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2.1 J. havia-me convidado para uma recepção qualquer num hotel do Estoril. Decidi ir, pois a minha parte cobarde não se queria dar mal com um facilitador de psicotrópicos, que mesmo drogando-me contra minha vontade, não tinha feito muita mossa, se calhar eu até estava a ser demasiado rígido. Esclareci isso com ele, que não pedindo desculpa claramente me disse que não havia feito por mal e que não repetiria. No átrio reconheci algumas caras. Encostada ao balcão onde serviam champanhe, olhava-me convidando com os olhos uma abordagem. Disse-lhe «-Olá.» «-Olá.» «-Chamo-me João.» «-Eu sei quem és, sou amiga da Adriana.» A forma como o disse fez-me sentir que era suposto sentir-me culpado de algo, ergo, diminuído, ergo, apologético. Respondi : «-Bom para ti.» Bebi uma taça, peguei noutra e preparava-me para sair dali, quando ela disse: «-Não penses que os teus esquemas de sedução vão resultar em mim. Eu sei bem que estudas isso e gostas de seduzir e magoar mulheres.» «-Quem te disse isso?» «-Não interessa.» «-Mulheres rejeitadas são piores que gajos rejeitados.» - virei-lhe as costas de seguida e ordenei ao cérebro para a apagar do meu mundo. Senti um aperto no braço. Puxava-me para si, para lhe dar atenção. Passou-me pela ideia desatar aos gritos para que me salvassem deste assédio. «-Tu não gostas de mim, eu sei.» «-Nem te conheço.» - Sabia que a minha disponibilidade para lhe virar costas não era algo a que estivesse habituada, mexia-lhe com a auto-imagem e era desse desafio que estava atrás, não de mim, claro. «-Chamo-me Mónica.» Sorri, sem mostrar o branco dos dentes. «-Que coisa é essa que disseste de eu estudar e não sei quê?» «-A Adriana contou-me que odeias as mulheres e que te divertes a seduzi-las e a magoá-las. E que analisas quase como num manual de Geometria Analítica a psicologia delas e usas tácticas de engate infalíveis que leste sei lá onde.» «-Se eu fosse assim tão bom estávamos os dois na cama agora.» «-Eu tenho uma mente forte e não sou fácil.» Eu sei, penso comigo. Por isso falas comigo. Tal e qual como todas as outras antes de ti. Achas que és melhor que toda a gente, mesmo que fique bem dizeres o contrário. Raios, até te insurges quando alguém assume dizendo alto, o mesmo. 2.2 Foi o que decidi fazer. Nesta mesquinhice que tenho de esfregar o atavismo na cara da pseudo-sofisticação. És tão diferente do barro das outras que funcionas da mesmíssima maneira. Atenção constante, manifestação de disponibilidade como se mais nada tivesse na vida que manifestar intenção de estar com ela, elogios e validação, permanência após birrinhas e acessos fingidos de fúria. Imolações em desculpas desnecessárias, e Mónica, a tão diferente das outras, seguindo o mesmíssimo carreiro comportamental. Mensagens trocadas non stop até às tantas da noite, sempre com resposta pronta. Sempre desviando todo e qualquer assunto para confissões implícitas de enamoramento incondicional. Nada faz recuar mais uma mulher que um homem que se jogue a seus pés. Jogada de mestre seria de forma gradual e amenizada, expor a postura e o porquê do seu, mulher, retraimento. Ensinar-lhe sobre machos alfa, war brides, a parede, shit tests, manipulação psicológica e emocional que não se dá conta fazer. E ficar com os meus botões a pensar, ecce donna, tanta cultura e savoir faire de vanguarda e reages como todas as outras que afinal são do mesmo barro?! Se os homens são todos iguais, uns porcos chauvinistas, que se dizer da estrutura que torna, parafraseando Henry Miller, as mulheres em irmãs da cintura para baixo? Eu não queria expor demasiado esta suspeita, para que a pessoa concluísse que a sua individuação é uma ilusão trágica. Isso nunca aconteceria porque bendito ego de Pollyanna não o permitirias. Mas não queria deixar uma assinatura demasiado visível, com o ramo de salsa passado em frente do seu nariz. Havia um método no seu agir, sempre igual a todos os outros, ou melhor outras. Portas-te bem e dou-te acesso ao meu tesouro. A vulva. A qualquer