Perguntei-lhe se era mesmo isso que queria. Sabes, sou de uma geração em que havia mais fé na palavra. Conheci alguns, (de facto só a mim), que acreditavam que a palavra escrita ou murmurada ao ouvido era a via mais curta entre duas almas. Cheguei mesmo a entregar textos de amor a fêmeas que me capturavam de forma tirânica, a atenção. Nos pára-brisas automobilizados, nas caixas de correio familiares, o que me impelia para a frente era a crença de que por via de uma expressão cromática de linhas pretas sobre fundo branco o reina da cueca se abriria para mim como o Inferno para Jó. «-Sim, por quem me tomas? Sou ficcionista também, deixa-te de merdas e cria, narra aqui em frente a mim.» Foda-se, esta não era uma conas e eu não ganhara tempo a amaciar a sua receptividade com esquemas de sensibilidade, olha queres bolinhos? Não pá, deixa-te de paneleirices e entrega o texto. Forma engraçada para me apelar a falar e criar pressão ao mesmo tempo. Foda-se. Não é que não tenha segurança na minha capacidade de improviso. Não. É que sei que vou sacar uma ideia que vou perder, por querer desesperadamente foder esta gaja até ao Juízo Final. Esporrar-lhe aquela boca até que peça tréguas e um escovilhão para coçar o desconforto. Não podia deixar de sentir que isto era mais que uma troca ou desafio entre duas pessoas que escrevem. Ela testava-me, ou como homem ou como personagem que só conhecera por escrito. Mas desligar a ideia de ter que ter performance para engatar o mulherão à minha frente… Mas que mulherão? Pensei eu. Não passa de carbono como as outras, como eu, como as feias. Carbono que me entra olhos dentro transmutado em corrente eléctrica, que faz libertar hormonas que se sobrepõem a toda a parafernália ilusória que passa por razão. Sim, que homem sou eu tratando os outros de acordo com o aspecto físico. Mesmo que programado por eras de antropogénese para reagir de certa forma perante o estímulo visual de uma mulher bonita. O falo tumefacto estava preso na púbis que lentamente o enredara antes da sua inspiração, e cujo desconforto causado pelo gradual arrancar de cada pilosidade, me faria descruzar as pernas, não fosse o risco de revelar que estava com um barrote que doía, desde que ela se sentara à minha frente. Lá estava eu, a pensar de novo na minha imagem na mente dos outros, que todos vivemos preocupados em ter algum controlo na percepção alheia. Porque é nos sinais dessa percepção, que validamos ou não a nossa. «-Bem, queres uma história, pois bem, mas olha que é ficção, não venhas depois achar que isto tem alguma coisa a ver comigo, que te estou a contar uma história do meu passado.» Riu-se, e eu próprio não acreditava no que dizia. «- Era uma vez:» comecei eu a ligar as peças de puzzles diferentes, e a dar-lhes palamenta e roupagens para poderem navegar e vestir conceitos. E ao começar, a entrega a ordenar as palavras como fazia com as peças de lego há tantos anos atrás, combinando-as de forma a fazer naves espaciais que não vinham na caixa das ditas peças…fazendo-o, perdia-me, a cada frase com uma nova ideia para a desenvolver de outra forma possível, de frase em frase como pedras no charco, perdendo essas ideias pelo caminho. Numa aula de Lógica fui chamado pelo seu cabelo preto, e pelos trejeitos da sua individualidade enquanto se entregava a deitar no papel os apontamentos da lição. Ou quando se levantava para ir fumar um cigarro a meio da aula de duas horas. Fascinei-me de imediato com ela , o fascínio tornou-se obsessão e dei comigo a escrever-lhe cartinhas de amor ou bilhetinhos secretos, surripiados por entre os seus próprios papeis, que com a repetição, ela passou a esperar. Detestava sentir-se observada, e fingia não ter qualquer tipo de reacção para não