I
Disse-lhe que era o gajo mais normal que ela conheceria. Riu-se. Insinuou através de palavras vagas e expressões de rosto bem vincadas na derme que eu tinha algo, 'pancada' na gíria, e que a minha certeza era disso sintoma. A certeza dela baseava-se na experiência muito pessoal da neurose, sobremedicada por uma mãe que por amor só queria fazer parar a dor de uma filha que como eu vivia revoltada, pela dor sofrida na infância e pela injustiça de uma vida que pareceu amaldiçoar a individuação. Ambos pertencemos à legião daqueles que vivem com as feridas abertas, e com as crostas destas. Imagina um cão, um homem ou mulher, mutilado e exangue mas ainda respirando e com forças para gemer e gritar de dor. Nós somos esses, esses de onde tudo o que dizemos, pensamos e fazemos, brota da dor, parte da mais profunda angústia. Não precisas de ser violado por alguém próximo. Até porque há vários tipos e graus de violação. A mais pequena e insuspeita coisa a que muitos parece ser trivial e existente para a superarmos, pode deixar cicatriz. A soma das cicatrizes daí decorrentes tornam o belo rosto da alma em superfície de inscrição dos estilhaços. Sim, há gente que a comeu bem pior. A vida. Há verdadeiras tragédias sob os rostos anónimos e as vidas monocórdicas. Pertencemos todos à mesma legião, não como vítimas, que o somos, há que assumir, mas como gente à volta dos seus demónios. O papel de vítima só se perpetua se voltares a cara à dor, se fugires dela. Como na grande obra de Virginia, 'The Hours', esconder-te não apaga nada. Gastas o tempo, extingues-te sem um lamento. Somos a legião que vive com a memória fresca da agressão. Se olhamos nos olhos de quem nos violenta ou se olhamos para o cortinado à espera que o mal passe, só depende de nós. Sem nunca deixarmos de ser o diapasão do golpe original. Nisso éramos irmãos, se bem que ela preferisse dormir de olhos fechados. II Lá na terra de onde vinha era conhecida como maluca. Em cada cidadão há um perito em psicologia, que sabe tudo o que pode afligir a alma do seu semelhante. O rótulo sempre fácil, aderia com força. Ela era nervosa, sem dúvida, a diferença é que tinha uma vulva a jogar a seu favor, um rosto gentil, um corpo mediano e uma malícia aprendida que faz a delícia de cada enforcado. Tinha um rabo photoshop, mamas com mamilos hirtos e maiores que a média, um clitóris a condizer, gostava de fornicar, e tal como eu usava a fornicação como analgésico. Quando se fornica não se pensa na dor, ou disso não se tem consciência. Acalma por uns instantes. Por isso é imperioso que se continue por muito tempo, só assim se tem um placebo de paz. Começara por baixo, esforçada como todas as partidárias de Eva, e também a isso forçada, o epicentro da sua dor havia sido o pai, que abandonou a família deixando-a a ela e à irmã ao encargo de uma mãe que se sacrificou por ambas. Trabalhara onde arranjara trabalho, passou alguns anos na noite desfilando atrás de um balcão, shots de tequila para o cliente e aprendizagem constante em como lidar com as solicitações masculinas, sempre mais vigorosas se a bebida as lubrificar. A noite cobrou o seu preço. Mostrou-me certa vez uma foto do meio-irmão, e na sua voz e palavras havia uma espécie de amargura em relação ao privilegiado que mesmo posterior lhe ficara com o pai. Era a mais velha. A irmã disfarçava melhor. Era mais discreta. Ser discreto não significa ser ponderado. Significa que não se chora para parecer bem. Susana revoltava-se com a dor, e como todos nós desesperados, mordemos em tudo o que nos tenta dar um afago de consolo, porque o desespero é tal que não sabemos de onde vem a dor, só que dói, dói muito. À noite perguntamos sem darmos ordem à consciência, (que prova que o assunto não está enterrado) porque aconteceu connosco, porquê eu, que é que eu fiz para merecer. Sim certo que outros tiveram pior, mas dificilmente sinto a dor do outro, a minha sinto bem, não preciso de me pôr no lugar de outrem, ela persiste mesmo contra a minha vontade. Também ela me prova que não sou dono de mim. Quem ela abominava acima de tudo, eram aqueles, da outra