Ia na 3ª folha manuscrita quando o telefone toca. Uma entrevista de emprego, dress code formal. Um amigo meu convidara-me para fazer parte de um projecto inovador, e sabendo que eu arranhava Python, perguntou se queria que ele desse uma palavrinha. Eu disse-lhe que já estava empregado e não precisava de trabalho, mas obrigado. Pelos vistos, não respeitara o que eu havia dito. Do outro lado da linha, uma voz de mulher, sedutoramente rouca, tentava convencer-me. «-Não, não é só pelo Bernardo, que nos falou bem de ti. É porque estudámos o teu trabalho, e é exactamente a ti que queremos. Custe o que custar, nas condições que tu quiseres.» Nunca na minha vida algum empregador me tinha dito isto. Eu sou da geração que teve de arrastar a peida nos call centers para pagar as propinas das Humanidades, e nunca recuperou os neurónios perdidos nessa actividade. Deve ser a forma mais cara de comprar esgotamentos e feridas existenciais incuráveis. «-Mas que trabalho?» perguntei eu. «-Os teus blogues. Estamos a iniciar um projecto inovador com inteligência artificial, e queremos que faças parte da equipa.» «-Eu? Mas para fazer o quê concretamente? Eu nem sei programar por aí além. É algo relacionado com a edição literária? Há malta melhor preparada para isso, eu escrevo mais do que leio.» «-Não. Queremos que faças com que alguém se apaixone através da tua escrita.» Cum real caralho. Foda-se. Fiquei sem palavras e fiquei de lá passar numa quarta-feira. O dono da empresa e a mulher, a tipa da voz rouca, receberam-me num prédio profissional, ali para os lados da torre gasosa da Expo. Dentro de um aquário no meio do openspace apertámos as mãos, pois isso, escrever sobre amor e desamor, é algo que faço mais ou menos bem, mas com prazer, procurando novas formas de dizer o mesmo, e assim, fazer o mesmo passar a ser diferente. Embora não sendo um call center, tinha ilhas com secretárias e 4 monitores por secretária, uma ilha com a máquina de café, e uma porção do que me parecia ser relva, que se colhia e triturava numa máquina que fazia sair um líquido verde que se ingeria após o massacre esperançoso. Modernices fora de tempo. Não senti aquela pressão de trabalho da ética protestante, podia por exemplo, sair sem dar cavaco a ninguém e passear à beira do estuário até à Fábrica de Braço de Prata e voltar, caso me faltassem ideias, ou tivesse de pensar em algum assunto. O ordenado vinha ao fim do mês, chorudo e pontual, apenas por escrever e criar organogramas sobre os relacionamentos entre pessoas, e todos os Domingos, recebia um email do patrão a sugerir um tema de história de amor, ou a pedir que eu sugerisse um, para figurar entre 4 em disputa para o mês seguinte. Quando eu me sentava a escrever, perdia noção do tempo, e apenas me deixava distrair por uma cachopa na casa dos seus quase 30 anos, que fumava muito mesmo, mas com uns olhos bonitos e tristes que fariam chorar de pena o Cristo-Rei. Não havia vez que se levantasse, que eu não lhe ficasse a saborear o rabo visualmente, exercitando a imaginação nas diversas coisas que faria naquele rabo escondido sob uma promessa de saias leves a imitar a seda e a viscose. Várias vezes me apanhou a olhar para o rabo, e eu apanhei-a uma ou outra vez a rir, por isso. Um riso de satisfação, por ver alguém com um quid de excentricidade, incapaz de resistir a um bom senso profissional. A mulher do patrão, várias vezes ao dia, vinha colocar as duas mãos em cima dos meus ombros, ora perguntando como estava a correr a coisa, ora massajando de forma suspeita, a minha carne tensa, pois parecia escolher os momentos em que eu estava mais concentrado. Fosse na ocasião que fosse, eu evitava ter ideias de comer quem quer que fosse, não misturar ideias de trabalho com aventuras emocionais para me preencher o tédio da existência. O trabalhinho pagava bem, eu não me sentia oprimido por ele, gostava de escrever e recebia elogios pelo meu trabalho. Comecei a ter algum dinheiro na conta ao fim de algum tempo, e comecei