I
O meu mais genuíno sorriso é fingido automaticamente, e na mesa ao lado um homem apresentável, mas desleixado na barriga saliente e na moda das calças, toca-me no ombro e pede-me para lhe tirar uma foto e aos amigos que comem e bebem e se fotografam para colocar no facebook. Sou bonita e já saltei a porta dos trinta e saio com as minhas amigas para estarmos lindas juntas e desanuviar as semanas de trabalho. Não ando à procura de ninguém, mas gosto de me sentir bem comigo própria, e consigo isso através dos olhares marotos que arranco da rapaziada, ergo, visto-me em cada ocasião como se fosse para derradeira gala, que pode ser um restaurante do centro comercial. Não me fecho ao amor mas uma calma desesperante poisa lentamente em mim e na linha da minha vida. Assim como vou percebendo os pouco amistosos augúrios que o espelho me murmureja. Não estou mais nova, e torna-se cada vez mais difícil provocar o mesmo efeito e fazer os homens virar a cabeça de repente e as mulheres olharem-me com inveja e apreensão, segurando com mais força a mão dos namorados. Desde os catorze que se tornou tão fácil…bastava sorrir e não precisava de dizer nada, a não ser se me perguntavam o nome…surgiram por magia piropos e elogios, sumos e rajás de borla, o mundo apresentava-me o sorriso caloroso de um raio de Sol em aurora, com a liberdade que decorre da exuberância das possibilidades de escolha em números incontáveis e em portas abertas. Tinha o mundo na mão. Era jovem e bonita e cada elogio era a constatação do óbvio, do meu merecimento genético ou bênção da fortuna estética…afinal se outras não têm a mesma sorte de ter um corpo bonito como eu, parva seria eu de não aproveitar o melhor da vida só porque outros têm de comer o joio. Não, o mundo abria-me todas as portas, eu era a minha beleza, eu sou bela, e o mundo não me reconhecia o suficiente, eu mereço sempre muito mais. Só havia que ser cautelosa e controlada. O mundo a meus pés em idade de caminhar. Como celebração em tina de mosto rotundo olhar para mim e deixar-me enfeitiçar pelo monumento à espécie humana que o corpo de uma bela mulher pode proporcionar. Com platónico propósito aprendi desde cedo a deixar resvalar como gotas de chuva indesejada os feios que se me prostravam aos pés, beleza requer beleza e um corpo bonito procura outro semelhante para contemplação da beleza intemporal. Corpo bonito em sintonia de sucesso neste mundo…pesa-se na balança o equilíbrio de uma libra de carne, não menos, mas se possível mais, o caminho sideral é para cima. O meu aspecto reflectia o meu valor intrínseco e com a minha opinião de mim. Eu era desejada por muito logo só podia ser algo de valor. Eu era tão bonita e segura que as energias negativas dos outros só podiam ser inveja ou de ressabiamento por não me terem. Tão especial como borboleta por auto-estrada de flores, um profundo comprazimento interior brotava sempre que me sentia eu, e me bastava, numa luta só contra os perigos do mundo, pejado de escolhos contra um ser belo, e assim comecei a construir as bases da minha torre de marfim que me aprisionaria até mais tarde. Como temos de potenciar o que temos de melhor, como flor que em breve dará nectarina, e como consigo perceber a concorrência, não sou a única bonita da freguesia, invejo como sapateiro as que usam as mesmas armas que eu, refinei os meus suaves meneares de cabeça os tangos de cabelo e pescoço, os largos e visíveis sorrisos, que tanta amargura traziam a tantos que por mim haviam partido o coração e medravam na sombra. A forma feminina e sensual de dosear os olhares, de apanhar o cabelo, os tons quando nos pintamos e abonecamos e tornamos a nós mesmas as obras de arte de uma sedução desesperante para o espectador. Arte que desvaria até à loucura do sublime quem me quer, esses sacos de esperma e testosterona ambulante agrilhoados ao seu desejo, e à missão de aprisionarem uma bela alma livre como eu no presídio da sua posse. É isso que quero. Que me queiram, sem que me tenham. Alturas houve em que não vivia longe do desejo. A mãe Natureza começou