Os seus lábios tímidos esmurravam-se contra a minha boca, que retorquia não mais que cheiro de estômago vazio e alcatrão do cigarro que eu acabara de fumar. Preciso da nicotina para me manter no presente. Ela pretendia convencer-me de um assomo de paixão, com movimentos bruscos imitados da sua ideia do que era o tipo de mulheres que eu frequentava. Insegura perante o que desconhecia, o suficiente para não me querer perder, pelo menos para já. No corredor do hospital, faz força para que eu me levante, e arrasta-me para o sítio onde guardam as esfregonas e o papel higiénico. Andou a planear isto durante a semana toda, e é já com a minha pila na sua boca, que volta aos movimentos bruscos, olhando para cima e perguntando ‘-Gostas de mim porque sou maluca não é?» «-Não, gosto de ti por seres quem és.» Mas a resposta passou-lhe ao lado, pois investira demais na personagem que acharia que me cativaria, que na realidade mais simples de que eu gostava dela, apesar das encenações. Tinha uma doença má, fora o que me dissera quando me chamou a ir ter com ela ao hospital. Eu evitava agarrar-lhe no cabelo, enquanto me chupava a pila de forma circense, numa lógica infantil de achar que o excêntrico corresponde sempre ao inesquecível, e o que ela mais queria era não ser esquecida. A lembrança é mais querida aos moribundos, que a própria vida. A espaços dava com ela a olhar para o meu falo, como que absorvendo a imagem, fosse para recordar, fosse, o que é mais provável, para desmistificar algo que tivera inacessível por bastante tempo. Por escolha própria, pois o que não falta no mundo são pilas disponíveis. Mas poucas, creio, que tragam agarrado a elas, algum significado. Foi ela que formulou a resposta a uma antiga equação minha: «-João, tu andas a mortificar-te por causa das alterações de gostos da individualidade de outras pessoas.» É verdade, as pessoas mudam, algumas tornam-se mais parvas. Outras evoluem e amadurecem. Faço-lhe festas no rosto e consigo ver ainda as feições outrora juvenis, que constituiriam o seu encanto passado, bem como o crânio adiado da morte que nos esperava a ambos. Tive vontade de chorar, por nós, mas arranjei-lhe o cabelo com carinho, mesmo desviando ela, o rosto, como se não quisesse ser tocada por mim. Pela primeira vez, vi com claridade o desespero de alguém que me queria a todo custo não perder. «-João, tens o ascendente em Balança, o que é chato.» «-Chato porquê?» perguntei eu. «-Porque em Balança significa que pensas demasiado nas coisas.» «-E isso é chato para ti, não é?» «-Porquê?» «-Porque se eu não cogitasse nas coisas, era mais fácil engolir tudo o que dizes e fazes.» Riu-se, como que se apanhada com a mão dentro do frasco das bolachas. Estava no caminho final da sua breve passagem, e desabei em choro que só a deixou sem saber como reagir. Era ela que me ia fazendo festas no cabelo para ver se eu deixava de chorar. Na cara de cada pessoa, vemos, se olharmos com atenção, o rosto de Deus, mas também a história de cada um até à hora da sua morte. Para trás deixei as birras que ela fizera só com a finalidade de estabelecer que mandava nos dois, os afastamentos intencionais, os silêncios programados, para ver se me forçava a mim a iniciar conversa, tornando-me o perseguidor, ergo, aquele que tem valor subalterno. Estes joguinhos infantis que só me mostravam que ela jogava o mesmo jogo que toda a gente joga, inclusive as pessoas do seu passado. Para quê criticar ou trazer à luz? Há que dar aos outros a benesse de serem humanos à vontade, dando-lhes também corda suficiente. Recordo o caminho que fazia, depois de a trair com outras, pelas ruas em silêncio na noite alta, porque gosto de andar a pé, e olhar para os prédios dormentes, e perguntar porque não desaba em mim o mundo por virtude dos meus pecados e falhas morais. Lamentando cada barata que agoniza com alguma extremidade esmagada, até que a morte atrasada se apresse a vir, e a libertar. São às dezenas