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Espelho

31/12/2020

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Cada vez é mais difícil escrever.
Tenho de beber, cada vez mais, e não gosto de me sentir preso.
De sentir que tenho de afogar a dor de primeiro mundo, para poder passar a escrito alguns sentimentos soltos ao vento do tempo neste 2021 que se aproxima.
A Renata explicou-me porque é que muitas me odeiam, as menos sonsas.


Porque ao tornar-me espelho, reflectindo as suas falhas morais, obrigo-as a ser responsáveis pelas suas acções, no corpo de outro – eu- observando-as aplicadas a si mesmas.


Mas Renata, disse eu, repara que subestimas e muito, o sentido de fuga à realidade da pessoa mulher. A realidade feminina é solipcista, tem de ser, pensar só nela e na prole. Era a diferença entre sobreviver ao tigre-dentes-de-sabre ou ser comida de forma menos agradável, juntamente com o hipotético parceiro que tentava salvar.


Toda a realidade é interpretada a partir do que sente, de si mesma.


Não há mal nisto. Mas também tenho sido um conas ambulante, reflectir as falhas morais de outros, por despeito? Que merda de homem é este? Em alguma cruzada por uma igualdade que não é desejada nem por nenhuma das partes? Se por actos ou palavras mostro a uma pessoa que comigo se envolve, que afinal é uma imbecil ou cabra, que ganho eu com isso? Fazer outro sentir-se mal com a sua própria existência?
 


Só porque a pessoa me desilude, deixo de ter responsabilidade por me ter deixado iludir?


Ah, mas é a essência do amor, esperar e ver o melhor dos outros, sob pena, de não o fazendo, sermos incapazes de sonhar com eles. De cair em ‘rapture’ por um ente idealizado, ergo, colocado acima da existência concreta.


Sentados no meu sofá de cabedal de pobre bovino falecido de morte horrível, a Renata massaja-me o quadríceps com um desvio sob o meu falo. Aproximando-se de mim e aumentando o frenesim com que me esfrega, lambe-me os lábios com a ponta da língua e com os lábios grossos e vermelhos de batôn segreda-me ao ouvido baixinho e com voz doce e promissora de actividades horizontais: «-Pensas demais.»


Arranca-me a camisola de sintéctico a imitar lã, e o frio ar abraça-me, e só penso que tenho de acender a salamandra.

Outrora tinha medo de estragar o clima, agora já sei que quanto mais confortável, mais aprecio a experiência.
Olha-me colocando troncos na boca de ferro fundido, e finge-se contente por eu estar a fazer algo por «nós».

A acendalha cai-me da mão, e oiço ela perguntar «-Nunca andei com alguém da tua idade…»
«-E que idade é essa?» - pergunto eu.

«-Quer dizer, tenho andado com rapazes da minha idade, tu és um homem feito.»
Ri-me automaticamente, sem conseguir controlar. A expressão ‘homem feito’. Fiquei muito mais bem-disposto, a vida apresentou-se convidativa através do riso.
«-Eu sou uma criança, Renata.»


«-Ah, tu sabes o que quero dizer.»

«-A censura social que se faz à diferença de idades, visa apenas ainda garantir à juventude a idolatria da posse do novo. E aos velhos, a posse dos corpos não corrompidos. No fundo, a valorização de um suposto mundo dos menos velhos, é uma outra variação de elitismo. Os homens e mulheres de meia idade tentam adaptar-se aos tempos, na ânsia de obter algum corpo jovem incauto, e fugir das almas batidas da sua idade. Metafísica, é tudo uma dança metafísica.»


Quase de imediato o ferro fundido de marca Edinoliva começa o seu trabalho de irradiação termodinâmica, e o calor associado ao vinho faz com que ela se lance nas minhas costas, abraçando-me e beijando-me no pescoço.


Segreda de novo, «-Falas demais.»


Eu sei. Eu sei que falo demais por demais.


Excitação nervosa ou medo do silêncio. Vem de algo no fundo de mim.


Quarenta e cinco minutos depois, está suada em cima do farfalhudo tapete, pedindo-me um copo de água.

Bebido, dá-me vontade de entrar num abraço que me faça esquecer o resto.

Encaixado com o meu rosto no seu pescoço, ela diz «-Nem penses que vais dormir, tens ainda muito que fazer.»


«-Estou só a fechar os olhos, preciso de me esquecer durante meia hora, não te rales que não falta amor para te dar.»

«-Eu quero ser bem comida.»

«-O que fizemos agora foi o quê?»

«-Por isso quero repetir antes que acabe.»

No meio do meu peito, um velho conhecido meu, o ego, inchou-se com o elogio.

Como se eu não o soubesse, mas sabe sempre bem ouvir na boca dela.

No dia seguinte, pediu-me para me levar a conhecer a mãe, com quem tinha combinado ir comprar camarão para a noite de Ano Novo.
Não fui capaz de dizer não.

Na entrada do Pingo Doce, geralmente existe uma pastelaria, Renata virada para a entrada, onde as portas automáticas abriam e fechavam como pernas de ninfomaníaca, para deixar entrar e sair os clientes.


Renata confidencia que havia dito à mãe que andava com alguém, mais velho.
E eu perguntei «-Mas é essa merda algo de importante?»


Atrapalhada para responder, Renata é apanhada de surpresa por uma voz nas minhas costas.
«-Bom dia, já tomaste café?»


Viro-me para trás e o Sol matinal encadeia-me não lhe consigo ver bem a cara, apenas que é baixa, um metro e meio de gente.
Olhando-me, o metro e meio de gente exclama: «-João! Estás aqui a fazer mas que…»


Levanto-me e o ângulo em que fico em relação aos raios solares permite furar a cegueira apolínea.

