Suados deitados, ouvindo a banda sonora da 'Cidade dos Anjos' em modo 'repeat' ecoando pelas horas, combinávamos os nomes dos nossos filhos por nascer. A fantasia construída com cara séria servia de afiada rapier numa luta ritualizada no silêncio de veludo em terno e falso corpo a corpo em busca da submissão do adversário. Submeter fazendo-o apaixonar-se, afeiçoar-se ficar em suspenso de nós. Afeiçoar-se a uma ideia que dá sentido à vida e significado cósmico, enquanto o génio enganador em nossos lábios esconde que o outro está para nós como pardal em poiso temporário, passando a miragem de que afinal o nosso destino de amor é afinal ave determinada a voar connosco até ao fim até seu ninho. Eu a ela, ela a mim. Dançamos naquele tempo uma espécie de vale-tudo nos lençóis usando todos os truques sujos no livro e fora dele. Tudo valia para provar ao outro a nossa submissão e boa índole, afinal a paixão apenas ensaiada, o nosso apego, a nossa dependência e fascínio. Como solitários imberbes estúpidos ensaiávamos punhetas no chuveiro tomando-as como refinados actos de amor. Fazer acreditar ao outro que as fodas dadas eram mais que gotas caídas em poças de chuva sazonal, iguais a planos imaginados em parcas linhas de sonhos da puberdade. Ela não tinha qualquer respeito por mim. Habituada a lidar com rapagões da noite nos bares onde trabalhava, morenos do solário gotejando o suor anabolizante adocicado por eflúvios de batidos de proteína e bíceps de Megamass que a abraçavam em leitos onde trocavam murmúrios pelo dia após a correcta enunciação de palavras mágicas. Transportavam-se em BMWs pretos com assentos de cabedal, em atmosferas promissoras, do sexo porvir e por ter cessado mais uma noite e de seguida nascer calmamente novo dia. Começavam os olhares no bar, no seu afã de dar vazão aos pedidos e levar muito a sério o seu trabalho, eles a espreitavam por detrás dos gins tónicos e dos vodka laranjas, e ela por entre as torneiras de cerveja a que se agarrava, e entre garrafas que na sua mão faziam o pino, esvaziando-se dos néctares inebriantes que escorriam a conta gotas. Eles se divertiam em espaços escuros ao ritmo dos strobes, projectando a encarnação do sucesso e da programação básica e infalível, bamboleando ao som das melodias da moda. Habituada a tratar por tu esta gente tão mais adaptada à real realidade, obviamente não se deixaria impressionar por um miúdo de faculdade, facilmente iludivel e aparentemente fácil a levar a compromisso e fascínio. Foi por isso mais intrigante quando a conquista durou dois meses, por causa da sua necessidade de provar que também a este conseguia dar a volta à cabeça...provar que o bicho homem era terreno lavrado sempre que quisesse, como vingança a seu pai, e aproveitando o entretanto para mostrar a mãe e a irmã que tinha azar com os homens, eu era apresentável, embora belicoso, mas ficava bem na ponta do braço, era o aríete que faltava para conquistar os outros para a sua vida, não sem antes distorcer a imagem do alvo e mesmo mentir sobre ele de forma a que a pobre coitada se visse sob a constelação de uma conspiração cósmica contra sua felicidade. A charada não foi tão rápida e em certas voltas na pista ficava surpresa por não ser tão completa como imaginava, e o caçado começava a não compensar o esforço por ela dispendido, Ambos o sabíamos. O despeito com que me tratava o género era evidente, e a luta prolongava-se. Mentíamos um ao outro.Eu para ela se entregar ainda mais na foda, e fechar os olhos caída finalmente em acto de amor e não de vendetta para com o mundo. Ela, para que eu acreditasse, baixasse as defesas, e só isso me faria perder. Isso ela queria que eu perdesse. O jogo era fisgar com a vulva, e depois retirá-la. Nossa ficção construída a dois de forma solitária teve apenas dois interregnos, ambos na minha cama sofá desdobrada. Uma sessão de carinho onde ternamente me disse que se sentira amada, e quando após discussão logrou pedir ser tratada como pessoa, sem que lhe escondesse palavras com medo da sua reacção exuberante, recorrente apanágio. Por momentos ambos conseguimos sair das peles andrajosas, da tarefa bélica e como em olho de tempestade, ela sente-se amada e eu um amante normal. O latejar de duas subjectividades só podia viver no corpo de uma mentira.
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