A ferida
I «Ai João...» proferido ensaiando um gutural gemido enquanto lhe massajava as mamas com uma mão e lhe espremia as nádegas, à vez, com a outra. Enfiava com luxúria desbocada a língua na sua boca tacteando como cega o prazer que no porvir só se adivinhava ali e além. Prazer adivinhado é prazer na mesma como armadilha para caça grossa, evidente, brutal, honesta. Só a suspeita ensombrava toda a cena que se desenrolava. A cristalina certeza de que assim que expelisse aquilo que Casanova chamava de o «raio» a vontade de permanecer fugiria de forma total, cristalina, brutal e honesta. Como que numa ilusão que findo o truque de mágica e esvaziada a plateia, apenas se compõe do mágico arrumando os adereços. Assim se adivinhavam as horas próximas, incapaz que era de ficar com ela mais um minuto que fosse, sem doar excessos de carinho, partilhar conversas de chacha ou simplesmente contemplar os contornos do seu rosto. A vontade de permanecer esvaía-se tão subitamente como o último sangue de qualquer cordeiro sacrificial. Algo ou alguém retiraria o véu assim que as convulsões da ejaculação deixassem de encarquilhar o meu corpo como folha morta ao Sol. II Pela primeira vez, revelou-se ainda que de forma debutante, o divórcio entre a minha líbido e aquilo que se ia elevando como um sentido maior da minha dignidade. Até esse momento a minha vida só parecia ser digna de ser vivida se estivesse perseguindo mulheres para obter aquelas pequenas pregas de carne onde é suposto depositar o esperma. Isso e ser por elas louvado como qualidade, placebo de paz sob a forma de encómios e aprovação. Oferecia caninamente o meu poder e ascendência em troca de uma vulva, numa relação de senhor e escravo que nada mais era que a minha própria sujeição às minhas mãos. Tinha, sem saber, desculpa. Afinal a contínua aversão à autoridade tem o outro lado, aquele em que qualquer arrepio da nossa vontade é visto como perda de soberania. E eu havia sido muito espartilhado por um tipo de miséria pouco evidente. A sophrosyne era portanto o mais estranho dos conceitos para mim, essa virtude máscula, arrisco mesmo a dizer que era odiada, por causa de a ver erróneamente associada a quem me aniquilara a identidade a golpes de autoridade. III Foi preciso observar a constricção forçada e voluntária do prepúcio, para não deixar nela testemunho agarrada ao frigorífico assente em lajes mais velhas que as de uma qualquer àgora. Não podia deixar semente nela por mor de uma liberdade que seria ameaçada se ultrapassasse o limite que define o coitus a tergo. Como que se um monstro em mim me tomasse em piloto automático, o ponto de fuga do olhar e da atenção era únic, claro, definido, brutal e honesto. A tonalidade posterior, pós ejaculatória era tão diferente que por via dessa diferença era clarificada a minha inuficiência para lidar com esse dâimone em mim. E no entanto algo de sagrado ocorria, nessa diferença quase imediata lembrava-me de Kierkegaard pregando que é através do pecado que se chega à salvação. É a foder sem amor que se descobre a importância do amor além da gula dérmica. Todos os graus de ascese são necessários e não podes progredir se não passares por eles. Que marioneta era eu nas mãos da Biologia e da Psicologia. IV Um boneco de farrapos cujo cérebro tinha como principal função enganar, justificar ou encobrir as verdadeiras razões da sua acção, a essa outra ilusão que é o indivíduo. Um parceiro no crime que a cada esquina cita Pascal naquela coisa da existência de razões que a razão desconhece. Um parceiro do crime que volta sempre ao lugar do mesmo, cobrindo as pistas de forma a não ser nunca apanhado. A marioneta ejaculara para o chão da cozinha, prontamente limpo com toda a pressa, com guardanapos de barato papel, e depois com uma gasta e grisalha esfregona, intermitentemente afogada em água negra. V Arranjava uma desculpa farsola e punha-me a andar caído no abismo da lucidez indagando comigo próprio, como se tivesse acordado de um sonho, que raio fazia eu ali. Enrolava o preservativo e mirava o conteúdo de branco mortiço, afinal a razão última de tanta agitação. Largando-o na boca do caixote do lixo fazia juras com a raiva de dentes cerrados, de não voltar, de não voltar a cair na esparrela. Mas sabia que o corpo era bom, as mamas, o rabo, a voz que gemia, a entrega ao ritmo davam-me tesão e a jura saia meio que contraída, já quase que derrotada pois eu de facto sou fraco e não mandava nada no meu corpo. Sabia que fraquejaria sempre que tudo se repetisse dentro de determinado limite. Até comigo existem