O demónio de Adriana era um oito deitado, uma rodela de infinito tipo roda de hamster com selo de àgua em cada pensamento seu. Mão na dela dada, percebi que a sua doçura acompanhava uma preocupação maior em não me perder do que em ganhar-me. Ou ela pensava demais, ou eu fui um estúpido sem paciência com ela. Apresentou logo uma pressão para que entrasse numa relação com ela. Quando a mulher tem opções não gosta de ser pressionada a compromissos. Quando não tem, lixiviamos a pressão que faz, ah afinal é porque está a ver se tenho real interesse nela e não um capricho passageiro. Eu disse-lhe «-Sabes lá se tenho flatulência incontrolável, ou se algum fétiche com courgettes.» O cheque em branco só para estar numa relação é um arrepio na ilusão de individualidade. Oh sim, já acreditei no amor fusional, no mito da alma gémea e nos pós de perlimpimpim. Agora vejo a coisa piar muito mais fina. Já não uma estrada de seda em uníssono, com os astros juntando as almas na procissão eterna. O mundo surge com outra cor, a camada de tinta da suspeita pinta tudo com todas as cores e nenhuma, nunca sabemos bem o que estamos no fundo a ver. O mundo torna-se complexo como iluminura barroca. O indivíduo tem de fazer um mapa da realidade (acabando invariavelmente esquecendo que o mapa nunca é o território) para não se perder ou mesmo para evitar a dor emocional que em nada difere da física. Perder um braço não difere em dor, de perder-se o nosso amor. Às vezes perdemo-nos nós, que é a pior dor, a dor de um âmago que sofre mas ainda não retornou a si para avaliar os danos. É o ego que se esboroa, é a terrível pergunta, «-Mas porquê a mim?». Por vezes olho a maior para a maior parte das mulheres que se cruzam comigo na rua e tento perceber como pensaria do lugar delas. Cruzando-me diariamente com espécimes mais altos e fortes do género oposto, cuja maior parte conseguiria impor a sua vontade à força se todos para aí tivessem a inclinação. E é quando me bate, se fosse mulher faria igual ou pior. Afinal só se vive uma vez e códigos éticos são coisas de gajos. Um nojo de se deixar arrastar pelo contingente, assume o homem orgulhoso ainda que isso indique abdicar da parte de si que mais o liga ao mundo. Desculpa de mau perdedor, ou o jogo é que é miserável? Ambos. Adriana deixa escorrer as lágrimas pelo rosto, olho suas botinhas cujas biqueiras apontam uma para a outra. O rosto congestionado, as mãos pousadas uma na outra em súplica, e eu a maldizer-me ao mesmo tempo que dizia para fora «-Desculpa, eu sei que de nada adianta, mas não consigo, estou defeituoso neste momento.» Mentalmente chamava-me nomes e jurava a sangue borrifar-me para o gajedo, afinal que merecem os indivíduos por trás dos olhos, sempre a ser desmembrados? Que merda se passou, a pessoa é bonita e bem feita, mas a insegurança ou o trauma ou sei lá o quê. Adriana posso continuar a fingir ao teu lado mas nunca me perdoaria por te fazer perder tempo. E é de facto esse o padrasto delas. Não é meigo para nós, para elas, ui. Perdoei-lhe tudo, as birras, as manipulações, as manhas. Os bluffs, e aberta a porta do mea culpa, ela era inimputável. Dentro dela brotava um caudal de emoções que nunca lhe poderiam não toldar qualquer racionalidade. Lembrei-me da minha mãe e das vezes em que lá em casa os extremos emocionais me identificaram justamente com o feminino, que guardado muito tempo se torna veneno para o cromossoma Y. Nunca conheceu outro homem até ao meu pai, e ainda hoje o ama, se bem leio. Não teve a experiência de noite e quecas na festa da espuma. Eu que sou filho, identifico tentativas de manipulação emocional, sem consciência alguma de que as faz, apenas parando para pensar quando as identifico verbalizando uma análise do seu comportamento. «-Se não metes ar nos pneus, rebentas com a transmissão.» Se o disser num tom mais alto, que interprete como recriminação, reage dizendo que «-Estás sempre a criticar-me, não tenho valor nenhum para ti.» Se o assunto é mais grave, é fácil surgir uma lágrima. Que raio tem um pneumático sem pressão a ver com crítica ou desapreço a alguém? Nada, mas é