legião, sem traumas, com pais normais, sem feridas abertas por causa da privação. A bonomia aparece como ingenuidade saloia, a normalidade aceitável como lastro de chumbo da própria miséria. Se outro teve uma infância feliz isso só aumentará o contraste da minha infelicidade infantil. Como a mim, parecia-lhe que quem não é cínico em relação à vida não a conhece e vive num mundo cor-de-rosa. Quem não sabe que o mundo é o lugar da expiação, é ingénuo, e toda a ingenuidade só pode ser fraqueza de espírito ou fingimento. A isto associava-se também o ressentimento de cuspir em todos os que não haviam sido forjados na dor. E mesmo os que eram forjados na dor, só tinham equidade a seus olhos, se e somente se fossem cínicos. Se e somente se, de qualquer forma se conseguisse identificar com o seu sofrimento. Se não compreendesse que algo pudesse representar sofrimento, catalogava o tipo ou a tipa como ingénuo, ingénua. O seu cinismo tomava tons megalómanos. Adorava tipos de bem com a vida e adultos, porque lhe conformavam uma peça de teatro na qual a vida era monocórdica alegro ma non troppo em que por um lado invejava a sofisticação e superação destes, por outro adorava tirá-los do sério para provar a ela mesma que era só mais um ingénuo fingindo. Identificava esta ingenuidade, como sinal de distinção e sofisticação, como em tempos se encarava a obesidade como sinal de nobreza ou dignidade de nascimento. O seu sistema de valores oscilava em torno deste binómio metafísico e antropológico, o pessimismo e a luta de classes. Só continuamente provando a ela mesma que todos fingiam, podia ela acreditar que era verdadeira na dor que sentia. Identificava a aceitação dos infernos terrenos com a mais fidedigna narração da realidade. Retirava para si valor se se sentisse consciente desta terrível verdade onde o mundo se escora, e para confirmar essa imagem de si mesma, de quem sabe a verdade fatal e terrível, tinha de dar lições, de tempos a tempos, aos que simbolizavam o abandono paterno, esses tolos dos homens. Eu recebi a sua atenção meramente por ter um perfil no hi5 com retratos de filósofos, sob a designação dos meus mestres. Ela achou uma submissão abjecta da minha individualidade, como um tolinho que pede autógrafos, e por aí começámos a conversa. III Quando a olhava, negando a minha convicção de normalidade, ocorreu-me contar-lhe a história. Mas desde cedo percebi que Susana funciona na mentalidade do arruaceiro da noite. Se o porteiro da disco revela bondade, e franqueza, o arruaceiro confunde isso com fraqueza. Para ela franqueza era fraqueza, mas apenas até ao ponto em que a dissimulação lhe ardia na pele, pois estava farta que a tratassem com panos quentes, sentia nisso e correctamente, um tratamento preferencial no sentido de distância, como se fosse uma paciente a quem convém agradar para tomar o remédio ou não incomodar os outros. A realidade não fugia muito, periodicamente irrompia em crises nervosas ou discussão audível, e quem a conhecia, evitava a tal franqueza para impedir as erupções mais violentas. Ela ressentia-se com isto pois só lhe confirmava a crença não assumida da sua inadequação. A única conversa franca que tivemos foi mesmo essa, ela pedindo para eu não a tratar com essa vil deferência, e eu dizendo que só a tratava porque ela não era estável nos humores. Há nomes pomposos para essa merda. Bipolaridade e merdas semelhantes. Não, isso é tudo embrulhos de seda para a mais profunda revolta. É uma condenação à solidão, a emergência contínua da revolta, e sermos incapazes de passar aos outros o contágio. Todos vivendo como se não soubessem e nós ardendo como o arbusto da Montanha. Sendo consumidos mas perdurando. Oscilando em torno do sofrimento que parece tornar-nos únicos, e o desfalecimento ao pensar que todos sofrem e conseguem, de alguma forma, lidar melhor que nós Esforçamo-nos para lidar, com calma, mas o esforço de traição apenas acumula tensão para mais uma explosão. De tão próximos da nossa moléstia, não a conseguimos focar bem, nem sempre aparece clara, nem sempre aparece. A dos outros é sempre mais nítida sempre