Encostado na poltrona de cabedal negro nesta Lisboa mais próxima do Inferno escaldante, que de Deus, eu ouvia uma interpretação do Duke, num clube de jazz privativo a que ela me levara. Eu é que lhe prometera levar a um clube de jazz pindérico ali nas imediações de Santos, mas ela já conhecia os spots finos da capital. Ouvia a música e olhava para ela para tentar perceber as sombras dos seus anteriores amantes, ricos, bonitos, sofisticados, de bem com a vida e optimistas com o futuro. Olhava para dentro e perguntava-me se não eram estes, os ameaços da insegurança. Pediam-me 10 euros por cada imperial, e como me viu sem beber durante meia hora, pediu ao empregado para trazer a garrafa de champanhe caro francês. E eu perguntei-lhe, não me contendo, «-Costumas vir aqui muitas vezes?» Ela começou-se a rir, e perguntou-me «- Ó João, estás com dúvidas de ti mesmo?» Senti como se alguém tivesse descoberto o meu jogo de poker na vida, o bluff, as vazas, o caralho que foda. Exposto como o percebes às vagas, como o cadáver de animal morto no asfalto ao Sol, fiz o que faz qualquer animal acossado, escondi-me em mim mesmo, oferecendo o silêncio para não me denunciar a mim mesmo, nem mais um segundo. Ela percebeu e continuou a explicar, «-Um amigo, maluco por jazz, trazia-me aqui muitas vezes.» Eu não ouvia o que ela dizia, só pensava que tinha perdido qualquer ascendente sobre ela, que doravante me iria ver como mais um humano, inseguro, carente e temente da solidão de uma morte anónima. Uma saia preta de cabedal, com umas ligas por debaixo, colocou-se à minha frente, fazendo-me erguer o olhar. «-Olha lá, não me vais privar da tua espontaneidade? Ou vais?» Esta pergunta fez-me sentir ainda mais pequeno, não só porque era extremamente inteligente, como agudizava a minha própria insegurança ante a existência de outros antes de mim. Não por um motivo de controlo da gaja, mas algo gutural, como se quisesse ser o primeiro e único gajo no currículo de alguém que me dizia tanto. Por outro lado, um lado melhor de mim me dizia que não era nada de novo, que são aquelas que realmente queremos, que testam os limites da nossa personalidade, desejos e mundividências. «-Só se não me beijares aqui e agora, como se tivéssemos bebido veneno juntos.» - respondi eu. A resposta pareceu agradar-lhe e ajoelhar-se na minha poltrona para me beijar, chamou a atenção do gajo que estava ao piano, e silenciou o tipo que chegou com uma garrafa de champanhe que eu nunca vira na minha vida habituada a espumante barato. Do doce sabor da sua língua carnuda passei ao novo sabor de um néctar gasoso, que traguei em 5 copos cheios. Quando terminei senti o proletário desconforto de degustação do proibido, do animal que toma a quinta para usufruir ele mesmo dos bens desta vida. Ela sorria, claramente satisfeita, como se eu fosse um bem na vida a manter e valorizar, a 500 euros a garrafa. Pá, eu sei que venho dos arrabaldes de Lisboa e estou habituado a contar trocos, a ser condicionado por uma indigência proletária, e por isso dou demasiada importância na minha escrita à luta de classes e a esta desproporção no comportamento. Nela, não via nada disso. Apenas o humano comportamento, vindo das fringes, por uma via completamente oposta da minha. De valorização do realmente essencial, e não do acessório. Isso fez-me respeitá-la mais. Sorvendo a música, e passando as costas dos dedos na superfície dos meus lábios, sentindo os pelos primatas roçar asperamente, como sempre faço quando penso, perdia-me nestes pensamentos, e ela olhando para mim, de soslaio, parecia adivinhar todos os meus estados de espírito, o que tornava mais pequenino, cada vez mais, como testículo imerso em água gelada, cada vez mais próxima do ponto hipotérmico. «-Deixa-te de merdas João, somos escritores.» Esta frase veio do nada, e coincidiu com outra garrafa pousada na mesa. E alguma vez eu diria algo, para me afundar ainda mais na lama do meu inferno? Caladinho, até esperei que ela vertesse o líquido, para não parecer fora do meu elemento. Foquei-me na música, a ver se saía do único Inferno, o do meu pensamento, que me faz sempre menor, em qualquer situação. E depois tentamos sobrecompensar, para esconder o Inferno, esporramos directo ao Paraíso, em movimentos pouco naturais de falsidade. Mas não, não beberia champanhe pelo gargalo, ou despejaria sobre as suas mamas para beber. «-Quero beber este champanhe, saído da tua boca. «-Como assim?» «Não te mexas, não engulas.» Inclinei-lhe a cabeça para trás, e vi o seu olho visível a partir da minha posição, fazer um esgar de inquirição e surpresa. «Não engulas.» - disse eu de forma autoritária. Despejei champanhe na sua boca, ela não engolindo, encheu, e quando a inclinei para mim, o champanhe apenas correu na minha direcção. Com a boca encostada ao seu rosto, ia bebendo o líquido misturado com a sua saliva, e caminhante da sua bochecha. Em volta de nós o dono do estaminé, alertado pelo empregado que nos trouxera a garrafa, concluiu que o acto ou não era censurável o suficiente para nos expulsar, ou que ela era demasiado boa cliente para perder. Vou levar essa dúvida para a cova. Em torno, os olhares dividiam-se entre reprovação, jocosidade e cumplicidade. Acabada a garrafa, olhei para os mais censórios e arrotei. Limpei a boca com o braço peludo de forma provocatória. Nada como mais um espancamento na noite de Lisboa, para dar um carácter poético à coisa. Ela estava contente e perguntou-me o motivo daquela palhaçada. Eu disse-lhe que ganhara a noite, tinha átomos dela dentro de mim, arrancados da sua boca e do rosto, numa ménage a trois, eu ela e Baco.
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