dissensão, a ameaça da retirada. Todas se baseiam nisto. Nos braços de ferro, evocando sentimentalismo agudo para que o alvo fique em suspenso, e depois tratamento de silêncio. Ou facultando mensagens trocadas, uma coisa o que diz, outra o que faz. Ou ataques de vergonha, distorcendo o que o alvo disse, ou ainda ataques de inadequação, tu não entendes… Também em comum a contínua negação de qualquer teoria ou bateria de estudos que explicasse o seu comportamento. Sem vontade de conhecimento pese embora a declaração (que soa bem) que querem entender tudo, negam o trabalho científico e as consequências do mesmo, sobrepondo a sua própria mundividência e dando exemplos da sua vida. Ou, atacando o mensageiro «-É isso que pensas de mim?» - seguindo-se a mensagem latente de que está possível a retirada da vulva da cena. Ao desafio do confronto, medi o seu interesse esmorecer assim que qualquer divergência ia amenizando entre nós. Até quando já só sobravam palavras de carinho, nunca como aí havia tão pouco interesse da parte dela. Tanto despeito que era notória à vista desarmada, a cagança com que me tratava como imbecil. Exercitava em mim os mesmos mecanismos de retalhamento que operara em outros. Fingia ofensas profundas para obter pedidos de desculpas. Socorria-se da enunciação de uma sensibilidade aguda para obtenção de cheque em branco no que concerne ao direito de se indignar pelo que lhe apetecesse. A auscultação das minhas intenções consigo como se alguma vez tivesse estado interessada. A mensagem comportamental irregular, por exemplo andas atrás de mim como atrás das outras, sem qualquer desejo de retirar informação do meu contexto, apenas arrastar-me para o dela, mesmo quando exposto, foi branqueado como factor de carácter. A intenção era clara e foi por mim cumprida, dando-lhe todas as razões para a desclassificação, levando-a a agir como ovelha eléctrica que calcorreia sempre o mesmo previsível caminho. Teve certa vez uma crise de choro no Trindade, à que perguntei o motivo, e era sobre uma ofensa que eu tinha cometido, por não ter ouvido o que dissera. E eu perguntei-lhe se chorara por isso, que faria num funeral. Ameaçou que se ia embora. Como não tinha ainda conseguido desqualificar-me conforme o seu plano – a sua mítica intuição começara a fazer-me o raio X e a procurar motivos para me desqualificar desde o início, agia de forma a provocar indícios e procurava indícios que justificassem esse viés inicial- a sua profecia que se cumpre a si mesma, voltou para trás, engolindo o orgulho e continuar o plano. Queria cumprir exactamente o plano que traçara para justificar a si mesma o acerto das suas avaliações. 2.3 O dia em que nos beijámos pela primeira vez foi muito divertido, para mim. Mónica segue atrás de mim enquanto abro a porta de minha casa. Instala-se no sofá um pouco ébria ainda. O primeiro livro que vê na minha estante, é «Histoire de ma vie» de Casanova. Três volumes em papel Bíblia. «-Ah, eu sabia!» - apontando com o dedo para a caixa com os volumes, e lembrando a conversa anterior sobre sedução e poder. Eu percebi o que queria dizer, e nem tive paciência para dizer que o homem era um filósofo e era disso que tratava a sua autobiografia. A ignorante achava que era um manual de engate, ficasse com a sua ideia, aliás compreensível por causa do nome associado ao significado de sedutor, mais por culpa de Marlowe e Goethe. Descurando-se a Filosofia que sustentava em detrimento dos saltos para a cueca. Tal como se reduz Sade a enrabamentos quando o autor é bem mais profundo. Como reduzir os homens todos a porcos que só pensam em sexo. Trago-lhe uma taça de vinho verde fresco, e sento-me no sofá em frente a ela. Havia sido deixada numa posição ingrata. Um cliché. Trocada por alguém mais novo. Usada, apreciada pelo seu viço primaveril, cuspida fora quando ameaços de Outono se instalavam na sua pele. Ah é o amor. O amor tem as costas largas. Ah mas preferias que continuasse com x, y ou z, já não gostando e só por causa de uma qualquer abstracta noção de lealdade? Viemos cá