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Corre uma brisa fresca à noite IV

5/7/2022

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A prontidão que ela revelou a desembocar uma história inventada à pressão, fez-me duvidar se não seria esse o seu originário intuito desde o início. Tornar-me refém da sua vontade de esporrar palavras, por via do sacrifício prévio de ter de ouvir as minhas.
Esbocei uma lágrima, pois estava convencido de que era por admiração pela minha obra, e não por um motivo tão egoísta como este.



E ela começa:
«-É difícil arranjar quartos com casa de banho em comum, em Lisboa.

Queria sentir aquele cheiro a urina, masculino, que entra pelo nariz adentro, por ser agressivo, desagradável, mas suportável. O cheiro a mijo faz-me sentir viva. Queria conhecer um médico que me dissesse ou explicasse qual o componente do mijo, que me transporta para o âmago destes primatas de carbono.

Recebo no email o convite da editora, para ir à soirée do lançamento da colectânea.
Vai lá estar o gajo que me deixou acordada por um par de noites, a tentar perceber de onde vinha nesse jeito agridoce de se referir às mulheres.

Lia-lhe os textos à noite, na cama infestada de percevejos, no único ‘hostel’ onde encontrei as condições análogas às de Pacheco, Monteiro e outros históricos que conheci na faculdade.
Como posso eu almejar ser escritora, se não sair do meu pedestal burguês, e me enfiar no húmus miserável do existir humano?
A cada frase no seu blogue, desligo chamadas do meu pai e da minha mãe, desesperados por eu não aceitar que me ofereçam um apartamento ali em Telheiras.

Como lutador, não posso escrever se estiver em conforto. Serei A romancista portuguesa do século XXI, ou morrerei tentando.
Mas este cabrão, imprimia intuições inquietantes nos seus textos, a manipulação do feminino para efeitos de autoconhecimento, a suspeita de um outro mundo por debaixo das aparências afáveis, uma postura moralista em relação à diferença entre o expectável e o comprovável nos comportamentos humanos, especialmente das gajas. Mas também a expressão de alguém que gosta de foder e que fode por paixão.

Não, este cabrão não deve foder para esvaziar a tomateira, este cabrão fode, e gosta de foder, com quem ele gosta, ele ama.
Tenho de o conhecer.

Mas aposto que este é o tipo de cabrão que cheira agenda a quilómetros. Tem a atenção ou o sistema reticular, especialmente calibrados para distinguir falso amor, love bombing e merdas do género. Este gajo quer ser realmente amado e só o posso ludibriar se fingir ser amor o amor que deveras sinto. Foda-se. Tenho de acreditar no meu próprio fingir.»

Neste ponto, confesso-te, não sabia o que pensar.

A crueza do exposto incomodava-me e reconfortava-me.

Esta não era uma gaja normal.

Era alguém que eu podia respeitar. Alguém com vida interior superior aos interesses comezinhos e vistas curtas.
«-Por isso, vês, eu tinha de vir aqui, ver que caralho de homem escrevera aquelas linhas.

Não para saber se valia a pena sacar-lhe do gervásio para fora das calças e lambuzar-me com uma massa inerte mas expressiva, dentro da minha boca como honra ao meu respeito pela força primordial, primal, ontológica, que abafa a consciência como um homicida com almofada sob um rosto de idosa que roga pelo alívio da vida.

Algo na sua escrita me interpelara.


Me captara a atenção. Não queria saber de gajos com Porsches ou caipirinhas com vista para o mar em bares finos e caros de Cascais.
Eu, preferia este cabrão, a outros cuja filosofia hedonista não me faria progredir enquanto ser humano. Ao passo que com este, com as suas verrugas, chulé, odor corporal, cabelo despenteado e dentes desalinhados, eu retiraria algo de mais próximo com a verdade das coisas. Com este e outros como este, com cabelos gordurosos, olhos tortos e torturados a partir de dentro, com as suas roupas desalinhadas, inabilidade de serem totalmente aceites pelos outros, com esses é que eu me tinha de dar para me conhecer e ao mundo. Quem não tem uma missão dedica-se ao hedonismo, à recepção fútil de impulsos eléctricos dos sentidos interpretados pelo cérebro. Não, eu queria acesso à verdade, ao pulsar do mundo.


É uma escolha.


É uma questão de gosto pessoal e congruência.


Queres viver no país das maravilhas, vive. Eu não, não tenho tempo a perder.


Mas eu entendo-te. O prémio bípede que agora se afigura como tua melhor opção, parece de facto, o melhor caminho, não é?

Todas as forças do teu corpo se orientam para a ideia de que é essa opção a verdadeira e derradeira.

Toda a aparência se conjuga para fazer parecer que o brilho equivale ao ouro.
Ainda bem que assim é!


Dá uma hipótese à gazela, de poder fugir ou proteger a jugular.
A estupidez das gajas é a válvula failsafe para os gajos.
Pelo menos para os que conseguem, ainda, ver.
É o verdadeiro teste, de personalidade, de adesão amorosa.
Só sabes que alguém te ama, quando todos os aparentes motivos para que não o faça, são aparentes.
Colocando o pézinho em vara verde, ficas a saber.


Tive de perceber a osmose entre o meu sentimento de mim e a força arrebatadora do meu instinto, que sobrepujando toda a racionalidade, cria o sentimento de urgência, a ansiedade incurável e asfixiante de sentir que tenho de largar um para capturar o seguinte. De como em mim, algo que não eu, conspira para esculpir a cinzel a estátua novamente para bloco, o amado, para estranho desprezível, a fim de a minha mistificação se depositar total e fielmente, no novo objecto de desejo.
​
Tive de lutar contra essas forças e contra o pior instinto de todos, aquele que me faz sentir traidora de mim, se não obedecer a todos os outros instintos. Que puta esta Natureza, funcionando como relojoeira e ourives.

Depois que me conheci como mulher, consegui dedicar-me apenas à lógica e a lógica trouxe-me até ti. Andava à tua procura há anos.
A tua alma amargurada, ressequida, ressentida e ressabiada, mas também angustiada, dando placenta a um monstro desesperado que teima em não nascer, abortado sempre que sentes ir perder o controlo de ti.

Por isso te afogas em cerveja, para ires aguentando a visão cada vez mais clara das coisas.
Tens-me tentado conhecer, fazer queixinhas até, pois podes parar, aqui estou para atender às tuas preces.
Eu vim, para ser tua Deusa.»




Raros são os momentos na minha vida em que fico com a boca seca e um sério e profundo medo.
Tinha a laringe inchada e sentia latejar nela o meu coração acelerado.
Uma ou outra tontura fez-me engolir em seco e chegar a mão à gola da camisa para aliviar um botão.
Ficámos a olhar um para o outro, excitados e em silêncio.
Foi ela que desfez o silêncio com um «-Então, que achas?»
O seu sorriso foi irónico e suficientemente dado, para me dar alguma segurança, mas também para eu ficar na dúvida acerca da sua natureza, ou divina, ou telepata, ou simplesmente louca, que em qualquer dos casos, me lera e lera bem, os textos.
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