I Andei 2 semanas com o coração apertado. O fascínio por ela havia-se pisgado pela nesga da porta. Ficara apenas um imenso carinho. Mas não aquela tesão de chafurdar-lhe todos os poros do corpo. Curioso a malta dizer que o ‘amor’ é o mais importante da vida. Pelo que me toca sou incapaz de amar o que não me dá tesão. Ela era, e é, uma das melhores pessoas que já conheci, mas a falta de brio e autoestima, e sejamos sinceros, de maldade, sopraram a vela do meu desejo. Apenas subsistiu um sentimento atroz de lhe estar a queimar tempo de vida, por a partilhar comigo, que já não a desejava. Percebi já tarde, que o que definhara dentro do peito, fora o amor que lhe tinha, mas ida a tesão, a raiz secara por falta de rega. Para não a magoar, disse-lhe que tínhamos de dar um tempo. Não queria que chorasse à minha frente, nem eu tinha a coragem de lhe dizer que preferia estar sozinho do que com ela. Mentindo a mim, e sobretudo a ela. Curioso, como desprezo isso nos outros quando mo fazem. Foi a única resposta que tive na altura. Se calhar é por isso mesmo. Passado cerca de um ano, surgiram outras pessoas na minha vida, as complicações emocionais (nome pomposo para a responsabilidade moral para com alguém que sabemos gostar de nós) não existiam e faziam-me andar solto e alegre por estar vivo. Da cama de uma para a de outra, no meu carro, nos carros delas, tomar café ou almoçar, eu borboletava por entre as flores que me apareciam ao caminho. Recebo um telefonema no Nokia 7110, era ela. Que se fartara de esperar, tinha pessoas atrás dela, e estava-se a privar de relações, por estar presa a mim. Combinei falar com ela, café na FLUL. Lembro de sentar o cu numa pedra fria, e ouvir o meu ego dizer para a meter no carrossel de mulheres à minha volta, que eu tinha na altura. O filho da puta fazia tábua rasa de todo o meu esforço moral, para proceder correctamente com ela. E como fui acusado de não o fazer. Na altura em que a ruptura se operara em mim, foi quando ela perdeu o pai. Num crematório, no Alto de São João, lembro de a abraçar, com força e sem conseguir acompanhar o seu choro, pois eu fico assim, quando estou em choque. Beijou-me na boca e não tive a coragem de lhe negar o afecto de que estava a precisar naquela situação. O marido da sua melhor amiga chama-me à parte, mais tarde, e chama-me à atenção então afinal se estava a cortar com a miúda, andava a beijá-la dando-lhe esperanças. Como já tínhamos saído do cemitério, e estávamos a sós, disse-lhe :«-Vai para o caralho pá.» Passaram uns meses e ela voltou a ligar-me, e eu chorei ao telefone sem ela saber. Lembrei-me de quando conheci o seu pai, uma jóia de pessoa de quem gostei imediatamente. Era daquelas pessoas que por mais mal a vida lhe lançasse ao caminho, tinha sempre uma palavra amiga e justa para com os outros. E a mãe também. Isso também me pesou, magoar a filha, o pai, a mãe. Foi uma altura fodida, pois várias pessoas à minha volta estavam doentes. O namorado da minha mãe, que finalmente arranjara alguém que a apreciava pelo seu pleno valor, também andava na quimioterapia, no qual eu o forcei a ir, pois os filhos não se tinham apercebido que o pai não estava normal, tremendo das mãos e articulando mal as frases. Foi num instante, e levei-o ao São José, e os médicos disseram que ele já não saía de lá. Fiquei a olhar os cabrões dos vitrais do ex estaminé dos Jesuítas, a engolir em seco e a não conseguir articular uma puta de uma palavra pensada, das minhas várias teorias metafísicas. Ao telefone ela queixava-se que tínhamos de resolver a situação, e que ia começar tudo de novo, mas desta vez ela ia ser mais difícil, custar mais a conquistar, para ser mais valorizada. A ingenuidade comoveu-me ainda mais, e senti que tinha de ser um cabrão para ela, para que passasse do amor ao ódio da minha pessoa, para poder amar outras. E fui. E amou. E pedi-lhe desculpas, mas nunca me respondeu mais. De homem tornara-me lobo, passado o luto pelo rodízio emocional intenso. Pessoas de quem eu gostara, tinham-se ido deste mundo, e após uma fase mais depressiva voltei a chafurdar como porco no cio, em carne feminina. Todas as cores, todas as idades, todos os caminhos na vida. Sou um fornicador eclético. Delimitava os envolvimentos, prometendo amor