a ver ao fundo do túnel, a possibilidade de pagar dívidas antigas, que ultrapassadas, finalmente, me fariam sentir um pouco mais válido, ou assim eu imaginava. Ao fim de meio ano, avançaram finalmente com o projecto do algoritmo e da minha sistematização, que começava por uma sobre familiaridade, que visava criar a ilusão de um arrebatamento, que eu doseava para não criar uma suspeita de carência no ente amado. Batiam palmas, as 15 ou 20 pessoas nestes meetings de empresa, com breaks e reports e casual Fridays. Comecei a levar a sério o meu trabalho, e a sentir que estava a desenvolver algo sério. Ninguém me exigia nada, a não ser que escrevesse e mandasse os textos para um NAS central, com redundância de discos rígidos, e licença de escrita apenas pelo dono da empresa. Mais ninguém podia alterar, e foi com choque que comecei a ouvir no elevador, logo às 8 da manhã, malta a debater temas que eu havia escrito, foi quando a curiosidade me fez olhar para os monitores dos outros, sempre que eu gravava um novo texto, todos iam ler. E mais tarde, a partir dos textos, vim a saber, que toda a gente fazia relatórios que trocava com o patrão, quase sempre ocupado no seu aquário à vista de todos. Senti-me envergonhado, mas também com vaidade. Não fazia ideia que toda a gente ali tinha acesso ao que eu escrevia, por vezes com coisas cá muito minhas. Mas a forma surpreendentemente profissional com que levavam aquilo, não me fez sentir exposto. A vaidade levou-me a tentar escrever ainda melhor, e comecei a refinar a manipulação, adequando os textos com dicas acerca de várias tipas, colegas de trabalho, sobre quem eu me dedicava a imaginar uma situação de envolvimento ou cópula estarrecedora. Até com a mulher do patrão. Em word eu esfodaçava, seduzia e jabardava todas as tipas do call center, ora imaginando a sua casa psíquica apenas por via da observação ou do cold Reading, ora imaginando lubricamente os envolvimentos com a anatomia de todas as que me agradavam. Escudava-me na ficção e por vezes ria-me a caminho de casa, por pensar na insanidade deste mundo, pagarem-me para as assediar em contexto laboral, sem que lhes dissesse, na maior parte dos casos, sequer os bons dias. Depois passava a observar as diferenças de olhar nas pessoas, tentando perceber se se tinham reconhecido nos meus textos, e como reagiam à minha abordagem ficcional, e reparei que a minha musa de rabo em mausoléu sedoso, me olhava de forma diferente, e passei a ser eu a apanhá-la a olhar para mim, mas já não rindo, séria como um túmulo, e com os olhos extra fundos e trágicos, como que se perdida numa falésia por detrás de mim, caída para algum lado da sua própria existência. A ela, sabia eu que tinha tocado num nervo, e continuava a aprofundar o que eu achava que tinha reverberado nela. Às tantas comecei a apaixonar-me pela minha personagem e a preferi-la à pessoa que estava a duas secretárias de mim. O meu objectivo passava agora por a conseguir manipular a não conseguir evitar vir falar comigo. Os meus textos multiplicavam-se por causa deste objectivo, pois sabia que ela ia de imediato ler, tal como a malta à volta. Consegui crackar o sistema de autorizações rudimentar, do active directory daquela merda, e conseguia saber quando ela estava a ler o meu texto, a que horas, quanto tempo demorara, e deixei-me até aceder remotamente ao seu ambiente de trabalho, descobrindo que tinha o meu blogue como página inicial no seu browser. Foda-se. Comecei a pensar que estava numa maré de sorte rara, bom emprego, cada tiro cada gaja cada melro, perto de comer a que queria, fugindo da mulher do patrão, oláólariloléla, a coisa compunha-se. Voltava à terra pela melancolia dos meus textos, e as promessas de potencial fodanga, nada faziam sob a sombra dos amores passados, que ruminava para justificar o ordenado. Quando olhava por entre dois monitores, apanhava-la muitas vezes a olhar para mim e a desviar o olhar de forma rápida. Quando o não fazia e me fixava, eu sorria para