O entardecer no quarto foi cinzento alaranjado como costumam ser as tardes quentes de Outono.
Suado e exausto, tenho a perna meio jogada de joelho para fora da cama. Tu estás lançada no lado direito da cama mais próxima da janela aberta por onde olho com cortinados leves voando ao vento na casa deserta. Pouso a mão primeiro nas tuas costas sobre um dos rins, depois na nádega que momentos antes também dançara ao ritmo dos nossos gemidos. Dormitas eu não, olho lá longe melancólico o rupestre quadro que entra pela janela, e toda a melancolia do mundo, como sempre vem à existência no meu pensamento. Olho para a paisagem sem a ver, vejo só o caminho até ti, tudo o que te escrevi, disse, fiz, pensei, nessa via sacra que foi impregnar-me naquilo a que os antigos chamavam de alma. A tua alma. Tudo para chegar a ti que naquele leito naquele momento vais dormitar, de barriga para baixo espalhada pela cama, e eu vou gostar de pensar em ti como estando feliz. Não consigo adormecer.Fico contigo, ao teu lado em vigília. Sei que entrei na tua vida e faço parte dela. Sei que se me for embora vais ficar destroçada, partida, moída, magoada. Sei que gostas de mim, daquilo que em mim vês e que nem eu próprio sei o que é. Acarinhaste-me dentro de ti e lá dentro esse eu meu cresceu. Ficou a fazer parte de ti. Impregnei-te de mim, engravidaste-te de mim e agora vivemos juntos separados um no outro. Neste momento em que escrevo e penso em ti com mais força, sei que cada segundo que o faço, te traz cada vez mais para mim. Olho bem para os teus pormenores. Aumenta a melancolia ao pensar que aquilo que é meu nunca por mim será totalmente apreendido. Nunca sentirei todas as variações do calor do teu corpo esmagado contra mim, nunca provarei todas as variantes do gosto da tua língua ao longo de um dia completo. Por mais vezes que tomemos o corpo um do outro, aquilo que realmente és é-me totalmente inacessível. Tu és minha. A melancolia cresce e com ela a impotência em ter-se aquilo que tanto se quer, e assim condenados estamos a não ser mais que invólucros de nós próprios, oferendas para o outro, no mais bonito papel de embrulho que conseguirmos fabricar. Convencidos de que entregámos o que de mais precioso e secreto somos. Lembras-te? Nesse dia que está a chegar, está para vir, iremos sair. Lembras-te? Nesse dia que está para vir, não vou querer ver o Sol deitar-se num sitío que não vejo, sentindo a lenta agonia do dia que se esvai. Terei de sair de lá, da tua cama, pois com o silêncio da noite vem o desespero do silêncio de um dia passado a fazer amor. E que tal carga de intensidade quero eu, que não aguento o normal desenrolar de um dia. Aproveito para te cobrir a pele de beijos, numa liturgia de carinho automatizada. Na boca no pescoço, nos seios, na pele mais macia no flanco logo acima das tuas ancas, na barriga... Digo-te ao ouvido, 'Veste-te. Vamos sair.' Fascinada comigo e com o início de uma nova relação que promete e que como a água do mar, lava o Sal das lágrimas das relações anteriores. Vês-te no meu carro voando pelo Guincho para a Marginal. Levo-te a uma enseada por poucos conhecida e por pescadores frequentada. Na noite alta nos atrevemos a descer as escadas e onde paramos sentados num degrau. Por já só se ver o braço branco de espuma que se mata teimosamente contra as gigantescas praias de pedra, olho para baixo. Olho para ti abraço-te. Temos o abismo a nossos pés.
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