O Brás é um camarada dos tempos de tropa.
Com aquele rosto congestionado das gentes do interior de Portugal, aquela forma de tornar irmão quem quer que seja que passe pelo seu crivo judicativo, liga-me às tantas da noite: «-Pá desculpa as horas, mas preciso de falar contigo. Vamos tomar café amanhã que já tenho bilhete do Alfa.» «-Tás parvo? Olha o confinamento, se te apanham olha que levas por tabela.» Que se passa que em confinamento toda a gente sente mais necessidade de sair de casa, algumas pessoas, para falar comigo. Nego-me, mas perante a insistência assumo que o assunto é inadiável e saio. «-Ninguém me apanha, preciso de falar contigo, pode ser?» «-Pode.» O tom era sério e respondi que sim, perguntando-me sobre que raio levaria um comissário da PSP a querer fazer 300 quilómetros para falar comigo. Conheci-o como grumete electricista, saiu da tropa e estudou para ir para a Polícia. De volta e meia falamos por telefone, sobre assuntos de segurança pública, manipulação política e outras coisas. Continua a ser uma pessoa humilde, com quem podemos falar sem a arrogância de um interlocutor demasiado convencido das suas próprias crenças. Não simpatizou comigo logo ao início, foi forçado a ir à tropa, eu fui como voluntário. Ele estava de saída eu havia acabado de chegar. Ele tinha a mania de fechar a torneira da água fria quando a malta estava no duche, com pressa de apanhar a embarcação que nos levava a Santa Apolónia e daí para casa. A cada missão, quando eu chegava, todo o meu mundo familiar parecia alterado, as coisas haviam evoluído, prédios pintados de novo, solteiras com peneiras e inacessibilidade de comprometidas, os pilares da Vasco da Gama um pouco maiores. Farto de apanhar escaldões avisei-o para parar, e ele continuou a fazer o mesmo, como qualquer gajo de 19 anos faria. Um dia em que não viria para casa, guardei dois rolos de papel higiénico perto do chuveiro na coberta de praças. Após fechar de novo a torneira, decidiu evacuar umas fezes numa sanita rasa que se elevava num degrau acima da altura do solo, com portinhola a tapar alguma intimidade do acto, só se viam os pés e a cabeça. Saí do chuveiro, ensopei os rolos de papel higiénico no lavatório, formando uma pasta homogénea. Ao ver-me no corredor que leva aos evacuatórios riu-se e perguntou como estava a água do chuveiro. Ao ver-me aproximar-se estranhou a curta distância e passou-lhe pela cabeça que eu me pudesse vingar de alguma forma. Já tarde agarrou a portinhola que abri para deixar passar a pasta de papel que se espalhou pela volumetria agachada de forma uniforme. Aos seus desabafos vernaculares, respondi apenas que era a paga das suas anteriores acções, e que se persistisse nelas, as repercussões escalariam de acordo. Isto passou-se no Verão e por isso a água secou depressa deixando o papel agarrado à pele e à farda. Passou horas a retirar papel da mesma. A partir desse momento lá deve ter pressentido que eu não permitiria tais macacadas e passou a respeitar a minha opinião, motivo pelo qual 20 e tal anos depois ainda mantinha contacto comigo. Combinei com ele perto do circo onde o Trancão beija o estuário, e levei-lhe dois cafés gelados comprados no Aldi. Esfregadas as mãos em gel alcoólico, uns passoubens, já que os abraços estão interditos. Começou por me agradecer por ter saído do confinamento mas não tinha mais ninguém com quem falar. «-Que se passa?» - perguntei eu. Ele foi hesitando, desviando a conversa, bebericando o café, até que lá deixou escapar… «-Estou-me a divorciar…» Gajas. Sempre o mesmo assunto que leva gajos confiantes a abanar como espigas ao vento. «-Então, que se passou?» A separação ainda não estava consumada, já não moravam na mesma casa, mas no papel nada estava ainda assinado. Contou-me que vivia num casamento sem sexo e que no aniversário da mulher, ela costumava dar-lhe uma meia hora de sexo sardinha morta, mais para agradecer a prenda e por pena, que por algum indício de desejo. A gota de àgua havia sido o último aniversário da matrona, no qual esse privilégio anual de sexo havia regredido para uma sessão de masturbação. E eu perguntei»-Como é que é?» «-Sim, ela agradeceu-me o vestido que lhe ofereci, e disse-me para ir buscar uma das luvas do forno, à cozinha. Eu perguntei, para quê? E ela disse-me que era para me masturbar. Fui, mas comecei a pensar nisso quando a vi meter a luva, para me tocar. E percebi que ela tinha nojo de me tocar e não era nenhuma brincadeira marota, era nojo. Nunca me senti tão mal na vida.» Fiquei sem saber o que dizer. Ele tinha razão, que leva uma mulher a ter tanto nojo do seu marido, que por pena mete uma luva na mão para lhe pagar uma prenda de aniversário. A sensação que é ter a gja de quem gostamos, sentir de tal forma nojo por nós, que só com protecção manual nos é capaz de tocar. Pela narração dele, deduzi que ela sempre fora uma daquelas pessoas que casa para ter um momento alto de atenção, e um placebo de projecto de vida para animar uma existência privada de privacidade. Mas os problemas de Brás não ficavam por aqui. Havia conhecido uma cachopa na Esquadra, que se embeiçara por ele, tinha 26 anos e um filho. Que ela parecia genuinamente apaixonada e o convencera a alugar a casa ao lado da casa dos pais dela, onde morava. A altas horas da noite entrava no quarto dele e faziam sexo simiesco, e ele acordava preenchido de manhã. Bombardeava-o com demonstrações de amor, que são sempre esforçadas. Fazia-lhe broches na casa de banho da esquadra, e que revelava um interesse insaciável por ele, enquanto pessoa, ele, o Brás. Que o havia largado depois de um tempo comum de seis meses, por um gajo mais novo, e que voltara a mandar-lhe mensagens. O problema dele era esse, escolher a ex mulher e a ex namorada que aparentemente se haviam lembrado de novo, dele. O dilema dele era com qual das duas devia ficar. O rosto dele fazia agora sentido, aquela jactância de ter escolha e o desespero de sentir que algo está mal, mas não sabemos o quê. «-Que queres que te diga?» perguntei eu. «-Não sei que fazer.» «-Sabes pois, a tua dúvida vem de algo dentro de ti dizer-te algo que não queres aceitar.» «-Como assim?» «-Estás assim porque por um lado tens a pessoa que fazia parte do teu mundo confortável, e cuja presença na tua vida reporia a imagem que gostas que os outros tenham de ti, e por outro lado tens uma promessa de sexo bom por contraposição ao que tens tido, com uma miúda que te daria validação perante os teus colegas da Segurança Interna.» Ficou imóvel e a pensar. «-Como é que é isso?», perguntou por fim. «-Sabes perfeitamente que nenhuma delas merece a tua atenção. Uma tem nojo em tocar-te, e tem tão pouco respeito por ti que está disposta a dar-te uns tempos de sexo para te voltar a cativar e voltar a pedir luvas do forno. A outra mostrou que és a segunda opção, para fazer parte do puzzle. O teu problema não são as gajas, mas o quer que seja que estás a comunicar que permite que pensem isso de ti.» Ao escutar-me, só pareceu ir de encontro ao mesmo discurso da sua voz interior, sob os ecos de estátuas sendo destruídas. É mais difícil para um homem matar a idealidade, que esbracejar por um placebo de dignidade.
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