melhor adivinhada. Disse-lho. Disse que tinha pena, que a pena significa querer que o outro não tivesse passado por isso. Lamentar o seu sofrimento. Agradeceu-me com a sua ofensa e que dispensava a minha pena, que pena têm as galinhas. Ela havia sido muito feliz, tinha tido um namorado que lhe dava um orgasmo por dia e levava a restaurantes caros. Havia homens que a tratavam com muita consideração e eram malta positiva mas mesmo assim ela era infeliz. Precisava de mim para se branquear aos olhos da mana e da mãe. Facilmente confirmaria que coitada não teria sorte no amor, e os homens afinal são sempre iguais. A prova das minhas falhas morais tornadas públicas limparia todo o seu passado, mostrando-a como vítima, como a boa da fita (desde que controlasse a narração) aos olhos dos outros. Esta aprovação exterior seria mais uma Redenção a partir da via-sacra dos seus pecados. Era brusca e incapaz de algum sentimento mais terno, confundia esse proceder agreste com maturidade de carácter e perspicácia existencial. Gozava com as minhas histórias passadas, como se as mulheres que conheci tivessem sido umas tolas por se apaixonarem por mim, e tentava diminuir-me com as histórias dela e dos ex que façanhavam sexualmente e noutros sucessos da vida. Há mulheres que são tão inseguras ou absorvidas em fazer sofrer, que acham que é através do amesquinhamento do homem que o prendem. Que só o humilhando o prendem de forma a não sentirem elas o fel do abandono. Qualquer conversa íntima, era descartada como inútil e lamechas, contrária à imagem que queria ter de si. Só uma vez confidenciou ter-se sentido amada por mim, e mesmo quando perguntava o que eu achava da planta da sua futura casa que iria comprar, eu já percebia que a opinião que iria ouvir, não me incluía pelo tom da pergunta. Eu não faria parte desse futuro, suficientemente risonho para o confidenciar ao inimigo, (eu), mas não tão referente a ele que a entusiasmasse por demais. Ela estava completamente presa na sua narrativa da vida, a ginástica que ostensivamente demonstrava na horizontal não tinha par no plano mental. Não conseguia ser arrebatada por pensamentos não mundanos, e acreditava piamente no carácter de unicidade do seu sofrimento, e até a medida de maiores sofrimentos alheios só merecia respeito se de alguma forma comparáveis com os seus. Por isso nunca consegui demonstrar a franqueza, perante alguém que tentava evidenciar a todo o custo as minhas fraquezas de forma a confirmar as suas profecias auto realizadas, de forma a confirmar a visão que tinha do mundo, procurando neste apenas as provas que confirmariam a sua visão. Além de que tenho o hábito de dar em troca o mesmo veneno que me oferecem, como forma de dar uma lição, ao jeito de um missionário com mania de superioridade. Até que passei só a sonhar na narrativa que lhe contaria de forma a ela perceber que apesar de tudo, todos morremos sós e a sós com as nossas feridas que nunca irão sarar como a chaga de Filoctetes. Vão continuar a cheirar mal mesmo por debaixo das ligaduras. Certo dia esfreguei a lâmpada de Aladino e após escutar o Morse da chuva num beiral amiantizado ela esfumou-se como a maresia às primeiras luzes de uma madrugada de Verão. Transformou-se no mercurocromo que coloco na minha chaga aberta de forma a ter a ilusão de que está em tratamento. O conto que lhe narrei começava assim: IV «A excitação nervosa leva o seu tempo a acalmar, tal como a perna dormente que muito demoradamente vai permitindo a adiada locomoção. A violência acabara, ele não lhe batera no rosto, não a marcara na cara. Empurrou-a de um lado para o outro, rasgou-lhe a minissaia de ganga, sob a qual ela mostrava ao mundo o seu pernão que o envaidecia e glorificava aos olhos dos outros homens, que olhavam invejosos para ele pouco antes de olhar para ela com desejo, fazendo emergir, nele, a raiva da desconsideração, acumulada se em público, explodida em privado sob a desculpa que ela a provocara, provocando-os. Porra, por vezes as mulheres só querem ser adoradas, ou nem isso, só um pouco de atenção, que não sejam tomadas por garantidas, só