é para ser felizes. Reentrada no mercado da carne, sem as ferramentas actualizadas para trabalhar, mas não precisa. Fizera do seu aspecto o ponto alto do seu poder sobre os papalvos dos homens. Havia sido sugada e jogada fora, e agora perdera o poder. Neste caso, por muito que lamentasse a sua situação, puxei por ela a ver se me contava as aventuras passadas, mas o indivíduo não tem responsabilidade pelo instinto. Lamento por ti, é só isso. Prefiro uma verdade amarga de frente que uma mentira doce, de lado. E dei comigo a pensar de mim, eu é que sou a verdadeira puta. Prostituo-me pelos braços das mulheres que me aparecem, de forma a ter textos e orgasmos, que me façam pensar ou me façam deixar de pensar. Como que se andasse a braços com um mundo que não entendo e que quero ignorar ou compreender por completo. Não é afinal Susana a pior bipolar, eu sou o bipolar-mor. A entregar-me ao real, concreto e definido por lábios de mulher, para poder compor como escriba as linhas que tentam dar sentido a alguma coisa. Coitadas das minhas mulheres. Sou um imenso cabrão, eu é que as usei, pela carne e para a tinta. Uso cada gaja para me ajudar a compor um mundo virtual que me ajude a entender o mundo «real» em que vivo. Cada gaja usa-me para manter a realidade do seu virtual mundo que lhe permita viver bem consigo própria. Uma codependência manca em que ninguém sai bem na foto. Posso dizer que eu tenho desculpa porque o faço para produzir arte e orgasmos que me distraiam de mim e do abismo que me consome. Mas não tenho. Tal como não me posso queixar de reificação se reifico, ainda que finja como o poeta ser dor a dor que deveras sinto. 2.4 «-Senti-me intimidada por ti ao início. As tuas personagens dizem o mesmo, não é?» - dizia, bebericando o vinho verde gasoso como uma bebedeira de hélio, e encostando-se recatadamente no sofá, vincando o seu espaço, de forma clara. «-Algumas tinham razão, eu sou assustador. Sociopata ou pior.» Mas porque é que as minhas experiências devem morrer enterradas em mim por toda a eternidade no casulo da minha ipseidade enquanto estou vivo? Tu que estás vivo agora e a ler esta merda, não formas imagens na tua nação cortical, imaginando o que raio digo para aqui e as paisagens que parcamente descrevo? Não estamos unidos nisso e não pensas tu ou algo de mim ou do narrado que te faz tomar posição no tecido da tua existência? «-Então não posso estar segura aqui contigo, em tua casa.» «-Sociopata nada. A mulher é o mais perigoso predador à face do planeta. Tem todas as ferramentas e mais algumas para obliterar a mente de um homem. Se e só se, este for controlado pelo seu desejo. Controlando o desejo, poder nenhum tem a deusa sobre mim. Só conseguimos controlar o desejo pela racionalidade. Não é à toa que os estóicos não se calavam com isto. Só a racionalidade permite ver o que está por detrás do véu. Por isso contrapõem a sua mítica «intuição» que é tão real como um unicórnio castrado. Conseguem transformar uma dedução numa ofensa, incapazes de transformar em discurso escorrido o que realmente querem dizer excepto quando já nenhuns planos conseguem fazer para o interlocutor, quando este já em nada lhes interessa. Sempre puxando para o contexto e não para o denotado. Detestam ser apanhadas em contradição lógica e quando acontece, desvalorizam. Apelam ao sentimento como se soubessem transmitir com exactidão a essência do que transmitem, mais seguras do impacto dessa realidade na mente do interlocutor que do mecanismo que as faz agir assim. Experimenta perguntar a alguma a definição de amor, ou se aquilo que ela traduz por te querer, vai além de beijos, abraços, festinhas e caminha pela praia de mão dada.» Ela observa-me e vejo as roldanas a funcionar, se pousa a taça e vai-se embora, se utiliza o que disse para um ataque de vergonha, como vai usar a matéria dada para me ensinar a lição. Lembrei-me de Célia, agarrando-me a caveira com as duas mãos e olhando na direcção das minhas órbitas repetindo que gostava mesmo mesmo de mim. «-Eu não acredito, não. Nunca, no que