ela, ou piscava o olho, e ela sorria de forma simpática e fingida, por cortesia, pela incerteza acerca do meu carácter de estranho. Estávamos ambos no braço de ferro em ver quem aguentava mais, fingindo que não se passava, o nada que se passava. Eu sabia que eu não ia dar algum passo nesse sentido. O desejo motiva-me a imaginação, e se a fodesse, travaria a escrita de forma análoga à de quem trava a bicicleta enfiando um pé-de-cabra nas guias de uma das rodas. Não queria dissolver a minha personagem confrontando-a com o original. A mulher do patrão, Amanda, meio portuguesa, meio loira platinada do Iowa, apertava o cerco, sussurrando-me incentivos ao ouvido, com a voz rouca que é presença comum nos anúncios de refrigerantes. Cheguei a pensar encornar o tipo, mas rejeitei logo a ideia, não sem antes imaginar e escrever um texto sobre o assunto e foi quando percebi que o tédio se voltara a instalar em mim. Comecei a prestar mais atenção ao que os outros faziam. Cada um com 4 monitores, sticky notes por todos os lados, onde comecei a reconhecer frases e organogramas com ideias de força que eu colocara nos meus textos. De dois em dois meses recebia um aumento, um portátil, bilhetes para um jogo do Glorioso, ou outras merdas que eu percebia que me visavam cativar. Recebia no email da empresa, pedidos dos colegas para acções e ficções em situações que me sugeriam, de engate claro. Comecei a reparar, por fim, que todos tinham páginas de redes sociais abertas, com perfis cujas fotos se repetiam, e embora não trancassem os ecrãs, eram de alguma forma reservados e reservadas, com o seu ambiente de trabalho. Os perfis de Facebook, Twitter, Instagram, invariavelmente não coincidiam com a cara das pessoas, e isso levou-me a suspeitar. Já não conseguia estar sentado, e rapidamente caí em mim, eu estava num centro de extorsão que visava convencer e tirar partido de homens solitários e rejeitados. Na secretária ao lado da minha estava a especialista no golpe da ‘mocinha’, onde com fotos de miúdas lolitas, se chantageava tipos que tinham cometido o erro de enviar fotos suas ou das suas anatomias. A ameaça da ‘delegacia’, fazia-los enviar dinheiro para contas, dos supostos pais das ‘mocinhas’, que assim não procederiam criminalmente. Na mesa em frente a mim, o tipo que tratava das mulheres asiáticas que aliciavam com extrema simpatia e atenção, os tipos que no Facebook pareciam ter dinheiro para investir em bitcoin. Comecei a pesquisar nos conference rooms, como eram usadas as minhas abordagens e ficções, e sentei-me num banco no corredor, colocando a mão à testa. Fui falar com o patrão, que confirmou a minha suspeita. Perguntei-lhe porque não me dissera que era tudo aquilo uma empresa de scam. «-Porque não terias vindo trabalhar para nós. E estamos dispostos a pagar-te o que pedires. Desde que chegaste a nossa facturação triplicou.» «O que fazes aqui é crime.» disse-lhe eu. «-Sim, e tu és cúmplice.» respondeu ele. Tinha razão. Nenhum juiz acreditaria que eu não sabia o que se passava. Só se eu fosse alguém muito estúpido ou vaidoso, o que vai dar ao mesmo. E lá vaidoso era. Foda-se. Eu tinha duas opções, a minha carteira ou a minha ética. Comecei a arrumar os meus pertences na secretária, e a meio do caminho para o elevador, apeteceu-me chamar filhos da puta a toda a gente. Com a porta do elevador a fechar, um rabo coberto por pano sedoso com motivos orientais, entra apressado. Encostada na porta que se fechara, apoiada nas mãos em cruz sobre a racha dos dois monólitos de aço inox, ela pergunta: «- É um mundo de cão mata cão.Não achas?» Estava-me a sondar, e eu percebi a sua intenção, de tactear se eu ainda estava na equipa. «-Não amor, não é. Se abdicamos de ser decentes uns para os outros, perdemo-nos.» respondi eu. Eu sei que ela percebeu perfeitamente o que eu lhe dissera. Vi pela reacção nos seus olhos. Independentemente das histórias que contava para si, reconhecia-me como certo.
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