Acordei e eram 3 da manhã no despertador. Fui à casa de banho lavar a cara, mas acabei por voltar à cama na esperança de adormecer. Fiquei irritado por não conseguir e saí da cama de vez. Lá fora o mundo chamava, e as auroras prometem sempre uma frescura amena consonante com a minha pele esticada. Moí grão de café, e deixei a máquina espremer aquosamente a cafeina para dentro da chávena. Há três anos que decidira ser escritor, desde que me dedicara por inteiro à Filosofia, e aprendera que podia debater qualquer assunto e ganhar qualquer discussão por força da minha postura de sofista, traidor da causa Filosófica. Fascinava-me o poder daquelas linhas pretas, especialmente se reflectiam na mente das cachopas que eu tentava impressionar com a minha verve e intelectualidade. Mas acima de tudo, o sentido possível na recombinação de palavras e tempos verbais, adjectivos a la Fialho de Almeida, ou descrições pormenorizadas a la Luiz Pacheco. O que escrevia visava ir direito à aorta de quem quer que fosse a miúda que me captasse a atenção, ou qualquer uma que me prometesse vulva, a minha droga. O futuro era o lugar da promessa, e sabia bem querer ir para lá o mais depressa possível, persegui-lo com as nossas fantasias, todas possíveis no indefinido correr dos momentos. Fascinava-me o fascínio quer pelas ideias quer pelas mulheres e seus corpos. Seus espíritos assustavam-me, facilmente me dissolvia neles, com contacto suficiente. Posso dizer que passei metade da minha vida a procurar uma relação com alguém que não dependesse da minha (ou dela) intervenção, e apenas fosse, um testemunho da operação de uma causa superior a nós. Que não pode ser meramente biológica, a não ser que os genes reconheçam em corpos alheios outros genes com quem se darão bem recombinados no pós-parto. Posso dizer que passei metade da minha vida a vê-la escolher sempre outros, à boleia do seu livre-arbítrio que sempre me tratou como relativo, embora eu sempre a tenha visto como absoluto. Nunca fui escolha, e já aprendi a aceitar isso. Não há problema. O facto de existir é suficiente. Agora sim, vou lavar o rosto, e tenho o focinho molhado, os olhos amarelos penetrantes e raiados de sangue, as orelhas erectas e negras cobertas de pelo. Um belo lobo negro e luzidio. Sob duas paras vogo pelas ruas e conheço Paula. Escrevo-lhe poemas e sonho com ela na recruta. Troco um pacote de bolachas com recheio de geleia de morango, por um poster de uma tipa que tem uma cara exactamente como a dela, mas está nua à nossa frente, e tem mamas mais pequenas. Eu tinha de a ter comigo, seria a única forma de a guardar, e à sua lembrança, enquanto tinha ido para a Universidade e eu estava numa coberta a aprender a ser marinheiro. O contrato envolvia o pacote de bolachas e a visualização do poster sempre que solicitado. O meu cacifo era portanto o único que estava sempre aberto, e com multidões que perscrutavam regularmente o seu interior a apreciar a sósia da Paula. Fui o namorado mais pobre que a Paula alguma vez teve. Detestava os subúrbios e era obcecada com o que ela chamava de ‘segurança’. Fui ao seu casamento, convidado apenas para fazer número e parecer que ela tinha relações sociais e amigos, para a família do noivo. Eu e antigos colegas, a quem nunca voltou a contactar. Não podia censurá-la, pelas vezes que a usei por intermédio da sua sósia, para me aliviar o desejo. A última vez que nos vimos, mordeu-me no trapézio direito, quase a chegar à omoplata, cravando os dentes até que ajoelhei, mas felizmente era só músculo. Passei um dia mal, dois, três, e eventualmente recuperei, mas fiquei com uma pelada em grande parte do corpo. Depois foi Cristina, que também tinha essa fixação com a ‘segurança’. A história até foi engraçada, mas um completo desperdício, parece-me. Eu estava tão feliz naquele Natal, com trabalhos muito interessantes, para completar, passava os dias entre as bibliotecas, as piscinas e as tabelas de basquetebol. O seu queixo tremendo perguntava-me o que queria eu com ela, e eu respondia, sabes bem, não consigo ser mais claro que isto. Desflorada algures em Cascais, viemos de mão dada para as aulas, e sentíamos que o mundo era nosso e era aquela cumplicidade que sempre desejáramos num ser humano para aliviar mágoas passadas. Certa vez enquanto falava do céu, ela mordeu-me no pescoço, mesmo na jugular, e levou grande parte do meu sangue. Chorei por meses, mesmo que passando de cama em cama com outras. Uma delas Lúcia, que quando achou poder-me substituir com alguém melhor, me lançou nos braços de uma amiga encalhada, como se eu fosse um vibrador que se empresta depois de lavado, claro. Demorei uns dois anos a recuperar e caiu-me quase todo o pelo. Olhava ao espelho e já não tinha ar feroz ou de predador. Parecia mais um hominídeo, ou em vias de o ser. O meu rosto ganhava feições circulares, e os olhos estavam claramente à frente e lado a lado, para ter uma visão estereoscópica. Em cada cicatriz de maxilar na minha carninha, vou perdendo o viço de lobisomem, e tornando-me mais homem, o quer que seja que isso significa. O meu sangue não se repôs. Quem o bebeu não mo devolveu. Mas por um lado é bom, não tenho de dar a volta a sete freguesias para voltar a ser humano. Apenas ir sendo mordido, consumido…em lume brando. E não uivar.
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