I O Sol enredava-nos a pele num tórrido abraço enquanto percorríamos as dunas para a Fonte da Telha, a praia que gosto, por permitir menos ajuntamentos em época estival. E porque de vez em quando passam umas gajas nudistas quando um gajo está a sair da água, vencendo o anti climático castigo térmico abaixo do ventre. Castigava-me a mim mesmo, carregando o chapéu de sol, a caixa com gelo e cervejas de trigo ao estilo de Munique, e ela um saco com sandes, protector solar e os telemóveis. Composta a cena, fui à água arrefecer, ela pouco tempo depois seguiu-me, abraçando-me e beijando-me. Era visível que estava feliz. Eu e ela havíamos emborcado meia dúzia de Sagres médias, eu por sede, ela para não se ficar atrás e para me impressionar. Tinha-lhe dito que queria ir ao Oktoberfest este ano, e ela estava a mostrar que não tem moral de puta púdica a beber cerveja. Entre beijos e abraços, Baco faz das suas, e ela mais do que eu, deita-se à beira da água, não se conseguindo suster de pé. Está com cara de quem vai vomitar. Sinto que não resisto tão bem às ondas nas minhas costas, mas não estou bêbedo, mas estou relaxado. Coberto pela certeza de que só mais 6, me tirariam do controlo de mim mesmo. Sento-me ao seu lado, e ela cobre o rosto com os braços cruzados na testa, para não apanhar com a inusitada força do sol das 17 horas deste Julho do ano de Nosso Senhor de 2022. De pernas escanchadas na direcção do mar, vale o facto de ter um mini bikini de duas peças, à moda do vólei, sei lá, não percebo nada de vestuário balnear. A pele dela fica bem à luz do Sol forte da tarde na margem com alma. O pressentir a sua luta com a embriaguez, fez-me debruçar sobre ela e beijá-la, perguntando-lhe de caminho «-Amor, estás bem? Precisas de algo?» Ela diz que não, para lhe dar apenas uns instantes a ver se ganha controlo de si mesma. Igualzinha a mim, quando estou ébrio. Ao seu lado, garantindo que não corre perigo, por causa das ondas no seu fluxo e refluxo, de a afogarem, com a minha mão direita na sua coxa, olho para o mar, para os contornos da costa e para os locais onde ao longe julgo já ter mergulhado. Dou por mim a sorrir por perceber quão diferente ela é. Meteu a cabeça no cepo, isto é, mamou 6 médias de empreitada, desejou vir comigo para a Fonte da Telha apesar de conhecer, Bali, Dubai e Cuba de lés-a-lés. Esta gaja não estava ali pelo que eu lhe podia dar, estava ali por mim. Por eu ser quem sou. Algo mais do que ser quem ela espera que eu seja. Nos tempos que correm isto é raro, e por isso levou mais um beijo, recebido em silêncio por seus lábios enjoados com promessa de vómito. Para a apoquentar, ia-lhe dizendo que se vomitasse, eu lhe comia o vómito, da água salgada e tudo. Ela dizia enojada, que nojo, comes nada, pára, estás a enjoar-me mais. Eu ria-me, dei-lhe a mão, e deixei-me a mim próprio vogar ao sabor do som das ondas enquanto ela recuperava. Comecei por olhar em redor, e percebi que conhecia bem aquela zona do areal. Fui calão e deixei o carro dela, um Mustang qualquer importado, a pouca distância da descida da Fonte da Telha. Bem vistas as coisas, bem…era o exacto spot de onde costumava vir com o meu UMM com a Marta. Assim que o seu nome surgiu na minha mente, atacou-me uma vontade de chorar. A luminosidade à minha volta alterou-se, comigo preso entre a presença de uma felicidade imediata e a lembrança de uma felicidade lembrada. Porque razão me teria eu lembrado de tal, além das lembranças geográficas. Ela fazia anos em Julho. Foda-se, a que dia estou eu? 19. Foda-se. Ela faria anos hoje, se estivesse entre nós. Cada onda que me acertava nos pés, inexorável e impassível, assistia ao meu relembrar da minha história com a Marta, de como cheguei tarde demais ao seu óbito, por ter saído demasiado tarde de casa e ter apanhado trânsito na entrada para o IPO. De como ao chegar, apanhei os seus familiares em pranto, pela morte recente, à qual já só cheguei por via de um beijo na testa do cadáver do meu amor. De como passadas as mágoas do que era expectável, fiquei sozinho num corredor, a chorar a Deus, por me ter levado o meu amor, uma pessoa realmente