porque presas ao casamento. Coitadas, só têm dois poderes neste mundo injusto. O poder de decisão na alcova, ou o da entrega resiliente e serôdia dedicação. Dar a vulva ou superar qualquer esforço para suplantar os homens no mundo dos homens. Algumas, poucas, ressentem-se desta injustiça, e tornam secreto o seu ressentimento, rara ou nunca confidenciado, senão em cochichos de regozijo quando o ovo já jaz na cloaca da galinha. A juventude inebriante e a grácil compleição do jovem corpo confirmam a qualquer ninfeta e mancebo que o Cosmos só confirma a excepção da sua individuação. Somos feitos de remoinhos de infinito, deep roller chama-lhes Hannibal Lecter, o carácter funda-se neles. Aquele ali, apanhado num que carrega a sede de valor, bate na mulher e oprime o filho. Identifica os seus defeitos como o seu carácter, e o seu carácter consigo mesmo. Desde cedo se viu forçado a defender-se no mitomaníaco esforço de não reviver o abandono materno nem a dura palmada paterna, que antigamente muita gente se criava à porrada. Há qualquer coisa de orgiástico na violência. Há mulheres que se molham, há homens que se aliviam. A nossa legião é uma corrente de aço onde somos os elos corroídos, uns mais que outros. Eu como outros encontramo-nos nos anéis de aço de braços dados na vertical, na linha por onde corre a água a partir de uma caleira silenciando o som da água precipitada. A criança perde cedo demais os seus guerreiros. Ao ver a mãe ser agredida só a aflição se torna reconhecida como aflição, torna-se a toca. O castelo sem guerreiros que protejam o rei, torna-se uma mera toca. A criança Sol torna-se num asteroide insignificante. Sente-se impotente para parar o quer que seja. Por vezes é ela o alvo da agressão, e fica sem saber o que é pior, se ver a mãe ser esbofeteada, se ela própria levar as pancadas. Desde cedo morrem os guerreiros da sua casa psíquica. Ganha uma reacção à tensão e à violência, primal, que se sente na próstata e no ânus, dali para todo o sempre. A sua casa mental nunca mais terá fechadura na porta. Entrará quem quiser, para habitar ou destruir. Se é inequivocamente impotente, se não depende de si fazer respeitar as suas fronteiras, a criança torna-se uma não entidade, opaca especialmente para si mesma. Alheia ao seu significado mais íntimo, completamente insegura até no seu respirar. O agressor é incapaz de se ver como tal. Só numa muito rara e estrangulada voz interior lhe chegam ecos, em determinadas décadas, de tal possibilidade. Vê no olhar do outro o estigma da rejeição, instantes antes de desferir a parte do seu corpo que transmitirá a energia que provocará a dor no corpo que é alvo. Como imediata expressão da sua incapacidade de lidar de outra forma. Veste as suas razões como bonecas, e preenche a sua casa com elas, ora o educador, ora o jardineiro de uma ordem correcta das coisas, arauto de justiça. Vinga-se do olhar de rejeição que incansavelmente tenta evitar reviver, aumentando a pressão e precisão da sua violência com fim. Rejeitas-me pois levas mais. Fica magoado por ser rejeitado. Fica magoado por não ser aceite como é. Logo ali, na sua casa, por sua mulher, por seu filho. Justificada a violência com as suas razões, criado o mundo fantasioso em que as acções são justificadas a posteriori revolta-se perante a impotência de vergar os outros à sua vontade, não que esta seja censurável, mas porque os outros, conspiram contra ele, pelas costas, pela calada, odiando-o em segredo, de forma cínica. Só conhece a pancada e o sarcasmo como forma de educação. Ele resultou bem, portanto se levou, repete a receita, pois a mesma é infalível. A sua certeza e dignidade fortalecem-se tomando contornos de correcção, afinal ninguém o entende ou parece entender na sua boa vontade educadora, no fundo acto de amor que prova o quão bom e incompreendido ele é. As prevaricações contra a sua vontade são golpes directos contra ele, e quando inicia o baile só quando descarregou toda a raiva contra os prevaricadores é que acalma, afinal quem é a mulher para o confrontar com as provas do adultério, ou o filho ir para a rua brincar