fronteiras que não passo, e nisso reside parte da fonte de esperança. Caminhando pelo escaldado asfalto das ruas de Verão só me vinha à ideia a pergunta «Ecce homo?» VI A forma de ver o sexo como instrumento místico de esclarecimento, ajudava à festa, acalentando a ideia de que haveria uma sucessão suficiente de orgasmos que por fim, como em jogo de computador, me faria passar para outro nível de acesso e compreensão da realidade, como drogado que volta ao chuto para reencontrar velhas paisagens, além da ressaca de todos os outros sóbrios que o rodeiam. Vim-me, di a vo do povo. Que bela é a língua portuguesa, associando ao vir-se a ideia não só de que parte de nós chegou, como também que terminou naquele momento em que chegou. Expressa a chegada da verdadeira identidade que reside camuflada pela entidade que o indivíduo representa. Vim-me, e ao dizê-lo, digo que é o verdadeiro indivíduo que em mim habita se revela nem que seja por meia dúzia de segundos sempre adiados. Verdadeiro agente que se mete em movimento para se revelar a si mesmo através do acesso ao corpo de outro, desejado voluptuosamente sob sentidos agarros e apalpões sob a massa de carne que define o contorno, tentando chegar e ingerir o seu espírito através da saliva que se bebe, das línguas que se trocam, das proporções geométricas que insuflam o falo da geometria da carne que cessa o raciocínio, comer o outro na nossa língua é isso mesmo, trazê-lo para dentro de nós, de forma a nele nos perdermos. O desejo eterno afinal, de celebrar orações a um Deus telúrico no corpo daquele que nos dá tesão. VII Mas eis que certa vez, um alvo das minhas conquistas, (ou direi melhor vítima?) perguntou-me se o móbil desta ansiedade ofegante em ter o corpo de outrém, não era efeito da testosterona mas de uma fuga, da necessidade constante de escapar e de suspender a razão. Esta foi a mais profunda questão que me colocaram até hoje, e na altura fingi não compreender e neguei de forma indignada a certeira questão. Fugir? De quê? O que pode levar alguém a fugir de si mesmo? Mal entendida a pergunta, como tolaha de praia na areia em dia de vento, instalou-se como pandemia virulenta que amadurecia lentamente. Havia algo de tão verdadeiro nela que apenas o instinto reconhecia a sua importância muito além de razão ou raciocínio. Tão profunda e presente como as pessoas verdadeiramente importantes na nossa vida, que nos fazem reverberar. Que crimes havia eu cometido contra mim, que precisava de fugir e de me esconder de qualquer possibilidade de leitura de sentença para não ser apanhado pelo subsumido pecado da autotraição? VIII Seria a vergonha tóxica regada e adubada por uma infância e adolescência disfuncionais? Seria da crença na minha falta de sofisticação? Ou seria da minha cobardia na hora de me defender e elevar? Que crime destes me pode ser imputado de forma a que perpetue o castigo? Que ferida ou golpe profundo jazeria algures, brotando sangue e dôr em surdina sob a capa de ansiedade, decisões automáticas e espírito não clarividente e autónomo? A ferida, prévia e a da pergunta foram, sei isso agora, doações. A ferida foi a porta de entrada no processo de depuração e retorno a casa, ao meu espírito. Seria a mulher, o objecto de prestígio que me dava para convencer acerca do meu valor? Não sei.Sei que os abraços que dei e me deram, quando findos me magoaram pela ausência do indivíduo, bem como pela confirmação infantil de que deixava de ser amado assim que alguém me conhecia. Era afinal a sombra da rejeição? Da crença profunda de não ser suficiente apenas como sou e que por isso me tenho de mascarar? Sim, amava e lançava-me em conjunto no poço da carne esperando ultrapassar sempre aquela colina adiada, que conduz à Revelação. Quanto mais conteúdo mais dócil e agradecidos eram os votos de amor dos corpos suados e todos os beijos dados em mares de carinho, com nucas apoiadas nas palmas das mãos. Desnudando por fim as nuas deusas, até ao osso da individuação e da mesma forma que os antigos se matavam com absinto e arsénico misturados em sabores indiscerníveis, assim não sabia eu em que dosagem fugia de mim ou me deitava nos meus braços. IX Foder sem amar era portanto a única traiçao que cometia.Sempre pelo mesmo motivo, por ser boneco de palha dançando ao vento, nas mãos da Vontade e da Representação. X Lição aprendida numa cozinha num pardieiro de subúrbio. De novo Pascal, Deus não se rebaixa à miséria do Homem mas dá-lhe a oportunidade de ascender. Na miséria há a promessa da Glória.
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