A Guida.

Olho para ambas e censuro-me por não ter visto desde o início, as semelhanças, inconfundíveis.

Tensão, permaneço calado, visto que nada tenho a dizer na discussão das duas.

Vamos já embora, andas com um homem que tem idade para ser teu pai, e outras merdas que me faziam rir por dentro nesta ópera bufa a que chamamos vida. Puta de coincidência.

Vamos resolver isto como adultos.

Pede cafés para todos e eu digo que já bebi.

«-Bebes outro.»


Noto hostilidade na sua voz, apenas composta por receio de ser censurada pelos olhares dos transeuntes que poucos momentos antes tentavam fazer sentido dos berros das duas.


«-Mas que merda estás a fazer com a minha filha?»


«-Acabámos de passar a noite e estou a precisar de glucose no sangue, por isso vim à pastelaria.»


O sangue afluiu ao seu rosto, como que se uma explosão interna estivesse prestes a ocorrer, tudo queimando e soterrando com cinzas de combustão nesta Pompeia momentânea.

A tempo percebeu que eu apenas estava a reagir à sua hostilidade, e que nada ganharia com um confronto directo comigo e com a filha, Renata.


Expectavelmente, recorre a outras tácticas de manipulação, convicta de que no médio prazo dará a volta à filha, maior de idade para esconder quem quer.
«-Onde se conheceram?»


«-Isso pergunto eu. De onde o conheces?» - diz Renata.


As frases que ameaçava responder eram mortas antes de sair dos lábios.


Estava a calcular como diria as coisas, que ângulo evidenciaria para expor ao Sol, da percepção da filha.


«-Eu posso responder a isso.» - digo eu, divertido com a mudez súbita, a jusante da berraria prévia.


Guida agarra-me o braço, mas nada consegue dizer, pois estava claramente numa situação que levava a melhor sobre ela.




«-Renata, eu conheço a tua mãe, desde os tempos de escola. Aliás tive uma grande paixão por ela e ela sempre cagou na minha existência. Sempre preferiu os meninos populares da escola, e um desses engravidou-a e abandonou-vos. Nessa altura, há 20 anos atrás, sem opções que quisessem assumir a responsabilidade reprodutiva de outros, ela lembrou-se que eu existia, e chegámos a ir jantar, ela usando vestidos curtos e meias de ligas, para ver se me fisgava. Eu só sabia perguntar, porquê, porque nunca me dera atenção e agora subitamente aquilo que eu desejava se concretizava. Quando apertada sobre o motivo da rejeição, dizia que era por protecção, que escolhia os maiores e mais selvagens meninos da C+S. Protecção de quê? Do tigre-dentes-de-sabre? De teres um metro e meio? Eu não sou pequeno, nã, o motivo é outro, esse é o que dizes a ti mesma para te convencer. Pois logo na altura decidi agir como ela agia comigo, se me tratava como um acessório de vida, um prémio de consolação, eu faria o mesmo, e portanto nada prometendo, nada neguei. Chegámos a várias sessões de contactos horizontais, sempre com um aumento gradual de pressão para um compromisso. No nosso último jantar, porque eu desviava as exigências de resposta directa a uma promessa de compromisso, ela percebeu que eu não criaria esse compromisso. E cortou a direito qualquer contacto comigo, hoje chama-se ghosting. O que contrastava com a dedicação anterior, toda fingida, desde o fingir que gostava da mesma manga de sci fi que eu, até ao sonho apreciado de cursar Filosofia. A tua mãe depois conheceu outro tipo, tentou o mesmo com ele, e nunca mais me disse nada até há uns 7 anos atrás. Desde então quando se sente sozinha ou sem gajo que a persiga, acha que me manda umas sms lacónicas, relembrando-me continuamente o tipo de pessoa que ela acha que sou. Agora percebo que ao reflectir a este tipo de pessoas a imagem do que são, o conas sou eu. O receptivo e reflexivo, recebendo o espectro da sua canalhice, interpretando-o e exprimindo-o teatralmente para que como missionário de Novo Mundo, o selvagem a converter à moral, entre no reino.»







Só Guida respondeu, Renata, nunca me tinha ouvido falar tanto e tão emocionalmente.

«-Bela história tens aí, mas não foi isso que aconteceu.»

«-Guida, só tens um rosto e um corpo bonito.»

Ela ficou perplexa e paralisada tentando perceber se o que eu dissera era elogioso.

Levantei-me, deitei uma nota de cinco euros na mesa, e Renata perguntando-me o que eu estava a fazer, para não me ir embora.

Fiz-lhe uma festa no rosto, e ao levantar-me, virado para Guida segredei docemente ao ouvido:
«-Porque de resto, se pensasses sobre ti, verias que sem querer és e sempre foste apenas uma coisa, uma cabra.»



Passei pelas pernas de ninfomaníaca controladas por um feixe de infravermelhos, que se fecham atrás de mim. Contente por me afastar gradualmente por uma cena de telenovela, que quando ocorre, a estranheza nos faz lembrar que se calhar Deus olha por nós e nos testa.
A manhã fria fica mais amena quando sinto uma mão quente colar-se na minha, puxando-me para o seu carro e dizendo que vamos para casa dela.
Renata mora sozinha numa urbanização na Expo.


​
«-A conversa que começámos ontem ainda não terminou.» - disse-me sorrindo.
«-Pensava que achavas que falo demais.»
«-E falas, mas não é dessa conversa que estou a falar.»
Conduzo o Audi da empresa onde trabalha, cedido como dote de cativação para a função dela, bem paga.
Ela encosta-se genuinamente a mim, ao meu braço, que se vê aflito metendo as mudanças, abraçando-o de maneira a que possa fechar os olhos e esquecer tudo o resto.
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