quando ele lhe ordenou fazer por dia 100 cópias de um texto do livro de português, ou 200 cópias da tabuada completa? A porrada é tão pura, tão directa, tão eficaz. Mas apesar de tudo não chega. Ao mesmo tempo que não chega, sente remorsos. Tem de haver uma maneira para manter o condicionamento e evitar o remorso de meter alguém aos gritos de dor e de medo, e com olhos vermelhos do choro e aflição. Pode ser um manipulador malicioso com o filho, e ter mais tacto com a mulher. Precisa dela para evacuar o desejo e para cumprir no lar. Ao sentir-se desaprovado como pessoa, e não como centro de acções, faz corresponder um conjunto de regras e formas de proceder que garantam o seu grande plano final. Mulher e filho são sua propriedade ao mesmo tempo que âncoras que o arrastam para o fundo para longe das aventuras eróticas em promessa pelo vento, e que lhe gastam o dinheiro em coisas supérfluas como comer e vestir. Não perde uma oportunidade de fazer ver ao filho o quão irrelevante ele é, nem de o meter na linha mesmo que não precise. O medo que instiga acaba por ser insuportável e tornar-se em animosidade, não manifestada senão volta a velha da pancada em intensidade nem sequer imaginada. Transforma o filho em passivo-agressivo. Sente-se em controlo pela primeira vez na vida, tem um reino onde é rei e gosta de pensar em si como monarca esclarecido e amado pelo povo, ressentindo-se quando a reacção é a de ser tratado como tirano. Um mitómano não conhece o significado de objectividade, irá sempre moldar a narração dos acontecimentos de forma a elaborar a versão mais conveniente para si, daquilo que se passou. Trinta anos passados continua a acreditar que o que fez foi o mais adequado, e os responsáveis pelas tareias foram quem as levou. Extra afável com os de fora, ditador opressivo intra muros. Com todas as fugas de Piombi, ninguém gosta de excesso de autoridade nem de estar preso. Não é a merda que faz que o torna responsável. Não, os outros é que conspiram e falam mal dele nas suas costas. Ninguém é capaz de dizer-lhe que está errado, e que é doente. Preferem continuar a privar com ele, e de qualquer forma em família alheia não se mete a colher. E afinal trabalha. O trabalho santifica tudo. O agressor, se trabalhador, é branqueado como educador à antiga, ou excêntrico. O ditador sente a importância no medo que mulher e filho revelam nos olhos, e oprime para que nada saia de seu controlo. Só através da violência chegarão todos ao final feliz divisado por ele, certo de que no fim, finalmente será compreendido e agradecido pela visão e convicção no método e meta almejados. Amargurado e ressentido pela merda que teve de suportar na vida, esquarteja a golpes de machado a merda de ideia ou voz que o tornam filho da merda que teve de passar na vida. Sente-se mais homem e forte por proceder assim. E o mecanismo de auto protecção do ego assim o impede. Faz o filho odiar os momentos em que partilham o mesmo espaço. Sempre tão afável para os outros uma besta para a carne da sua carne. Mete os cornos à mãe, dá dinheiro para casa a conta-gotas e não sem submeter a mulher a um longo trajecto de pedidos, poupando sem reserva para comprar carros atrás de carros, para poder mostrar aos outros, para provar que sucedeu na vida, não é ninguém, para aumentar a facilidade com que faz suceder as suas conquistas fora do lar. A voz da consciência esbraceja lá muito no fundo esmagada sob o peso de uma bota da tropa que a silencia e humilha, tanto quanto à criança que em situações sociais nunca escaparia ao olhar reprovador. Essa consciência de tão fundo e afogada só dá sinal de existir nas bolhas ofegantes que sobem à superfície para explodir, entre eras geológicas. Essa voz cria um eco desagradável na mente do agressor, insinuando que o seu desespero faz sofrer outros, mas ao tomar consciência, entre isso e abdicar do poder que obtém a partir de humilhar e bater no outro, vendo-se a si mesmo como importante no olhar receoso do agredido, nem por nada se pode perder a fonte de valor. Não pode dar tréguas aos remorsos. Um dia que consiga, já não conseguirá