Diz o druida, que o pai deixa ferida na testa do filho, cravada com o cabo da arma da sua própria sobrevivência. Passa o pai para o filho, a dor da existência tal como a mãe transmite a vida. Sentada no sofá, olha para ele quando entra cansado das aulas de educação visual e artes artísticas ministradas à novel burguesia urbana, onde ambos mamam vindos da província. Reúnem-se nos salões de chá da urbe para criticar a grande loba que lhes dá de comer. Ele veio do Norte, e tem ódio à capital. Vibra quando equipas desportivas nortenhas ganham às do Sul, e louva as virtudes boçais acima do Mondego, culpando a sua migração num suposto centralismo que o forçou a largar o torrão pátrio. Ela, uma deslumbrada vinda da serra, fez jura de vida fútil, ser a miúda mais cool do bairro, num claro acesso de infantilidade que perdura até hoje. Desenvolveram uma relação de codependência onde ele aproveita os ensinamentos passados sobre as mulheres, e ela aproveita o salário dele, forçando-se a sonhar com a ilusão de o ter escolhido para entrar na vida normal, quando o seu corpo a impediu de andar a foder com este e com aquele, com a regularidade a que estava acostumada. Mandava-me fotografias dessa altura, sentada num banco de jardim nas Avenidas Novas, fumando para não conspurcar a casa com o cheiro a tabaco que o seu colega de casa paneleiro detestava. Olhando o horizonte, pensando na profundidade de uma existência a partir de um sentimento de plenitude, de ter chegado a um ponto em que podia obter o homem que quisesse a um estalar de dedos. E que por isso qualquer lucubração era válida, porque a filosofia resultadista assim o ditava, se obtenho o que quero e nem toda a gente tem, posso estar completamente certa. Nunca conseguir deixar de a ver como uma profunda parola, uma daquelas almas cujos olhos ofuscados pelos máximos de um automóvel, não conseguem sair do meio da via, nem deixar de olhar para o brilho. Antes de se envolver comigo, contou-me que se tinha envolvido com outro e engravidado dele. Matou o filho de ambos, que só ela conhecia, e desculpou-se a si mesma, dizendo que o incauto pai era louco. O louco que escolhera para inseminação deixara de servir a partir do momento em que decidira que conseguia arranjar melhor. Nada melhor que culpar outro para lixiviar o homicídio do nosso próprio filho. Passei por ela, mais por um descargo de curiosidade, uma amiga em comum havia dito que eu era bom na cama, que por qualquer empatia. Ela é incapaz de tal, de empatia, tem o coração cheio de ódio e de incapacidade de amar, amarga os dias da sua existência com a convicção de que sabe mais do que os outros sobre o que é estar vivo. Lê livros, para dizer que os olhos percorreram os traços negros dos vocábulos, mas se apertares com ela, é só mais uma das que protege a sua ignorância sob a capa do «é a minha opinião e tens de respeitar», como se um médico ou engenheiro tivessem de acatar a opinião de um leigo sobre as suas áreas de sapiência. Confesso que esperava dar mais umas voltinhas naquela vulva bem conservada para a metragem que tinha. Vendo-o chegar a casa cansado, sentando-se no sofá, ambos agarrados ao smartphone e à composição fantasiosa de uma vida cibernética, ia respondendo às minhas mensagens. Ele traíra o relacionamento de ambos e esse espinho estava preso na garganta dela, a vingança serve-se fria. E eu, a pila fácil e certeira, mais fiável que um motor a diesel de um 190D com zero quilómetros, aparecera como prenúncio da Providência para a vida dela que nunca saíra do seu próprio umbigo, ela, o sexo empático. Depois de uma sessão de foda no tapete da irmã cúmplice da traição, eu perdera a utilidade, pois havia que voltar para a segurança do funcionário público. Eu esforçava-me para não rir, com as expressões faciais e comportamentos dela, tão convicta da exactidão dos seus juízos. Solipcista como poucas, apenas conseguia interpretar do mundo de acordo com a centralidade do seu umbigo. Todos os caminhos iam dar a ela. Quando eu expunha a sua hipocrisia nas redes sociais, recolhia-se na certeza de que era ressabiamento o que me motivava a provocá-la. Tal forma de pensar só vinha confirmar crenças antigas dela, de que os homens ressabiados agem de tal maneira, por ela ser impassível de ser de alguém que não dela mesma. Antes de sair da serra fez uma imagem do que seja o homem branco (sim, ela é racista), e nenhuma experiência de vida lhe mudaria o estereotipo. Mudar significaria fazer desabar todo o edifício de merda em que se ergueu. E de merda porque não tem qualquer sustentação que não a da sua fantasia. Confesso que me irritou ter caído de novo na teia de uma pessoa sem carácter. Mais por achar que sou mais esperto do que a realidade permite, do que propriamente por esperteza da interlocutora. Andava com mais duas, mas nenhuma citava Bukowski, nem esta, mas ao menos conhecia. Parecia mal dizer que não conhecia, tão convencida da sua superior cultura por ter lido meia dúzia de livros para percorrer as linhas vocabulares a preto. De modo que, o corno continua a ser sugado do fruto do seu trabalho e ela a convencer quem a rodeia, de que é um ser humano virtuoso. Ia no metro, despedira-me da minha companhia nas Águas Livres e dirigia-me para onde tinha o carro estacionado. Ela viu-me e abordou-me. Para me ter abordado, o boi devia ter-se fartado dela ou escolhido uma melhor. Levantei-me do assento e disse-lhe que estaria a confundir-me com alguém. Não só a merda paira como gaivota escolhendo onde vai cair, como o que fodeu a cabecinha dos nossos pais se propaga a nós como praga intergeracional, completamente inacessível nas alturas em que o devia ser, antes de tomarmos decisões. Herda o filho o pecado do pai, até não ponto em que já não pode com tanta falta de responsabilização. Mas eu e tu sabemos, que para muita gente, é preciso mentir para conseguirem viver consigo próprios.
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