também a pregar em mim, chamei-lhe amor, desejar um homem em mim, realizando-me e ao meu corpo levando-nos para paragens com peso escatológico sempre dele tendo a certeza de ser deusa em pedestal para ser adorada, sob sua volúpia sacrificada. Solicitada pelos pretendentes que me acompanhavam até casa, os discretos bilhetinhos nas carteiras da escola, na caixa do correio, nos bancos de universidade, em redes sociais listas infindas de oferta terna e meiga, amores adivinhados na penumbra, nos pára-brisas do carro, innuendos de colegas do trabalho diariamente e diariamente ignorados por mim, e até abordagens em colisão frontal com faces intensamente ruborizadas, extra simpatia para onde quer que me vire, sempre gente pronta a me ajudar, a tornar este mundo cada vez mais de sonho para mim. Muitos amigos nada me diziam abertamente (insisto em chamar estes pobres diabos que me desejam, de ‘amigos’) dedicando-se ao invés a encobrir com lisonja as suas intenções. Eu mantinha-os na corda bamba, zangada com a sua falta de honestidade, com a aparência de um plano para me conseguirem, como se não fosse eu o prémio, mas algo de mim. Ao mesmo tempo deliciada com a disponibilidade barata dos seus ouvidos e corpos para me ouvirem e passearem e para me animarem quando às vezes a vida se zangava também comigo…Uma tour de force, em que alguns se cansavam de me amar sem retorno, calculistas, e outros me brindavam com aspirações cíclicas, às que eu me fingia ofendida por quererem estragar uma amizade da qual eu levava a melhor parte, e fingindo não saber que a mesma era um fingimento da parte deles sempre esperançosos que uma conjugação astral me fizesse um dia entender que a sua dedicação e prontidão, o seu sacrifício de vida é afinal aquilo que procuro, em coros uníssonos de senhas que me abram as pernas e o coração. Fingem não sentir o que sentem, e eu finjo também, dá-me jeito. Degradam-se para me ter como adereço na sua vida, e eu não me intrometo na relação deles com eles próprios. Aos que se propunham, eu negava o acesso. A amizade é o banco para os que recebem o prémio de consolação, culpa-se o destino por não se lhes poder corresponder. Sentimo-nos bem, humanas e solidárias com a nossa franqueza, oferecemos amizade a quem é vergastado pelo desejo, confirmando a aprazível fantasia que temos sobre nós, ao mesmo tempo adultas por perceber a injustiça de um mundo cruel que mete emoções perigosas como o amor em equações de improvável resolução. Os primeiros namoros levaram-me o hímen e as ilusões. Os homens vão e vêm como as estações, eu apenas existo e sou bonita, a fonte nunca seca, e as desilusões apenas confirmam a especialidade do meu ser, que parece passar em branco aos olhos de todos os que vão e do próprio mundo que me diz que sou única e profundamente especial, linda no corpo, complexa no espírito. Estas certezas colocam um semblante fatal no meu olhar que vislumbrou, ao que parece, o terrível segredo sob os negrumes do véu de Maya. Onda após onda que me deita ao chão, e eu nem notava o sabor da espuma salgada, ocupada com a vista a partir da minha torre de marfim, e com os convites para café e a dialéctica das sms, ramos de rosa ocasionais, serenatas declarações em eflúvios de rosa que são afinal o terreiro da vida onde danço meneando o meu carnudo dorso e a estonteante curva do meu regaço. Por vezes cheguei a pensar que os homens são todos iguais e eu só queria os que não me queriam, nunca me lembrando daqueles que haviam perdido o sono por mim, algum provavelmente gostaria mesmo de mim, não no fundo sei que era apenas o meu corpo que era desejado. A sucessão das fracturas convenceu-me que o aspecto pode ser uma maldição, e o meu corpo foi matéria para sonho de muito homem, completamente alheado do que sou, tal como eu, que o usei para uma vida de facilidade e ilusão lisonjeira. Quantas vezes me senti adereço com o qual me mostravam aos amigos e aos outros, objecto de qualificação deles para outros, ou para as mães. Quando em cima de mim parecem só existir eles, absortos num transe rumo ao orgasmo e