viver consigo mesmo. Renegar e magoar são os únicos poderes que lhe restam. Vira-os para o filho. Esse filho da puta a quem a mãe não abandonou e tem tudo de bom da vida que ele próprio não teve. A submissão da criança soa-lhe a fraqueza que rejeita em algo que veja como sua propriedade. Por contraposição a uma imagem distorcida que tem da sua própria infância longínqua e das respectivas capacidades de resiliência nessa idade. O afastamento progressivo e não calculista, a favor da mãe aumenta-lhe o ressentimento para com o filho que injustamente prefere a pessoa que lhe dá amor em vez do incompreendido que afaga com punho fechado. Sabe bem sentirmo-nos vítimas com a mão ainda no chicote. Rejeitado pelo pai, o filho rejeita-o de volta. Não sem antes interiorizar ser portador de uma qualquer falha que levou o pai a rejeitá-lo. A tensão nervosa não mais o abandonará. Interioriza que é inadequado e que tem de se esforçar para ser aceite. Os de fora topam-lhe a fraqueza e usam-na bem. Humilham-no e amaldiçoa a existência que o revela como filho de um deus menor. Acredita que tem sempre algo que fazer para comprar o apreço dos outros, macera-se e mutila-se, despede-se da sua espontaneidade cavando ainda mais o fosso entre si e todos os outros. Os próximos, os semelhantes. Isola-se, perde o comboio da socialização. Passa a viver no único sítio onde o respeitam, de onde não pode ser expulso, da sua cabeça. A certeza sobre a sua incapacidade, sobre a sua ferida, levam-no a não perceber porque é magoado com a rejeição das miúdas. Porque os homens o rejeitam como igual ou sequer digno de existir entre eles. Tratam-no como provinciano nhurro, que nada sabe das coisas. Tudo o que é mundo só lhe vem confirmar a merda que pensa de si próprio. V Na cantina da C+S tocavam os Transvision Vamp e o espaço era preenchido por corpos de Novo Mundo mexendo-se freneticamente ao ritmo do som que ia saindo dos aparelhos de som. A jovem ninfa deixa antever sob a imaculada camisa branca, cujas extremidades inferiores recebem um nó pela altura do umbigo, vislumbres do soutien, que mais não é que o post-it para os seios que sob ele existem acabrunhados. Uma fêmea linda, bronzeada, cabelos castanhos alourados, com as carnes rijas de 17 anos, bem vestida e aprumada, não só uma deusa de sexo mas também um símbolo de prestígio. Como posso ter acesso a esta promessa de céu? Gotículas de suor cristalino hibernam na sua testa, ocasionalmente escorrendo pelo rosto de gentis feições, por vezes olhos semi cerrados em enigmáticas e hipnóticas expressões de entrega e sensualidade, também ele o peito sob o ponto supraesternal alberga gotículas de suor lambíveis como mosto morno e alcoólico pelo qual trocaria uma vida de sujeição. Saia xadrez vermelho, impecavelmente acompanhada por meias pretas até à cintura, numa composição em que a deusa espreita para mim através do indivíduo num enigmático não, vais ter de esperar mais 4 anos até iniciares o percurso na via da tua libido. Eu e outros estes outros observados por mim, arredados do centro do palco, reservado a mancebos mais sofisticados, mais libertos da carência, quem tem fome não come, e eu durante tanto tempo a pensar que se me mostrasse esfomeado seria recompensado. Os marginais, fora do circuito namoradeiro vingávamos a frustração e inadequação falando das proezas alheias, e da existência de estratégias seguras para ter acesso a tais musas cósmicas, contribuindo só para o propagar de ideias feitas e cosmogonias idiotas entre nós. Espalha-se que há um método, algo bem mais aceitável de entender que a verdade é esotérica. Um método, uma forma correcta de agir que garantirá o acesso à vagina, única resposta concebível para o inferno da testosterona e sonhos nocturnos. Mesmo que não se entenda, chora-se ladra-se de desespero, à espera que nos façam um afago para mordermos porque não sabemos o que fazer com a dor lancinante que não tem meio de ser apaziguada. Há um método. Agradar-lhes. Parece óbvio. Elas conhecem esta nossa paixão pelo óbvio, pelo metódico, pelo ordenado. Usam-na para calibrar o nó da forca. Com sorrisos ou