim, tenho um exemplo de humanidade que não devo julgar por via do meu ego. «-Marília, não há problema, por princípio, não te odeio. Estou magoado contigo, sim. Mas mais comigo. Por continuar a achar que as pessoas são aquilo que penso delas, projectando um peso que ninguém pode suportar.» «-Pensas que és perfeito?» «-Eu sei que não sou, muito pelo contrário, mas na economia afectiva, apesar da minha canalhice, não recebo lições de ninguém.» Pode o mundo estar mais civilizado, mas está na mesma completamente fora de controlo, joguetes do nosso desejo simiesco que continuamos a ser. Encostando-se à cadeira, como que pressentindo que eu era de facto carta fora do baralho, por me recusar a ir na conversa dela, encaixa rapidamente a minha insignificante perda, e apenas por consideração para com a sua imagem, não se vai embora, ouvindo com enfado as minhas palavras até ao fim. Para não parecer mal, sacrifica-se ouvindo, para no final ficar a pensar de si, que fez um esforço. Mas que pode ela querer de mim? Não tem dificuldade em encontrar outro papalvo que a valide. A não ser que seja pelos meus textos, sempre lhe deu pica os que escrevi sobre ela. Deve ser isso, está com a confiança em baixo e acha que escrevendo sobre ela lhe confirmo a inevitabilidade de a amar…como se eu escrevesse para alguém que não para mim. «-Não gostei do último texto que escreveste, sou eu né?...» Bingo, só não adivinho a lotaria. «-Ó rapariga, que tem isso de…» Paro a pensar que a alusão aos meus textos é outro pretexto, uma forma de mostrar que prestou atenção, que necessitou de estar em contacto com as minhas letras. Que lê as paredes de texto que escrevo, como amante dedicada. Faço-lhe uma festa com as costas da mão, no rosto. Levanto-me, deixo cinco euros em cima da mesa para pagar as bebidas, e preparo-me para ir embora. «-Onde vais?» «-Para casa estudar.» «-Espera, também vou para os lados de Lisboa, podemos ir juntos?» «-Não, quero estar sozinho, e esquecer esta merda, que não me voltes a induzir em erro, quando precisares a sério de mim, não vou acreditar.» «-Ok, como queiras.» - tentado imprimir o máximo de vitimização à expressão para ver se eu me sentia inadequado com a minha postura. Tenho de parar mais uns minutos na estação de serviço, e vejo o fim do jogo que estava a ver em casa antes de sair. Terminado faço-me ao caminho. Meia dúzia de quilómetros à frente, vejo um carro branco, na berma da estrada saindo fumo e com os piscas brilhando intermitentes, ao passar vejo que é o carro de Marília. Coloco os 4 piscas, o triângulo, o colete e vou ver o que se passa. Na berma, sentada, chora, completamente desamparada. «-Que se passou, estás bem? Apalpo-a toda para ver se está bem, se tem sangue, ossos partidos não visíveis no negrume da noite, com um candeeiro jazendo a umas dezenas de metros apenas. Nada, foi só chapa. Sob o capot, vejo o cárter partido e duas longarinas entortadas, por causa do choque com o fosso da berma. Este nunca mais voltará a ser carro. Ela sente o azar como um sinal do mundo, consecutivo, se calhar a dizer que ela já não tem lugar nele. Levanto-a, abraço-a. Sob os pedais, o toque de um cuco, revela a razão do despiste, vinha a trocar mensagens com o plano B. Com quem se ia encontrar, já que eu me recusei a ir para a cama dela. Rei morto rei posto. «-O meu carro, tem arranjo?» «-Não, nunca mais vai ficar nada de jeito.» Enterra o rosto no meu ombro. Abraço-a com força, e com ela bem esmagada no meio dos meus braços, dou graças à divindade pelo momento, graças a ele percebo que sou capaz de me elevar acima do meu ego dente por dente, e suplantar o meu inimigo, a minha carência. Fico orgulhoso por não proferir a lamentável falibilidade do farrapo humano que ambos somos. Por não lhe dizer o que realmente penso dela. Que adianta isso? Nada, de qualquer forma...esquece. «-Vem, levo-te a casa e de lá chamo um reboque.» Tapo-a, afago-lhe o rosto, e digo-lhe para dormir. Com o tipo do reboque junto ao carro, ele diz-me para onde é para levar. Para derreter, respondo eu. Nem ele nem eu temos já salvação.
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