A soirée caminhava para o fim, para mim. Começara como sessão de autógrafos num prémio literário, com os primeiros 10 escolhidos. A única coisa que eu havia ganho, foram umas tostas com paté de atum, e um champanhe, ou gasosa sem açúcar (nunca sei distinguir), estranhamente boa. Antes de me fazer ao Metro para a Estação do Oriente, sentei-me na poltrona com duas taças do beberete. O fresco escorregando pela minha mão, e refrescando-me com o efeito gasoso esófago abaixo. Menos mal, iam editar uma colectânea e o meu trabalho apresentado a concurso, era um dos textos escolhidos. Peguei em mais dois copos, de um tabuleiro ambulante que passou perto, acompanhado por um rosto bonito e simpático de ocasião. Morena, com o cabelo apanhado à moda espartana, repetia o mesmo sorriso ensaiado, com o mesmo resultado, espalhando magia para todos os homens ainda vivos da cintura para baixo, onde todos somos irmãos, segundo Miller. O Sol poente inundava-me os olhos, trazendo-me dois amores para dentro de mim, a Luz e Lisboa, que me enchendo a alma, confidenciavam um seio de Tejo lá ao fundo, por entre umas colunas marmóreas rosa salmão, que ejaculavam para o chão em redor, raios luminosos em dança alegre. Aliviado de alguma forma pelo inebriante líquido e pela imagem fantástica desta soirée ao fim da tarde, fiquei feliz por um momento epifânico que sem sombra de dúvida, tinha feito valer a pena, percorrer a cidade escaldante no mês de Junho. Haviam-me dado um exemplar do dito livro de colectânea e perfeito seria aproveitar os momentos para reler algumas linhas minhas, vaidoso como sou. As letras negras ganhavam um sentido poético, neste ambiente, e na minha cabeça, de onde haviam saído. Senti um pouco de orgulho, pela qualidade do que produzira, e só por isso valera a pena, as bebedeiras, o chover no molhado, o partir pedra sobre eventos passados, sobre as falhas imperscrutáveis da minha personalidade, sobre o pço fétido dos meus defeitos, e acima de tudo, sobre este amor-ódio que aparante ser dirigido às mulheres, e não ao que de facto é, um choro sobre o leite derramado do romantismo. Ser romântico dava-me um ponto de fuga à racionalidade. É verdade o adágio, ou tens a verdade ou a felicidade, as duas ao mesmo tempo não. E eu sempre escolhi a verdade. Será? Sou mesmo capaz de dizer ao meu alter ego que não sabia de facto como as coisas eram? Se for honesto não. Sei desde pequeno que é relativa a ligação dos indivíduos, baseada na química pura entre dois entes. Existe sempre um contexto. Nenhum mal há nisso, desde que o aceitemos sem reservas. E quando o aceitamos sem reservas, a vida baralha as cartas de novo e lança-nos dados novos que contrariam a crença anterior. Sou é teimoso. Às tantas, prendemo-nos tanto a uma ideia, do que deve ser, como se esse dever ser fosse parte de uma forma de ver a vida em trono da qual nos construímos. Quando a ideia se desfaz, somos nós que jazemos no chão também em pedaços. A crença no amor romântico oferecia uma fuga, análoga a Deus, do encontro norteado por uma ideia de Destino, de duas almas que se encontram no meio da aleatoriedade do tempo e do espaço, e que escolhem não se largar até a uma separação final. Se calhar, este desejo de amor fusional, mais que uma dança, era para mim, por via da aceitação de um par amoroso, da minha pessoa, no fundo, um sinal dos Céus, de que a minha vida não foi em vão, e que a Providência não se esquecera de mim. Mim, mim, mim, não vêm todos os problemas e milagres do mundo, deste sentimento de ipseidade que nos abandona só em certos períodos do sonho? Mais dois copos do delicioso autómato de rosto feliz que circula aleatoriamente pelo lugar. Em torno, as macacadas do costume, avaliações de quem é quem, de quem manda o quê, as catadelas sociais sem piolhos ou pulgas que o valham, ou como se diz hoje em dia, ‘criação de sinergias’. Algumas pessoas olhavam para mim, com um olhar reprovador, um barrasco emborcando fresco líquido, como se não houvesse amanhã. Em vez de participar nos mesmos jogos, a fazer figuras a um