caras feias condicionam os comportamentos, convictas de que estão a educar. Através do elogio ou da subtil critica sabem que desfazem o tronco do jovem homem, que sem acesso às raízes se encontra à mercê do vento e da queda. E elas adoram todos aqueles apegados às suas raízes. Como gato que brinca com pardal meio morto, a sedução é o novo jogo que se domina, quando perdem interesse pelo capricho em forma de jogo, já o desgraçado do pardal havia quase desistido de lutar pela vida. Os mais desesperados fazem questão de saber jogar o jogo, e focam-se nisso. Quando o aprendem sentem que a diferença para com os demais é a mesma que separa a borboleta do bulldozer. No mundo em que nos tratamos como enteados desagradáveis, ter uma namorada é a única forma de validação possível para uma vida de vergonha em ser pobre. Especialmente porque se é pobre, pois sendo pobre e ainda assim tendo namorada, tem atributos secretos para os outros. Vergonha de ser pobre. Vergonha de não ser sofisticado. Vergonha de ter um pai que bate na mãe, e de ser um desperdício para o pai que vê nele desperdiçados oxigénio e víveres. Pouco adianta lhes dizeres que gostas delas. Que passas o tempo a pensar nela. Que gostavas de sentir o calor dos seus lábios na tua boca e de beber a sua expiração ofegante. Levas nos cornos em casa. Não apenas fisicamente – porque nem apanhou assim tanto- umas 7 ou 8 vezes com o cinto- o medo da dor tornou-o bem submisso- mas com votos de silêncio e condenações ao desprezo, constantes insinuações sobre a boa vida que iria acabar e que não acabara já porque o Estado não permite que os adolescentes trabalhem sem terminar a escolaridade. O meu futuro nas obras, tinha de me forjar como aço ou nos trabalhos menos considerados ou na tropa. A via paterna apresentada como cura para a sua inadequação, a representação do amor materno como mimos a mais, como efeminação a partir da boca de um pai que não esboçava um sorriso para ele, não lhe dava um abraço, não lhe fazia uma festa na cabeça, nunca disse que o amava, ou que tinha orgulho dele. O pai proibia-o de ir para a rua brincar. Nunca percebeu bem o motivo, parecia que era por medo que ficasse debaixo de um carro, ou para não se portar mal como os reguilas coevos. Mas nunca deixou de suspeitar que era por velhaquice pura, pois não o deixava ir brincar com os primos ou socializar de uma forma geral. Pouco ou nada oferecia ao filho, e não permitia que outros o fizessem. Quando tal acontecia destilava o ressentimento com o filho. A dialéctica do ressentimento, apesar de tudo o filho não se humilhava nem se subjugava totalmente. Nem a mulher. É impossível subjugar completamente alguém. Não além do óbvio infantil. Isso só aumentava o grau do seu desprezo e opressão, as proibições como castigo. Tentar criar uma criança no confinamento de um espaço fechado. Não lhe dava uma polegada de confiança. Quer a natureza das coisas que neste ambiente disfuncional as crianças disfuncionais ou sejam vítimas ou agressores. No caso da sua dócil natureza, foi vítima. Teve uma infância feliz contudo. Esta é a mancha, a ferida aberta, que borra uma pintura em tons de felicidade geral. A natureza e este condicionamento fizeram com que fosse aprender a ordem de bicagem com um pé manco, e caso fosse esta a vida da savana não civilizada pela cultura, teria sido com toda a certeza um macho delta condenado a não procriar. A insegurança e a pouca auto estima são já uma casa para ele. Condenado, enquanto não perceber os mecanismos evolutivos e psicológicos envolvidos, a ser submisso, manipulável, infeliz na sua vida, por causas a ele alheias. Não por nascer com determinado temperamento, mas porque a miséria humana propaga a triste indigência da condição humana, pais disfuncionais propagam, como vírus ou doença leprosa, a disfuncionalidade pelas gerações do futuro. Poucos emergem desta inevitabilidade. Poucos se furtam à pobreza e a sair dela, condição necessária para extirpar a infâmia da ignorância cruel e atávica. Vagas sucessivas sem acesso às proteínas e calorias necessárias, gerações com passagens de testemunho