essa fuga para a frente que não temos nem queremos ter. Não há rigor lógico nenhum no que afirma, a decana senhora. Se e só se, conseguirmos controlar o nosso desejo. As razões das lamúrias estão não no objecto mas no observador. A única forma de acabar com a lamúria é com compreensão profunda, profunda como cordilheira no centro do Atlântico. Entre Adriana que queria gostar dela, e Mónica, que queria que gostasse de mim, resto eu na figura do meu desejo mimado de querer resultados que não dependem de mim. Não gostando de nenhuma? Mónica é a portadora de dentes e garras. Se caisse na teia dela era devorado, liquidificado e pré-digerido a partir de mim próprio. Dissolvido e sugado. Felizmente a única coisa que não engana é o comportamento, e é por isso que testo as pessoas. Deixa-te de merdas, toda a gente se testa. «-João, essa historieta que contas parece-me mais um monte de queixinhas porque recusas aceitar o jogo. São estas as regras, já tens idade para as interiorizares.» «-Tens razão.» - disse eu já com a boca seca que o vinho verde me provoca sempre que bebo mais que um copo. «-Mas diz-me, que fiz eu, para que me ligassem depois de me rejeitarem um ano antes, a fazer sexo com outro, para que eu ouvisse? Ou depois de arranjarem outro me tentassem passar para para uma amiga mais encalhada, como se eu fosse um bem transaccionável? Ou que estivessem a fazer sexo comigo e espreitassem a foto do namorado que eu desconhecia existir, no telemóvel, ou até saltar de cima de mim para atender uma chamada, ao som da banda sonora da «Cidade dos Anjos»? Ou de depois de fazerem sexo comigo, irem à casa de banho tirar uma foto do peito para mandarem a outro, que por acaso me conhecia?» «-João, tens de começar a escolher mulheres de melhor qualidade.» «-Tens toda a razão Mónica.» - toda mesmo. «-Mas a questão mantém-se, que fiz eu, mesmo não me considerando inocente, para passar por este tipo de experiências?» Mas percebi logo que a pergunta que fazia não tinha razão de ser feita. Como se os indivíduos fossem mais que marionetas nas mãos do instinto. Para que serve a razão? Para nos esconder a mão que anima a marioneta. Ao criticar a gaja critico a marioneta. E no entanto, algumas, como Mónica, são conscientes do que fazem. Sabem que determinados comportamentos provocam determinados resultados, e fazem na mesma, porque são escravas do seu ego. Ou é para provarem a si que controlam como querem, os mecanismos de sedução, ou para queimarem o tempo suficiente que as distraia dos demónios interiores por um assunto que facilmente as arranca de si e de terem um eu. Numa escadaria hierárquica erigida para o Inferno acima, na matriz complexa de avaliações. A habilidade de cada uma aferida pelo domínio maior ou menor do instrumento de trabalho, o homem. Seduzindo o sedutor. Provando ser mais esperta que o que parece ser mais esperto. Mano, parece uma concertina. Muitas vezes, as tácticas são tão novas ou personalizadas que apenas uma voz interior nos lembra dissonância. Por exemplo uma vez no Vává em 4 lugares de mesa redonda, coloca-se no lugar de mais difícil acesso, apenas para me pedir que lhe trouxesse o café e um brigadeiro. Apenas para me meter a fazer algo para ela, para investir esforço, para ficar apegado. Mónica precisava de mim precisamente para validar-se a si mesma vendo-me como um desafio. Certa vez na sua cama trouxe um papel e caneta e começou a esboçar os nomes, por ordem de preferência, dos nossos filhos. Aqueles olhinhos vivos e pequenos, olhavam-me analisando cada expressão e trejeito, fazendo-me o perfil. Até eu, achei estranho e incongruente, entrei na brincadeira. Visava dar-me a ilusão de continuidade e significado, já que era visível que no seu olhar não existia esse tipo de vínculo comigo. Em pé no jardim de Moscavide, porque não me viu entregue como queria, agarrou-me nas mãos como Célia pegara na minha cabeça, e disse-me que gostava mesmo de mim, não entendes?! Um dos seus exercícios preferidos era jogar o jogo ‘Trazer dos mortos’. Era assim, levava a conversa até um ponto de ruptura emocional, sempre do seu lado, ia para