alimentar o ânimo do seu perseguidor. Mas eventualmente a minha escrita tocou em algo dentro dela, e no dia em que o fez, ela não esperou para ler fora da sala de aula e leu imediatamente, debruçada sobre as palavras a negro sob fundo branco, como que procurando uma voz, a minha. Fui com o Gonçalo depois da aula, comer uma bifana ao Chiado, e no caminho de volta usei uma folha de teste para escrever a letra de uma música que não me largava, tal como a imagem do seu rosto, o pensamento. Ela tinha de saber que ela e o ‘Temple of love’ dos Sisters of Mercy, eram algo que me batiam fundo. Na folha de teste escrevi a letra da canção e a manifestação do meu desejo de a cantar ao seu ouvido. Não é difícil sentir atracção aos 20 anos. Sentia por cada colega que passava por mim nos corredores da FLUL, rostos bonitos, rabos firmes, optimismo com o futuro. Na generalidade reagiam aos meus olhares com a rejeição do asco, exagerada para que não suscitasse qualquer tipo de dúvida, o que revelava realmente que um ‘não’ era um não, excepto quando reconheciam que tínhamos potencial para lhes alimentar o ego com a nossa perseguição. Avaliavam-nos o temperamento e a probabilidade de provocarmos constrangimentos no caso de nos revoltarmos com o lugar subalterno e instrumental a que nos condenavam com os seus modos coquetes, as suas expressões lacónicas e aqui e ali, as suas palavras promissoras. A arrogância da maioria, era preemptiva. Eu sabia, e não havia mal. Mas a minha admirada secreta, com cabedal preto e botas góticas, valia pelo todo e não era frívola como as frívolas das reacções exageradas. Valia pelo todo mais que pela soma das partes, era bonita, mas não de beleza comum. O ente dentro dela era meigo, mas magoado ao mesmo tempo. Escondia-se no aspecto com a adopção de um estilo em voga e comum ao seu grupo de amigos. A sua personalidade admirava-me e tentei obter dela toda a informação que estivesse disponível. Uma vez por mero acaso, descobri na Associação de Estudantes, olhar para um álbum de fotografias do ano dela, da sua entrada um ou dois anos antes de mim, e lá estava ela. Com um diferente visual, mas o mesmo rosto bonito, e uma espécie de vigor intelectual comum a todos os que entravam para a FLUL, que tinha as médias de acesso, bem altas na altura. Roubei as fotos que ainda conservo, e passei horas a estudar o seu rosto e a tentar perceber que tipo de pessoa era. Tentar conhecer uma pessoa pelos finos contornos do seu rosto, imitando as caretas e os sorrisos como se de alguma forma conseguisse replicar em mim, a vida interna dessa pessoa. Memorizei o seu olhar desafiador da vida no anfiteatro da FLUL, com papel higiénico enrolado na cabeça e a palavra ‘Filo’ pintada na testa. Praxes estúpidas e que só pioraram com o passar dos anos. Mas é a velha história, a ignorância também tolhe vítimas. Tudo nela me interessava, e escrevia longas cartas nos transportes públicos, animado pela ideia de que o amor de uma mulher é passível de ser despoletado, como chave-mestra em fechadura, com as palavras de encantamento certas. Entrar no pensamento da pessoa e depositar-me no meu novo lar, que facultaria a troca salivar e as exclamações de cada clímax futuro, segredado após um amo-te muito. Ela era alguém bastante reservado. E demorou até que falássemos um com o outro. Acabámos por nos envolver, nem me lembro bem como. Acho que um dia, me fartei de a ver à distância e me desloquei para ela e lhe meti o bilhetinho bem em cima da mão. Fui-me embora e aguardei durante semanas que me dissesse alguma coisa. Não disse. Não cedia facilmente acesso à sua intimidade e ainda tive de passar o teste de conhecer o seu grupo de amigos que incluía a irmã e um competidor que nunca chegara a ex amante e