Ficámos mudos a olhar um para o outro. Ela para o caralho que a foda, e eu para os seus olhos azuis como os do meu avô. Sentia-se no silêncio um prazer apóstata após a troca de palavras que cada um consumira de forma ávida. Meti a mão no meio das minhas pernas e senti duas bolas, ovaladas, lá pelo meio. Cabia a mim, desfazer o empate silencioso de nossos olhos. Sem que algo tivesse sido dito que mo permitisse inferir, aproximei a minha cara da sua e perguntei: «-Queres sair daqui?» Como Ulisses perdido entre as vagas de Carídbis, estava perdido no seu olhar. O quê, o verdadeiro amor é assim tão fácil? O quê, todo o esforço que me convenceram ser natural, para manter o interesse de uma gaja, é ficcional? Artificial? Afinal a coisa-em-si marinha não requer esforço, vai e vem sem intervenção do indivíduo. Tal como as marés. Há tantos anos investido em forjar um amor metafísico e redentor, não perdi um instante que fosse para me perguntar se a artificialidade do meu desejo não era contra-natura. Por outras palavras, queres tanto viver uma história de amor que inventas uma para ti. Onde os outros não passam de figurantes ou adereços. Deus lá no seu poleiro diz, ó filho da puta, mas quem te disse que era hora de ir ao pote? Então deixa de ser uma coisa entre ti e o vazio do mundo, é o próprio Deus a chafurdar-te na cara, quem é mais forte na Existência que Ele inventou. Estava em casa alheia, tinha de limpar os pés à entrada. A questão era saber se eu mesmo ainda conseguia acreditar no que eu sabia ser ilusório, mas se sabia ser ilusório, tudo o resto é impossível. Querer ser amado, nesse ponto, não passa de desafiar a Deus, num jogo perdido antes de jogares Nele. Amas e és amado, se Deus te permitir e te der a bênção. O irreverente é incapaz de esperar, quero a minha cona e é já. Deus responde, ó filho da puta, afocinha aí que só tens completude se Eu desejar. Ou então faz-te à vida, mas Eu lavo as mãos daí. Se fizeres merda, é responsabilidade tua. Para te sentires completo, com outra alma a quem esporrar a tua vida interior, tens de ir de joelhos a Fátima. Mas depois, como manténs a cona que amas, se lhe depositas aos pés, todas as oferendas que recolheste para ser por Ela apreciado? Ela não ficará à tua espera, mas do crente mais investido. Deus não prevenira, ó filho da puta vais ter algures na tua vida, amor não forçado, natural como um ataque de gonorreia. Tão habituado estarás a fingir por verdade qualquer puta Dulcineia que te apareça. Que ficarás sem reacção com a gaja genuína que reservei para ti. Ali por alturas do Restelo, a puta da noite estava quente para caralho, e já havíamos falado por campos soltos da cerveja, e ela cedeu primeiro. No jogo de quem cede primeiro ao encanto do outro, que se aguenta sem manifestar desejo sexual. Para ela o caminho parecia bloqueado pela minha frugalidade. Ficava sem jeito. Este gajo não executa as vergonhas habituais para garantir a minha exclusividade. Nem mesmo quando se atracou a um vendedor de cravos paquistanês, para ver se me provocava ciúmes. Estes cabrões já circulam até Cascais, a ver se vendem uma flor roubada dos enterros recentes da capital. Como eu continuasse a andar, e por acaso encontrei uma colega minha de faculdade com quem me dava bem. Abraços sobre os anos passados, e verdadeira amizade, transpareciam para o olhar externo como algo mais além do que o que realmente era. Foda-se são todas iguais. Com a pré-selecção externa, o medo abeirou-se dela, será que o gajo não estava garantido, afinal qualquer um pode fingir desejo. Como me viu ir para a Pastora, sem olhar para trás, deve ter temido o pior. Fui ver se a Fátima das mamas grandes ainda lá trabalhava. Era boa companhia e ao menos tínhamos em comum um genuíno prazer pela noite de Lisboa e arredores. Quantas vezes não apanháramos um táxi ali para a 24 de Julho? «-João, se não arranjar ninguém esta noite, vou-te dar uma noite de foda que nunca esquecerás.» Quantas noites. Quantas manhãs não tinha de a acordar com ovos estrelados, para ir trabalhar para alimentar o filho que andava no Liceu Camões? Quis Deus, que não me dá a gaja, mas gajas, que eu desse explicações de Filosofia ali para a Praça do Chile. Foda-se quando olhava para ele, não me esquecia das maldades que fizera à sua mãe. Quando me chegava com negativas a Filosofia, eu não sabia o que responder. Cheguei a ir falar com o professor dele e perguntar a causa das negativas. Ó seu caralho, porque dás negativas ao miúdo. O filho da puta punha-se a dançar à minha frente que conhecia os meus livros, e sabia que eu era colega de anos anteriores. Podes crer Ó cara de osga, explica lá porque me fodes a vida com negativas a este mancebo. Depois tenho os pais à saída da sala de explicações, a perguntar, com os testes na mão, porque é que o puto não tira positivas a Filosofia. Desgraçado do miúdo emparedado entre uns pais castradores ( a Fátima nem tanto), e um professor que passado recentemente ao quadro, exercia o controlo urinário que Freud descrevera 100 anos antes. Dá-lhe positiva, seu brochista. Não é no secundário que decidem se Filosofia lhes serve, seu caralho. Andou a saltar à minha frente, quem era eu para duvidar do seu ensino. Ó seu caralho, queres debater a ‘Fenomenologia do Espírito’ ou a lógica