casa após algumas palavras e acções menos conseguidas, mas nunca passando a linha do que sabia que eu considerava admissível. Depois divertia-se a dar a volta ao texto, com alguma elegância tenho de admitir. Era um fartote para ela. Geralmente girava a argumentação em torno da falha de comunicação ou da degradação da mensagem comunicada. «-Não percebeste que queria estar contigo, e que me convidasses?» Tão proactiva a convencer-me a ir a um bar com o seu círculo de amigos, tão recatada a dizer que queria que a levasse ao cinema. Nessa grande zona de cinzento, que é o território supostamente virgem do sentimento feminino, cabem resmas de continentes. Particularmente era a geração de contrários, se estava distante estando perto, é porque queria mais proximidade, se estava perto estando longe, é porque não queria que eu estivesse longe. Reconhecia que o indivíduo era extremamente inteligente. Via que me sabia avaliar a personalidade e colocar as cunhas de reaproximação nos pontos certos. Sabia quando me levava ao ponto de passagem à reserva e trazia-me dos mortos, ora dizendo que tinha estado num karaoke em alemão e se tinha lembrado de mim por causa de uma música chamada ‘Sein und zeit’. Ora fazendo uso do menos sofisticado retrato erótico usando meias de renda que comprara num catálogo online e que pareciam saídas de uma festa de Disco dos anos 70. Sabia que mostrar um pouco de carne, era o mesmo que aproximar maçarico de manteiga congelada. Eu mantinha comportamento irregular para a confundir. É o que procuram, uma matrix etiqueta para catalogar o gajo. Como descobridor quinhentista, depois do território descoberto, passar à frente. Quanto mais racional o gajo, mais joga o jogo do paradoxo, dizendo algo e agindo de forma contrária. Tinha umas pernas proporcionais aos seus 170 centímetros de altura. Os quadríceps obtinham particular atenção dela no ginásio, para disfarçar a celulite. Tem uns gémeos bem feitos, simétricos e salientes como rosto de demónio descaído em parede de catedral gótica. Era muito morena, de modo que se destacava o branco lindo dos seus olhos, em órbitas redondas como os seios abaixo que olhavam também sempre em frente nunca se permitindo uma réstea de desânimo. A minha mão percorria a sua pele nua, por um dos flancos e uma lasca de pele que teimosamente dividia a vontade entre o abismo e permanecer agarrada a mim, fez-me lembrar as antigas agulhas de gira-discos à medida que a minha mão a arrastava por aquelas planícies de carne. Esperava que o som de tal gramofone soasse à palavra ‘amo-te’, mas o único som que se escutava era da respiração pesada dela, e vindo em surdina da agulha de pele inoportuna a repetição ad nauseam «-Mas porquê a mim?» Nestes momentos de verdadeira lucidez, após orgasmos padrastos, pode uma alma condoer-se com o destino comum no Inferno de todos nós aqui. De um ponto de vista amoral, era onde eu escolhera viver, na ilha de onde se vê o curso anual de furacões nas estações de mulheres que passam pela minha vida. Já que não mudo o jogo, deixa-me entendê-lo e amar o próximo demónio acossado de demónios. Só em desequilíbrio se consegue projectar alguém no judo, aqui é o mesmo princípio. Eleva-se o ego do alvo até ficar em bicos dos pés, inclinando-o até um ponto de não retorno ao equilíbrio prévio, e quando o centro de massa já não pode voltar atrás, retira-se todo o apoio que restava, para acelerar a queda em direcção ao núcleo terrestre, com um duro pavimento pelo meio. O resultado é algo análogo ao colapso nervoso. Mónica na sua saia de cabedal preto, e olhar triste, com um cilício dentro que é a criança que afoga desde que sofreu o primeiro desgosto amoroso. O João estava à sombra desse ignoto escolho. A mulher é o maior predador à face da Terra. Cada mulher é potencialmente o fim do homem que a vislumbra como crente nas margens dos grandes rios. É guerra. É guerra sem quartel, não te esqueças disso. Mas o inimigo não é visível. Convidei as duas para um café. Olharam para mim e disseram, em uníssono, «-Estivemos juntos noutra vida.»
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