Engraçado. Quando estás sozinho ou sozinha e a precisar de contacto humano, e ninguém se lembra de seres vivo. E quando queres estar sozinho, parece que o telefone não pára. Amordaçado por um desejo de inconsciência que me fizesse esquecer a imoralidade de umas sandes de paio francês com grãos de pimenta acompanhados por cerveja de abadia, esforçava-me por não lembrar os bichos inocentes mortos para o meu prazer gustativo. Ouvira algures no talho alguém dizer que leitão é imoral, mas porco adulto aceitável, pois temos de viver e um porco adulto já viveu a sua vida. Ao ouvir isto, perguntei-me, foda-se? A sério? Um desgraçado de um porco criado em linha de montagem onde só conhece o cimento que o confina da engorda à morte. Vomitei-me de culpa e lamentei a minha condição de humano com carácter fraco. Meti o caralho das sandes de lado e enterrei-me nos braços da cerveja para não ter de pensar. Como faço com as gajas e com a ideia de amor, entretido com elas, para não ter de pensar nas ‘realidades’ da ‘vida’ que custam a engolir. Mini após mini, enchia-me de álcool para não ter de pensar. Cerveja, pois, é que a cerveja faz-me mijar ao fim de meia hora. Se bebesse destiladas, mais facilmente arruinava o fígado, e o cérebro, pois não me fazem parar e mictar tanto. Entretido com este pensamento, e estarrecido no sofá, escuto o toque do smartphone. Era Rosário. Que me queria ver, que precisava mesmo de falar comigo. Ou escutar o que me dizia e a sua entoação, fiquei preocupado. Mas já tantas vezes estas gajas me tentaram manipular, que pensei que fosse novo estratagema. Que ao não lhes prestar atenção, lhes estímulo a jactância, e que por isso investem tudo para conseguir o biscoito e provar a elas mesmas que me têm quando querem. Sim, é assim que elas são. Fiquei em sobressalto, por algo do que disse, mas mesmo assim desvalorizei. Quantas e quantas vezes já não me enganaram com situações sérias que não passavam de esquemas para me abrir a armadura, e eu caí? Assim de que forma, fui eu para sua casa a imaginar as maneiras como a ia comer. Encostá-la à sua cómoda de frente para o espelho, ou de pernas abertas com a janela escancarada. Lambendo-lhe os cantos da boca a partir de trás, ou puxando-lhe o rabo-de-cavalo pela base da nuca. Ia com sede ao pote, mas ao mesmo tempo com a suspeita em surdina, chama-lhe intuição, de que o que esta mulher precisava era de uma relação humana e honesta, e não de uma sessão de fodanga. Recriminava-me depois, pois se não manifestara antes, qualquer respeito por mim, porque havia eu de o fazer, provando ser o conas, ou vá lá, o gajo decente, que ela nunca escolheu ou respeitou? Estacionei o carro, e ao entrar pela porta da casa dela, vazia e sepulcral, vi umas velas em cima da dita cómoda, e pensei ui ui temos foda. Mas assim que me disse boa noite, percebi pela voz, que algo de profundamente errado se passava com este ser humano. Perguntei se estava bem, disse que sim com a cabeça, num gesto exagerado que visava esconder dentro de si a resposta oposta. Convidou-me a sentar na mesa da cozinha, os filhos tinham ido passar a Páscoa com a avó, e ela estava sozinha em casa. Fodanga pensei eu. Mas se não me agarrou o marsápio à entrada, quer que as coisas se desenrolem…desenrolem devagar. Ok, sento-me e aceito o café que me serve. Para que me está a servir café? Quer que eu não durma a noite toda? Fodanga, está a preparar-me para a fodanga. «-João, porque é que nunca nos envolvemos antes do meu casamento? Tens-me dado ajuda e conselhos nesta fase da minha vida, que agradeço muito, mas não posso deixar de pensar porque é que nunca me apareceste no radar do romanticamente possível.» Foda-se. Não há fodanga para ninguém. Esta era uma pergunta séria e sinistra. «-Rosário, eu tento não exprimir palavras que larguem negatividade no mundo, tu não queres que eu responda a essa pergunta.» Assim que disse isto, arrependi-me. Devia ter chutado a resposta para canto, e fingido não perceber. Mas sou um cabrão que gosta de se armar em bom, e mostrar que sei como se joga o jogo, o que só resulta em mostrar que não sei. É preciso viver como se não soubéssemos. Fingir que é doutra forma. Não te dão crédito por saber como se faz uma bola de cautchú, apenas por saberes jogar à bola. «-O que mais te peço hoje, é que faças o que eu te peço. Podes dizer, diz-me.» A forma terna e fatalista como me disse isto, arrefeceu-me a tomateira a temperaturas árcticas. Mas ok, se queres, lá vai. «-Rosário, nunca te envolveste comigo porque fazes parte de um grupo de primatas que se avalia continuamente para aferir a posição social de cada um, e enrolares-te comigo, só baixaria a tua posição social na escola secundária onde andámos, em determinado período de tempo. Isto é algo de inconsciente que nada tem a ver com a tua decisão. Continuamos enquanto espécie, a obedecer aos imperativos