elementar? Após a esgrima de argumentos o gajo identificou-me como soldado da causa. E por isso amainou nas negativas, o que me trouxe mais notoriedade nas explicações. Caracterizo-me enquanto docente, por dar demasiada confiança aos discentes. É um mal com que vivo bem, e com o qual facilmente retiro a cagança adicional. Sentem-se à vontadinha e depois fodo-lhes as certezas de forma subtil, e então ficam onde quero, no deserto, entre uma zona onde o ego respirava bem e no limite da hipoxia. Ai gostas do Kant? Bora lá para as antinomias. Queres bater punhetas ou foder como um homem? Invariavelmente, era mais fácil o trabalho de dar explicações do que o de dar aulas. Foda-se. Tinha de sopesar ambas as funções. Apenas em dar aulas havia verdadeiro poder, o da avaliação. Mas o papel de explicador fazia-me sentir tão underground e underdog. Não poucas vezes as professoras indagavam aos alunos explicandos onde iam buscar os exemplos de situações limite a la Jaspers. Por um lado, sentia que mijava para um cacto, por outro desprezava a arrogância intelectual de malta que estagnara nas pedagógicas de Filosofia. Mas arrependi-me tanto, quem era eu de facto, para ir pressionar um colega. Se bem que havia causa, eu não me sentia bem pelas minhas acções. Ela aparece-me com uma suruba de canecas de imperial, ali por alturas de Carcavelos. Morava no Estoril, e eu como bom conas cavalheiro havia ficado de a levar linha afora até dormir nos quartos comunitários da novel burguesia lisboeta. Tudo em nome da literatura. Meu Deus, como aguento eu isto? A lembrança dos que já se foram, que eu amei? Como posso continuar vivo após a hecatombe nas trincheiras da vida? Senão sendo um filho da puta arrogante e assumindo um lado do espectro como meu? «-João, és o que sempre procurei.» Em Carcavelos havia tomado as ondas como afronta pessoal, e havia nadado até perder o fôlego que não perco, e nadado de volta. Na areia ela esperava por mim, sentada ao lado da minha roupa. Ao sair da água, chorava, e ela ao ver, não precisou de explicação, começou a chorar também. As minhas lágrimas relativizaram a sua frase sobre eu ser o que ela procurara. Ela sabia perfeitamente porque chorava eu. E por saber, chorou também. O meu corpo frio e salgado só terminou no seu, na suavidade dos seus trapos secos ante o meu molhado desafio carbónico, pois ao vê-la chorar, a abracei de amparo. As noites de Cascais prometem sempre noites de fodas intermináveis. Já o Estoril é uma incógnita. Podes passar a noite a foder ou a chorar, depende da gaja que escolhes. Esta que me trouxera aqui, era do tipo mais raro. «-Então João, não me vens ao cu?» Isto enquanto eu avaliava uns restaurantes de beira de estrada que a nome do proveito, estendiam esplanada em direcção da cidadela. A frase dela pára-me o raciocínio, não por ser raro o cu, mas por ser rara a frontalidade. Apetecia-me dizer ‘amiga, o que vier no cardápio, eu como’, mas soava-me a justificação. Portanto soava mal. Caneca plastificada após caneca… O cérebro desligava e os olhos só focavam ao longe o Cristo Rei com a Lua por cima. Ela trazia mais uma rodada de cervejas, sem que eu as solicitasse e tomei uma nota mental para lhe perguntar porque tinha tanta tesão para trazer cerveja. À quarta já eu estava pronto para contar toda a minha vida, foda-se. Mas não contei. Só lhe perguntei se achava mesmo necessário estar a polvilhar a nossa interacção com frases típicas de manipuladora. Como assim, pergunta ela. Que sou o que procuras, que queres que te vá ao cu. Não precisas de me testar com essas infantilidades. Como uma mulher apanhada de mamas ao léu, se cobre por vergonha ou pudor, com os restos dos lençóis, também ela se sentiu exposta e afundou o rosto entre os braços em direcção à areia. Ficou bastante tempo assim. «-Tens razão.» - concluiu por fim. «-Sinto que conspurco a nossa recente relação com estes automatismos, mas é por insegurança minha, não por te relativizar perante as minhas experiências passadas. Sai sem que eu dê por isso, resultou no passado, não há manipulação da minha parte.» Entendi o que disse, e concordei, já estava a ficar defensivo, mas percebi a sua explicação. E o facto de ter pensado antes de falar, não negando a minha percepção, antes explicando a sua. «-Mas diz-me, que insegurança é essa, qual o motivo para ela?» Voltou a olhar para as ondas que se desfaziam em orgasmos brancos que definhavam pelas areias. Passados uns bons minutos, sem olhar para mim, explicou:« - É que desde que te vi que imaginei o que seria beijar-te esmagada em ti.» O sal estava a arder-me no rosto, nas zonas abrasadas pela lâmina que me desfez a barba de manhã. Com a língua ia aproveitando esse sal lambido em torno da minha boca. Demorei alguns momentos a perceber o convite dela, sentindo-me tão bem nu e com o vento em torno da minha pele embalada pelo som das águas. Quando finalmente reparei nas suas palavras, debrucei-me sobre ela que pouco resistiu ao afago que lhe fiz no rosto. Quando os nossos lábios se tocaram meigamente, a sua respiração ficou ofegante, e o sentir o seu entusiasmo no beijo, fez-me acreditar de novo e ficar feliz por ser capaz de acreditar, e superar finalmente uma descrença mais salgada que o sal.
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