que por isso era passivo agressivo comigo. Ela esperava que eu tomasse a iniciativa e eu que ela tomasse a iniciativa. Nenhum dos dois queria repetir a experiência da possível rejeição. Vencidas as barreiras, chamava-me para ir ter com ela a sua casa, após os pais saírem para o trabalho, e tinha sempre uns vestidos verdes de renda, que eu adorava puxar para cima e entrar na sua fechadura sem cuecas e sentir o ar quente da sua boca entrar-me lentamente pelo lábio superior e para o nariz. Ela vingava-se introduzindo a sua respiração nos meus pulmões. Quando se pausava a linguagem que conhecíamos sem falar, sentávamo-nos aos pés da sua cama e olhávamos a sua colecção de livros de Filosofia, maravilhados com os assuntos que aprenderíamos após a leitura dos mesmos, e deliciados com a ideia em surdina, de vir a perceber a vida de um mundo maravilhoso à mão de algumas páginas. Eventualmente o feitiço quebrou-se e certo dia senti-me demasiado vazio ao sair de sua casa, acho que a familiaridade cria despeito. O amor por ela já não me trazia alegria. As coisas não acabaram nem bem nem mal, acabaram. Desentendemo-nos, mas não de uma forma desagradável. Apenas nos afastámos. Ela fez o curso, teve uma filha com um colega que me andou a perguntar sobre ela, coisas a que não dei resposta, e eventualmente mudou-se para os Açores, onde a progressão na carreira é mais fácil, ou menos difícil. Por alturas de 2018, tive uma situação-limite, e precisava desesperadamente falar sobre Filosofia com alguém. Estava há anos a estudar Arqueologia e havia-me deixado reconduzir a um ponto onde me faltava algo de maior pendor para descobrir não o como, mas o porquê. Todos os meus colegas de Filosofia se haviam afastado. Eu vinha de uma longa penúria por não poder falar do que me interessava, com ninguém nos 10 anos anteriores. Há coisas que só podemos falar com outos filósofos. Olá como estás, sim, foi mal o que se passou. Não devíamos falar destes assuntos, o passado…mas eu não tenho problema em falar do passado e até aproveito para dizer que se fosse hoje gostaria que as coisas entre nós tivessem corrido de forma mais fluída pois não teria terminado contigo sem ter apurado a razão do meu vazio. Vamos tomar café. Eu só queria falar de Filosofia com alguém. Tinha tanta coisa presa dentro de mim, que precisava de um ouvido que entendesse. Ela achou que o meu convite para café era mais um expediente que comprovava que todos os homens são coiotes sexuais à procura de cada nova oportunidade. Negando o encontro, talvez por achar uma deslealdade para com o actual companheiro, ignorou a minha mensagem durante um ano, 365 dias. Fiquei tão irritado que lhe escrevi um email a decompor por me confundir com um punheteiro à procura de sexo. E ao fazê-lo entendi, que se era esta a ideia que fazia de mim, ou amadurecera mal, ou ela nunca fora a personagem que eu escrevia nas minhas cartas. O Sol de Lisboa baixara o ângulo, e a cor da luz nas coisas já só me trazia uma melancolia alegre. Sílvia olhava-me, e demorou alguns minutos a esgrimir uma palavra. «-Wow!» Acenou que sim e disse: «-Gostei, se bem que me pareceu demasiado pessoal, é uma história tua que ornaste agora?» Ri-me e retorqui: «-Agora tu.» «-Eu o quê?» «-Agora é a tua vez de me contares uma história.» Ela riu-se, mas a velocidade com que puxou a saia de cabedal para baixo, mostrou que não era totalmente avessa à ideia. «-Opá, não me vais fazer isso…» Quid pro quo, disse eu, olhando para os seus olhos azuis, que se haviam alterado entretanto, um pouco mais ternos e sem reserva, mas ainda assim, ainda vincado a vontade da portadora, feliz pelo seu estado de liberdade na vida, que precede qualquer paixão.
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