no pavimento cinzento da noite de Lisboa, pobres bichos que como nós, não pediram para nascer e para serem considerados pouco mais que merda ambulante, por quem não perde alguma vez, meia dúzia de segundos a pensar. As baratas, penso eu, de certeza que nunca observarão uma fêmea que se retrai emocionalmente porque não observa um comportamento que idealiza, na sua contraparte. Só mete o pezinho na piscina, se a contraparte já tiver água até ao joelho. Uma que foi Natal passado, dizia-me que as mulheres inventaram o amor. Não tenho a mínima dúvida. O amor como um paradigma propagandístico que visa fazer baixar as defesas, ou o espírito crítico. Precisamente como o ventríloquo faz com o boneco onde enfia a mão. Quando as coisas não correm como querem, ou de acordo com as rotinas ou padrões que assinalaram noutros, tornam-se frias, cabras, distantes. Deixá-las ser humanas. Deixá-las contorcer esmagadas pela sua incapacidade de trata cada um como o primeiro. Estamos condenados a levar com a merda que os outros lhes fizeram, ou elas fizeram a si mesmas. Chegava à minha porta e encontrava o senhor Alberto Lopes, muito parado e olhado fixamente para o sinal triangular de perda de prioridade, bem no meio da estrada. Então senhor Alberto, como vai isso. Eu ligava para a PSP que ligava para a filha dele o ir buscar. ‘-No meu julgamento perante a Providência, vou pagar por tudo o que fiz.» A discussão era velha. Eu dizia que Deus perdoa tudo, e ele dizia que não, que tinha encornado o seu primeiro sócio e que por isso, Deus aguardava por ele com a palmatória do Seu Ódio. Eu ainda argumentava para que serviria um Deus que não é capaz de perdoar isto de sermos humanos, o quer que signifique esse cliché. Mas invariavelmente chegava o carro-patrulha, onde Alberto ao entrar censurava os agentes, por o carro cheirar a tabaco. Ainda com a fita no pulso, do hospício de onde se evadira para vir olhar o sinal de trânsito à espera de alguém notasse que estava vivo, ainda. «-Não chores, João.» dizia-me ela, sofrendo mais comigo que com o fim próximo. Abraçando-a, ela percebeu que eu não chorava apenas por ela, mas por ela, pela minha cadela, pelas pessoas à minha volta que significam algo para mim. Que vemos o nosso definhar no rosto um dos outros. E sim, também aquelas a quem olhámos em silêncio, na expressão da sua humanidade, menos enlevada em cogitações de suplantação do umbigo comezinho, e mais entregues às visões limitadas de olhar para esta merda toda a partir do ponto de vista que o mundo é uma coisa pessoal que acontece a cada uma. E que ninguém sabe que pensamentos segredam ao travesseiro. Tirou a bata e mostrou-se nua, no meio do corredor, que achas João? Tenho as mamas ainda boas. Rodava como bolo em vitrine, para que eu olhasse para ela e a gabasse. Tropeçava nos tubos do plasma intravenoso, e eu pensava em mim como caracol que se arrasta no gume de uma lâmina e de que é preciso continuar em frente. Sofismava que ‘elas’ eram incapazes dessa lenta anulação por amor da verdade, sempre olhando para o gajo, a ver se as coisas são feitas com ‘equidade’, justificando para si, que se resguardam para não serem magoadas. Projectando nos outros as suas próprias folias e critérios judicativos de crianças de tenra idade. A sua inadequação, provocava-me compaixão, pois no mundo cão, os ingénuos são comidos e cuspidos fora. Numa longa sucessão de casos dolorosos, em que o sujeito nunca chega à compreensão da razão de ser do comportamento dos outros. «-Sou muito espontânea, João!» «-Pois és linda!» Dançava em torno de si nua, uma ou outra enfermeira fingia não ver. O desapego não me afastou dos outros. Apenas me permite que os possa perdoar, e acima de tudo ver-me como apenas mais um a quem tenho de pedir desculpas. Dançando nu num qualquer purgatório à espera que a morte nos leve pela mão, a mim e a ela, enquanto o meu julgamento não chega.
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