boa e consciente, depois de tanta puta que me passara pelas mãos. Os seus familiares foram tratar dos preparativos para o funeral, e eu fiquei num corredor contíguo ao dela, aguardando que chegassem os tipos da funerária. Deus devia rir-se lá no alto, olha-me este cabrão a achar que é diferente. Marta tentou proteger-me várias vezes, já depois de não estar cá. Mas eu sou teimoso e recuso-me a ler as dicas. As putas das suas amigas trataram-me como um punhetas abaixo dos que estavam habituadas, pensariam por suposto, que pelo pouco tempo de namoro, eu não tivera ligação com o indivíduo que consideravam sua posse. Foi só por contactar sua mãe, que soube que o funeral era no dia seguinte ao do contacto. Aí fui eu para Ourique, com um amigo meu que a conhecera. No velório, não fui capaz de mais que um beijo na sua testa fria, e do lembrar do seu choro quando rapara o cabelo para a quimioterapia. Não aguentei e fugi cá para fora a chorar, o que estava nas minhas costas não era ela, mas a ritualização social, encorpada na figura de um cadáver. E levei a sério esta ofensa de Deus. Atreves-te a levar o meu amor, com tanta puta por aí, levas alguém decente? Foda-se. É preciso alguém que me valorize, para pagar com a morte tal ousadia? Uma onda mais forte, com água fria jorrada na minha tromba, acordou-me para o facto de que uma morte de alguém que eu amava, nada tinha a ver comigo. Filhas de putice da vida. Nada mais. Onde eu já estava a ver uma conspiração divina para comigo, era afinal, o velho resultado da aleatoriedade ou de algum quejando da mesma. Ainda assim, os meus olhos vermelhos e as lágrimas escorriam abundantemente pelo meu rosto. Na primeira vez que visitei a sua cova, após o funeral, vindo do Algarve, saí do cemitério de Ourique, que estava fechado na altura, a chorar. E que pelas estradas fora, tive de parar o carro para não me despistar, pela forma como chorava, tinha os olhos inchados e já não via bem a estrada à frente. Em pouco mais de 10 minutos, eu passara de uma feliz exuberância, para um estado depressivo galopante. Que culpa tinha esta cachopa a meu lado, das cicatrizes do meu desassossego? Olhei para ela e por duas vezes se virara de lado para responder à água, com líquidos de sua autoria. Larguei-lhe a mão e disse-lhe, venho já. Fui até à mochila, ao pé do pinhal traseiro, e liguei à sua mãe. Costumo fazê-lo, desde 2007 até hoje. Pela primeira vez, o IVR diz que o número não está disponível. Enterro de novo o telemóvel, onde estava, e volto para o pé dela. Continua enjoada, mas ganhou algumas cores. Está a melhorar. A pele retorque que existe calores dentro da massa carbónica algures. Faço-lhe festas no rosto e afinal ela acorda, vira-se para mim, e beija-me o joelho. «-Não estou muito bem.» Digo-lhe, podias estar em destinos paradisíacos, com gente sofisticada e prémio para as ‘melhores’ e estás aqui, na Fonte da Telha e eu, porquê? «-Porque já estive em todo o lado, e prefiro estar aqui contigo.» Bebi mais uma cerveja e de facto, as ondas começaram a fazer das suas. Deitei-me também a olhar o Sol mais clemente, e voltei-lhe a dar a mão. Sentindo-a, virou-se para mim, abraçou-me e colocou o rosto no meu peito, acima dos salpicos das ondas recorrentes. Beijei-a forte, e garantindo que ambos conseguíamos respirar até que o mar decidisse terminar nossas vidas, adormeci. II Sonhei que ela não era como as outras. Camaleão, que finge as tuas cores, o que gostas, o que almejas, o que detestas. Afinal o caminho mais rápido para as guardas baixas e o teu apreço, é o fingimento de gostar do mesmo que tu. Sonhei que ela não era assim. Que tinha vida própria além da rapina, que tinha personalidade além de brincar com a presa. Que gostava realmente de escrever, que não era uma hipster das modas como a Sónia indigente. Encarava de facto, os problemas que levantava como lebres das silvas. Meio acordado, dei-me como feliz, e o meu debruçar-me sobre o meu peito do lado direito, sofreu alguma resistência porque ela respirava de forma plácida, de encontro ao meu mamilo, que a convidada a ser feliz.
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