canto. Dou por mim a pensar porque dou importância ao que os outros podem pensar, e como estrago um momento em que estou tão feliz e contente comigo mesmo, deixando a mente vogar para o efémero, guiado por ressentimento. Retomo o estado de felicidade, ao lembrar que pelo menos lembrei-me de não seguir esse coelho toca abaixo. Rapidamente retomo o estado de espírito anterior, sem que o mundo, ou a vida me possam roubar o biscoito do contentamento. Digo para mim mesmo que este é o momento de usar uma consciência fotográfica, para recordar mais tarde e não poder dizer que existir foi completamente mau. Pelo contrário. Alguém se senta à minha frente, tapando a luz que me banhava, com uma cadeira trazida pela própria, de uma mesa próxima. Encandeado pelo Sol, demoro a conseguir ver a figura. A pessoa que se senta à minha frente, assim que as minha pupilas fecharam o suficiente me permitiram ver, é uma das mulheres mais bonitas que já vi na minha vida. Saída sei lá de onde, não a vira nas duas horas que ali estivera, e teria dado por ela, com uma saia de cabedal preto, com uma superfície que mais parecia vinil preto, brilhante quase como um espelho de trevas. As ancas delas estavam encaixadas de forma perfeita dentro do negro invólucro, e eram umas pernas tonificadas sem exprimir masculinidade hipertrofiada, feitas a cinzel, a escopro, ou a colher de pedreiro, não interessa, o escultor só podia ser Deus. A blusa era azul-escura de onde se viam uns ombros bonitos, brancos, tonificados também, por entre um cetim. Esta mulher não tinha um pedaço de carne flácido, nem se devia sentir intimidada com homens maiores que ela, pois era não só uma ode à biomecânica e à geometria das proporções, como era uma atleta. O rosto exprimia um sorriso enigmático para mim, apenas com uma janela por onde o branco dos dentes espreitava por entre o vermelho vivo dos lábios carnudos. O cabelo era loiro platina, mas as sobrancelhas eram castanhas-claras e meticulosamente tratadas. Os olhos, pintados com sombras negras nas pálpebras com uma mistura qualquer azul carmim, criavam um efeito hipnotizante, enigmático e sedutor. Que mulherão. Os sapatos pretos, todos abertos, expunham uns pés bem feitos, sem dedos encavalitados, todos certinhos, decrescendo harmoniosamente à medida que se dirigiam para o rebordo da sola. Até o mindinho dos pés, tinha a unha completa, e envernizada com um tom de carmesim que ajudava a compor tudo o resto. «-Olá, João, chamo-me Sílvia.» Do espanto passei à suspeita. «-Vejo que já sabes o meu nome, mas não estou a ver quem és.» «-É natural que não te lembres. Estamos próximos e apertadinhos um no outro, mas nunca nos conhecemos.» Sorri, como se soubesse exactamente qual seria a minha reacção. Fiquei sem palavras, e sem sequer conseguir percorrer o rosto dela à procura de algum contorno conhecido. Após alguns momentos em que fiquei perdido num estado de perplexidade, ela alivia dizendo: «-Sou uma das autoras da colectânea, o meu conto vem logo a seguir ao teu.» «-Disseste que estávamos apertadinhos um ao outro e pensei que…» Soltou uma gargalhada. «- Eu fiz de propósito, é tão engraçado ver os homens a braços com o peso da memória sobre as mulheres passadas, além de que tudo que tenha um remoto aroma a lúbrico, vos faz focar a atenção.» Não gostei do «vos». Não gosto de generalizações, embora tenha de as aceitar, pois também falo demasiadas vezes nas ‘mulheres’ ou na ‘deusa’, relativizando os indivíduos. Ela prossegue, «-Mas há verdade no que disse, eles meteram o nome dos autores no início de cada conto e depois no fim. Se fechares as páginas nossos nomes se encontram.» A princípio, achei que ela fosse uma forma de furto, ao momento que eu estava a ter, mas as palavras que ia ouvindo, só me revelavam sob o seu sentido aparente, que Deus estava directamente a olhar para mim, e a divertir-se como criança, criando um punhado de momentos em que testava a minha inépcia em lidar com demasiada beleza em todo o ambiente onde eu jazia.
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