e compromisso quando só almejava conhecer mais uma boca, um corpo que me mostrassem o terreno incógnito da natureza humana. Eventualmente fartei-me do esvaziamento de significado. E ela apareceu. II Ela adorava o Natal. Vibrava com a expectativa de adivinhar as reacções das pessoas aos presentes que oferecia com tanto tacto e escolha. No chão do meu UMM colocou todos os presentes que tinha para mim. Ainda estava quente de ter ido ter com ela à Margem Sul. Já não me lembro porque é que abrimos presentes no meu carro. Ofereceu-me um relógio de aviador em aço preto que eu andava a namorar fazia tempos, ainda por cima era de fabrico nacional. Um livro de Oscar Wilde e dois de Husserl. Fiquei sem palavras e ela percebeu isso olhando-me o rosto. Extremamente generosa, motivava todos para a vida, e éramos felizes até descobrirmos que também em si, as metástases tivessem continuado a crescer camufladas por entre os órgãos. Dizia que sentia guinadas na cabeça e nas costas, e eu convencia-la de que era o colchão. Lá mudou de colchão, mas nada mudou. Ninguém como eu, para espírito de recusa e negação. Certo dia liga-me do I.P.O. e diz-me que queria que eu escrevesse sobre ela, que queria que eu usasse o relógio para me lembrar sempre dela, e que as máquinas a que estava ligada, pareciam calculadoras, a avaliar o que havia feito na vida. Certo dia, ao jantar, com a sua extraordinária mãe, levantou-se a chorar, porque sentira que era o jantar da despedida. Dissemos que tudo ia correr bem, para não pensar assim. Passado pouco tempo, quando me atrasei no trânsito na Praça de Espanha, cheguei atrasado à visita, e só já encontrei gente a chorar e o meu amor de boca aberta, que beijei também com a minha garganta totalmente embargada. Fiquei com a função de aguardar o carro funerário, olhando pelas janelas para a luz que me esporrava a cara, perguntando se eu estava amaldiçoado, como se ofensa tivesse sido feita a mim. A transmutação para personagem lupina estava cada vez mais difícil, a emancipação férrea, valia cada vez menos a pena, pois a minha alma estava cada vez mais pequena, com o desaparecimento sucessivo dos meus. III Dançava músicas das Pussycat Dolls, muito bem. Afogava demónios com álcool e ganza. Queres fumar? Sabes que não fumo dessa merda. Achava-lhe graça, nos seus jeitos, e no seu achar que por sermos de gerações diferentes, eu era uma antiguidade de museu. Se ao início era eu e ela e o mundo, no espaço de um ano voltei a perder a pica com ela, por causa de continuar a afogar os seus demónios com actividades que lhe davam cabo do corpo e do espírito. Justificava que quem a amasse tinha de amar como era, e não a forçar a ser melhor. Pá eu respeito as tuas decisões, mas fumas como um cavalo, e os charros tiram-te congruência no discurso. É como estar sóbrio a falar com um ébrio. Barafustava e dizia que se eu queria modelos e mulheres perfeitas, que tinha a porta aberta. Eu respondia «- Vai para o caralho pá.» Ligava-me depois, a altas horas da noite, a dizer, tens razão, eu sei que não dizes por mal, nem é para me mudares. Quando a lucidez batia, ela conseguia ser bastante clara nas palavras e actos. Mas o mal estava feito. Não sou capaz de amar que não se ama a si próprio. O afastamento foi gradual, e quando começou a trabalhar aqui no Beato, pediu-me para ir ver a agência de filmes onde ela fazia os cenários. João tu fizeste-me mal, e todas as merdas que tinha feito. Ouvi. Pensei, e pedi-lhe desculpa, afinal, nunca fora a minha intenção. Mas todos somos, em maior ou menor grau, influenciados pelo estado emocional. Olhei seus olhinhos azuis e pedi desculpa por a ter magoado mesmo que inadvertidamente. Dei-lhe um abraço, um beijo na testa e fui-me embora. Ela não desistiu, e mandava-me vídeos dos locais onde trabalhara, com ela em roupas que permitiam ver a melhoria do seu corpo, decorrente da melhoria do seu estilo de vida. Era o anzol. Mas eu já sabia que era o mesmo que ir betumar uma nau no Restelo, que já ia a meio caminho para a Índia. Podia voltar por fim a transformar-me em lobo, mas o cansaço era tal, que era preferível rabiscar memórias e deixar-me ficar humano. Ou arriscar magoar gente decente que não merece. De todo.
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