numa ansiedade que é aflitiva, através de mim como se eu fosse objecto ou porteira da sua maldição testosterónica, e chego a ter pena deles quando me penetram e os despeço com um lacónico ‘Adeus’ lá pela manhã. Sou mais que uma imagem ou artefacto. Vingo-me deles. Doseio e doseio bem. Refinei a capacidade de os enlouquecer. Entendo-os, apanho-lhes os truques, as estratégias, as manhas, os trejeitos e os hábitos, as desculpas, e dou-me em doses doseadas, condicionando-lhes o comportamento, ora generosa ora mitigada, meto-os a correr, deixo-os enrolar o pescoço na sua corda, sou bonita e sorrio. O meu maior bem guardo-o entre as pernas, com ele fidelizo o freguês, de consumidor ocasional a irremediável carocho. Não quero mudar, dá muito trabalho, afasta-me da minha zona de conforto e obriga-me a reconhecer alguma réstia de engano na minha lógica, na minha fantasia lisonjeira, não acredito que possuo uma frivolidade que não sei ter. Desenvolvi o isco, faço-lhes carinho, manipulo, digo asneiras quando os fodo, chupo-lhes a verga de forma lasciva como vi nos filmes sobre o tema, até que se comprometam e se decidam a pertencer à maior raça de gado domesticado, os casados. Comprometem-se, e tratam-me como a princesa que sou ou esperava ser, criam-me os filhos, apaziguam-me os caprichos do estrogénio, e servem para completar uma versão alterada da torre de marfim que ruiu. Aquecem-me à noite quando suspiro antes de dormir, pesada pelo fantasma das relações passadas, tótemes a mundos que desejei e por capricho do estrogénio da fortuna não resultou, deixando a mossa de ter perdido o prémio principal e ter de me contentar com este que me aquece na cama e me faz as compras no supermercado. Longe vai o tempo pré marital onde o fiz acreditar que estava sempre disposta, que me ria do que dizia, em que abria as pupilas para mostrar o interesse que me esforçava para ter, onde a repetição de suor e saliva da paixão até altas horas da madrugada torna-se repetitiva e acaba por enfadar, e deixa de ser necessária, o boi afeiçoou-se à carga. No trabalho sonho com as amigas em estrelas de cinema ou chefes afrodisíacos, e dou conversa aos colegas de trabalho, falamos de sexo, conas e caralho, e com o meu marido não admito que fale em pénis ou em noites mais condimentadas, afinal quem pensa ele que sou? Talvez nunca me apetecesse, e só represento esta peça porque é o que todos esperam de mim, eu já sei como eles são e na minha sapiência fatal dos encontros que tive com o mundo, sinto que sou eu que tenho de manobrar as coisas, eles são uns tontos. Ou este é. Ele andaria feliz se fosse tudo como no início, mas acaba por fartar não é? Queria uma mulher que lhe correspondesse na cama, mas acabou por comprar um logro igual a tantos outros por quem se afeiçoou, gosta de mim, mas por receio e preguiça contenta-se com o que dou, com o que o manipulo. Antes um jumento que me carregue, que um cavalo que me derrube, já dizia Gil Vicente, e eu dou-lhe compensação mais que suficiente, poder viver com uma pessoa tão especial e que tão bonita foi. Vejo as outras sofrer e naufragar em escolhos de manipulação que eles armam, eu não. Ocupo uma posição no mercado da carne que me permite aspirar acima disso. A minha alta imagem de mim mesma, tão justificada como castelo de areia assente em pele que se decompõe pelo tempo na praia do esquecimento dos séculos por vir. II Toquei-lhe no braço. Simpática. Riu-se. Trocámos sorrisos e olhares, empurrei-lhe um bilhete com meu número de telemóvel por debaixo do cotovelo, fez cara de asco e depois de que eu era tolo, mas guardou o papel para gáudio das amigas que a viram reconfirmada como alma abençoada pelo fascínio dos homens e por isso como voz de autoridade no assunto. Recebi um sms e fomos tomar café. Tudo no sítio, ao subir as escadas que cu torneado, senti um arrepio igual a todos os que sinto na espinha assim que vejo cus e ancas portentosas. Se fosse só mais uma pobre diaba para desenrascar o que a punheta só agudiza, não estaria tão nervoso. Não, esta é bonita, e boa, é um prémio. Tenho