biológicos da antropogénese, há 100 000 ou mais anos atrás. Ficavas com a vulva molhada pelos rapazes mais agressivos ou no topo da hierarquia juvenil. Porque foste feita para procriar a partir de tenra idade com tais figuras em tribos de menos de 60 indivíduos. A Natureza programa os indivíduos a agir de determinada maneira sem que se apercebam. E os violentos, agrestes, eram aqueles que conseguiam proteger e matar outros, tudo em nome da transmissão genética e adaptação ao meio.» Nunca consigo explicar bem esta merda. Um longo silêncio se abateu entre nós, que não ousei romper. Beberiquei o café frio e tentei distrair-me com os azulejos dos anos 90, na sua cozinha, contando-os e depois jogando dentro da minha cabeça com as formas coloridas dos mesmos, e o que me lembravam essas formas. O tempo passou de tal forma, que quando ela me interrompeu, fui arrancado desses jogos mentais, e fui obrigado a voltar à realidade. «-Eu acho que entendo e concordo com o que dizes. Mas eu não fiz por mal, há vinte anos, nem sequer te dar uma hipótese. Só não calhou…» «-Falas como se eu tivesse noção do que te acabo de dizer, há 20 anos atrás. Isto demorou muitos anos a perceber e a procurar respostas. Sempre me perguntei pela razão do asco psicológico que as mulheres sentem por homens sensíveis, isto é, por homens levados para a idealidade. A início pensei que era por não gostarem de gajos porreiros, mas eu não era ou sou um gajo porreiro. Usava a imagem de gajo porreiro para atrair e manter a detentora da vulva que me facultava distracção da vida e a descarga energética conhecida como ‘orgasmo’. Durante muitos anos tratei melhor as mulheres que os homens, por essa mesma manipulação que te confesso. Depois pensei que as mulheres eram todas umas putas, até perceber que eram incapazes de uma total consciência das suas acções, e portanto tão imputáveis como um deficiente motor por não conseguir dar um passo de dança. Hoje tenho plena consciência de que são vítimas, marionetas, por igual, de uma Natureza, ou processo instintivo ao qual não têm qualquer acesso. Até nisso têm menos sorte que o homem. O homem, ao menos, por via da introspecção, usada antigamente como forma de adaptação ao meio físico e social, consegue perceber – até por ser o sexo sacrificável – os fios pelos quais o títere o move. À mulher, embora disponível, essa mesma introspecção é menos acessível por via do seu solipcismo, vivendo sobre o seu umbigo, a mulher confunde-se com o seu corpo e valor sexual para outros. Por isso as quarentonas calçam sapatilhas Converse e tiram fotos a andar de skate para o Tinder. Para negar ou adiar a sua própria mortalidade. A mulher é a guardiã do sexo, e por isso capitaliza sobre o mesmo. Faz render as 4 pregas de carne que a Natureza lhe deu.» Outro silêncio. Tenho por regra , que devia respeitar mais, não proferir coisas que não contribuam ou para a neutralidade ou felicidade alheia. Mas a minha vaidade quer sempre demonstrar que sou muito esperto e observador. Mas depois vejo que sou eu próprio que faço essa ficção, a minha narrativa racionalizante, não visa só demonstrar que controlo um pedaço de realidade. Não, há algo de mais sinistro aqui. Se sou assim tão lógico, e se a mulher é então um ser incapaz de introspecção e de morder a língua por sentimento de culpa que nunca assume, eu devo ser o maior idiota ao cimo desta Terra, pois de que me serve impressionar com os meus silogismos, as minhas tretas, um ente que sei que vai deflectir sempre a minha prosápia, para o campo das suas avaliações...isto é, que vai pensar 'se este gajo gasta tanto latim a vender-se e a tentar impressionar-me, é porque não está convencido do seu valor intrínseco...'. Não posso ser assim tão idiota na eira e tão esperto no nabal. Há outra coisa, há algo de mais profundo e torto. Pendo para a ideia de me apegar ao ideal de amor, como um burro que pendura uma cenoura à frente do seu próprio nariz, para vencer a inércia. De quanto da minha personalidade está baseado na empresa amorosa, na identificação do meu ego com as minhas pulsões e na expressão delas por via do sexo. E depois surge-me a ideia de que é porque permaneço numa negação infantil decorrente da primeira infância, recusei-me a ser cínico, como todos ficamos, porque tive uma infância feliz, apesar de tudo. E a racionalidade só me estilhaça essa ilusão reconfortante. Iludo-me atrás de rabos de saias, porque não consigo olhar para o mundo de frente. Assim, Rosário não me pareceu tão repugnante. Pobre diabo feita do mesmo barro que eu. É tratá-las como crianças, que se puderem, sem refreio, comem doces até cair de traseiro. Ver que reagem com os meios que têm, ao mesmo mundo para o qual me custa olhar. Abraço-a e finge-se surpresa, fingindo-se desequilibrar abraçada a mim, em direcção ao seu quarto.
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