me dizem. Não porque não me ache amável, mas porque quando me tentam convencer de algo, seja de gostarem de mim ou de que são transparentes, eu ajo como tu agirias se fosses esquimó e alguém te quisesse à viva força vender um frigorífico. Se gostar de alguém é algo que basta por si, a intenção de convencer o outro extravasa o exercício desse gostar. Então, mas se dizes gostar de mim, o teu comportamento mostra algo diferente? Ah, é porque sinto e ajo de forma diferente de ti. Ou então é para carregar no botão de reset do desgraçado que se perde entre a contradição do falado e do agido. As mulheres nem são anjos nem demónios. São os que as deixo ser. Estas cachopas todas ficcionadas, abonecadas por mim, são um diálogo que tenho com o mundo. E gosto das mais doentes, das que fizeram mal, não porque sejam más, mas porque são o melhor cartão de visita para uma superioridade moral que tudo o que tenha vagina parece ostentar de nascença nos dias que correm. E nós homens, participamos nisto. Dada a hipótese, qualquer tipa nos larga se achar que arranja algo melhor. E são esses critérios de avaliação que me interessam, não o largar ou ficar. É o conteúdo, a estrutura interna da sua cabeça, que me interessa. Em 2006 era moralista, as ninas fizeram dóidói. Hoje tenho mais ferramentas para ver ao longe a pedra de Roseta. Por isso ficam apreensivas com o que lhes pergunto, pela forma como pareço desprovido de emoções. Ou de como as uso como elas, para provocar reacções e situações heterodoxas de forma a ver como age o indivíduo e como age comigo. Analiso o meu e o seu comportamento numa dança com lobos aleatória e feliz na minha forma de olhar. O poder delas vem do nevoeiro.» «-Eu não sou assim João.» «-Eu sei Mónica.» Se as acções e razões do seu agir fossem claras e à vista, o homem perderia a fama de porco que só pensa em sexo. Perderia a culpa que o domina por procurar na felicidade da mulher a sua própria definição de género. Aliás, é no afago ou na manipulação do ego masculino que toda a sua sedução começa. Opá João tu tens uma cabeça, ou és inteligente, ou não acredito que disseste isso, ou oh pá és incrível, é tudo a variação do mesmo. Uma festinha no ego, para soltar um conhé de endorfina e condicionar esse sentimento de bem-estar à origem do mesmo, a boca de onde sai o elogio. Pavlov devia ter feito a experiência com homens crédulos, em vez de com cães. Ah mas és amargo. Não, não tenho nenhum motivo para o ser. O amor que dei, e chamo-lhe amor masculino que difere do feminino, foi todo verdadeiro. Sofri quando larguei e fui largado, formei vínculo com todas as pessoas com quem me envolvi. Mesmo quando decidi acabar com quem acabei, passei noites sem dormir a curtir o estalo da mágoa. Admito por fim, a mulher ama, mas ama diferente de mim. Totalmente diferente. E isso não é força, é Darwin. Amor como o do albatroz é raro. A mulher não é forte psicologicamente, nasceu com as ferramentas. Tal como aquele holandês de dois metros e dez, nasceu, sem esforço dele, maior do que eu. Mulher com personalidade não é rara, mas não abunda. Andam por aí escondidas como diamantes, e o traço comum é que se esquecem do facto de serem mulheres, podendo enfim amar como pessoas. A maior parte do gajedo está determinada pelo seu sexo hiperinflacionado. «-Já a Serra me dizia que eu tinha amargura com as fêmeas. Fez-me pensar. Não, não tenho.» Essa é outra, quando a abordo, então está tudo bem contigo, ou nem responde ou parece que me faz um favor ao responder. Ok, medita e vai a retiros budistas, mas algo falha na sua moralidade, ou então sou eu que não compreende tal profundidade ética. «-Quem é a Serra?» - pergunta ela, intrigada. «-Um Natal passado. Onde não houve troca de prendas.» De certa forma Mónica sentia que tinha ganho. Eu tinha investido bem mais latim do que ela, e portanto havia dado a indicação que estava interessado. Sentei-me a seu lado e beijámo-nos. Na cara dela vi que queria dizer tudo o que fosse possível para me fazer ceder.
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