de a tratar bem. No mercado da carne, este corpo é bom, é para ser tratado nas palminhas, o que não devem faltar é outros sabujos a rondar este quintal. Mas eu também sou bom, apresentável, ando no ginásio, tenho um bom carro, arranjo-me bem, tenho amigas, os porteiros das discos conhecem-me e sou um ás a lidar sociavelmente em cada ambiente. Quantas vezes teremos de sair até foder? As boas geralmente fazem-se vender caro. É na cama que se sabe se dá ou não. Mas pelo aspecto, dá de certeza, só para poder mostrar a outros e a mim que arranjei uma mulher decente, e com bom aspecto. Três encontros sem falar de foda, nem penses que me metes na gaveta dos amigos. Disse-lhe as minhas intenções e ela agradeceu a frontalidade, mas que me estava a conhecer. Bem jogado, vê-se que sabe lidar, afinal é bonita e não deve ser virgem, mas a sua honestidade ou resposta pensada não me permitem ajuizar se é muito batida ou se é o seu jeito ingénuo. Foda-se, quantos terá tido? Isto não vai dar em nada. Três meses a sair e trocámos um beijo, ela não cede. Ainda não fodemos, já não consigo fingir. Se me beijou é porque há hipóteses. Vou dar mais uma chance após todas aquelas que eu disse que eram as últimas. Vou levar na descontra. A miúda até parece ser fixe, vejo-o no soutien e nos leggings que leva que tem boa índole. Outras mais fixes mas menos bonitas, não eram tão fixes. Cada um renitente em convidar o outro para não baixar o valor, ou para mostrar desespero, numa relação que se pressagia por ainda haver dois emissores que se falam…foda-se vou perder. Quero que ela saiba que não ando desesperado, porque me preocupo tanto com o que ela pensa? Só pode ser amor, será esta? Porque é bonita gostava de a apresentar aos meus amigos, e aos homens que nos olham na rua e quero que saibam sim, é minha sou eu que a como, invejosos. Com uma mulher bonita no braço mostro-vos que não sou um qualquer, sei o que sou e quero da vida, não sou como vocês, cuja mulher lá em casa é um calendário de oficina de mecânico, com belos seios desnudos à mesa de jantar. Fodemos. Num hotel com spa onde fomos passar o Carnaval. É boa, não se mexe muito, parece confiar na beleza que tem, mas eu fico a pensar que não gosta da minha coreografia, ensaiada tantas vezes no passado. As mulheres bonitas são assim presumo. Para olharem e serem olhadas. Para mim basta, faço a festa toda antes que acabe. Ela parece por vezes cumprir calendário. Lambo-lhe a derme toda, sorvo-a de todos os ângulos, venho-me até à exaustão, ela não se nega, chupa-me os genitais, fala das saudades que tem quando de mim ausente, sorve-me até me ver satisfeito. Estou apaixonado, é isto mesmo que quero, que sorte tive. Luxúria na foda, faço um vistão na rua, vou ter juízo, ela tem pouco uso e fica bem nas fotos. Há sempre um timbre de gasteza no seu olhar, tenho de pedalar para a fazer feliz, para não me deixar e eu poder continuar a foder com aquele belo corpo. Não parece ter muita rodagem, pode ser a mãe dos meus filhos, apresento-a à família. Tratam-me como homenzinho, é desta que ganho juízo, já estava na altura, tem pouco uso e fica bem na foto, e eu em cima dela. Casamos e engordamos, fodo de vez em quando e digo para mim mesmo que ela se dedica à família, e ela manda em tudo. Acostumo-me ao feitio, e se escolhi o compromisso, não me posso dizer enganado porque ninguém me enganou, eu devia saber, é assim para todos. Tiranetes em castelo de marfim, e eu sabujo em troca de sexo e afeição, que surge quando ela quer e me porto bem, foda-se acho que mereço ser feliz. Com o meu cronógrafo aliança robusta e smartphone em bolsa de pele vou engatando as colegas de trabalho, as caixas de supermercado ou da bomba de combustível onde abasteço a station wagon. Ela suspeita de x em x anos temos uma crise, mas eu avanço mais um lance de escadas na minha degradação, e a coisa fica saneada mas volto sempre ao local do crime até que cedo à inutilidade desta merda de vida e celebro as alegrias do matrimónio. Também mereci ser feliz.
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