através das crianças nas idades mais impressionáveis. A pobreza não é uma condição social, é uma doença do corpo e do espírito. Só a República o pode combater, numa luta sem quartel a favor da instrução e da igualdade. N legionários como ele condenados a ter medo, a não compreender, a por fim aceitar a derrota, o medo, o medo de ser rejeitado, da agressão, a cobardia de trocar a sua personalidade por afeição e aprovação, como podes achar-te normal quando um pai te ostraciza e abandona, e se esforça por te ignorar ou desprezar psicologicamente, da maneira mais intensa por todos os motivos mais o facto de saber que a mãe gosta sempre mais do filho que do marido. Como podes achar-te normal quando o pai exerce a sua vingança do mundo na figura dos seus filhos, para se sentir empossado. Como achas que tens controlo na construção do inimigo interior que surge a partir da ferida, esse ser insidioso que apenas quer a tua menorização, tudo de mal para ti menos a tua morte, mas somente para continuar a esfaquear-te a mutilar-te, e ele mesmo a persistir. Quantos não choram de noite por não entender estas dinâmicas, estes lobos esfaimados por sangue e autofagia que boicotam todos os melhores esforços de evolução e sanidade. Cresces com o tal sistema reticular a procurar, a filtrar, a realidade de forma a encontrar a confirmação da crença interior de imerecimento, de inadequação, de menorização, de submissão, de rejeição. As afiadas esporas jamais largarão o macio ventre da autoestima. Cresces a sentir que tens de descobrir o método para o sucesso que precisas de criar uma personagem para desempenhares, já que por ti mesmo não serves. Seres quem és é a início estranho e exige grande esforço. Não estás habituado. Quanto mais foges, maior é a ansiedade na proporção do esforço que evita que se repita. Depois do ciclo vicioso instalado, a roda de infinito não cessará de rodar, queimando as existências e as potencialidades ao ritmo da areia da ampulheta. Quanto mais o indivíduo carrega dentro de si maior número de ralos por onde se esvai a sua energia vital, maior será o aspecto cadavérico do seu ser canibalizado por todos aqueles que vivem à conta da energia dos fracos, especialmente o inimigo interior, o demónio da dúvida o destruidor de mundos. O homem como lobo do homem não deve ser imaginado apenas entre estranhos, ou sanguinários humanóides em ambientes apocalípticos. Acontece entre crianças e parentes. Confirma-se a verdade suspeita e universal de que não há livro de instruções e a navegação é de cabotagem dando ares de transatlântica. Como num quadro de Bosh. A nossa legião é uma corrente de aço onde somos os elos corroídos, uns mais que outros. Somos os elos que testemunham pelas gerações os fluxos e refluxos da miséria humana, onde os inocentes são a presa e os culpados são ingénuos. VI Ao terminar, percebi que tinha uma cara de rejeição, a partir do segundo parágrafo. Colocado no cárcere dos idiotas, dificilmente e só por milagre sairia de lá. A minha historieta só lhe confirmava que eu era um tolinho. Que nada percebia das coisas. Nestas alturas percebemos por intuição quando o outro se acha completamente superior a nós. Acrescentei: «Deixa de odiar os homens Susana. O único sofisma que podes levar ao banco é o de que só na tristeza somos irmãos. Hasteia a bandeira branca, dentro de ti e com o mundo. Não é por sermos filhos da puta uns para os outros que a classe precisa de reprodução assistida. O pobre diabo é um ser como tu, às voltas com um monstro que o consome no interior sem que saiba. Sem soberba, pena por ele.» «Nem penses, se baixamos a guarda passam-nos por cima, e prefiro ser agressora a vítima. Dispenso a tua espiritualidade de trazer por casa. A tua retórica de merda não me impressiona.» VII Dando-me por vencido, peguei nos meus chinelos amarelos, para fora da sua casa, com o ar da noite parecendo-me mais limpo que nunca. Outrora achara que a postura conciliadora da total humildade era ingénua. Condoía-me por ver outro ser humano finito, corroído pelo cilício do infinito.
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