Exumado do chão I A escavação visava prospectar vestígios de ocupação romana num ermo elevado sob a lezíria mais fértil do país. Tão fértil que em solos de classe A, brotam espontaneamente centros comerciais. Por aqui entraram águas no dia do terramoto. O fim do Estio trouxe-me até aqui, sem rumo que me apeteça tomar, senão fazer como todos os outros, esperar pela ilusão que uma nova época iniciada em Setembro onde a vida parece se compor de etapas às que os outros se entregam a viver, restando-me a mim recusar e parasitar cada fotograma do filme todos os anos revisto, lamentando pelo eco a passagem do tempo que não consigo ou sei apanhar. O arqueólogo responsável manda-me acertar o corte numa quadrícula marginal, quase fora do perímetro da intervenção, e só para que eu não me queixasse que nada havia para fazer, neste jogo que todos jogamos que é fingir que vivemos esperando que a morte venha, chamando a essa espera vida, e entretermo-nos nos entretantos em que conseguimos esquecer que estamos a fingir. Aninhado no rectângulo de metro e meio de profundidade, mais perto do núcleo terrestre que eu quero que me dissolva nele e faculte os meus elementos a outros, pude abandonar-me a pensamentos que uma tarefa sem sentido permite. Quanto mais o corpo se ocupa mais a mente está livre para se poder perder. Ao raspar a colher de pedreiro pelas linhas das camadas dos depósitos de inertes, que testemunham a acção do Nada sobre si mesmo, lembrei-me de Joana. Talvez por ter representado o mesmo carácter ilusório e instrumental que a colher de pedreiro me dá a mim, raspando a terra para poder ver melhor o que está enterrado sob as camadas de tempo. Revi os passos da nossa breve interacção, não por algum impacto que tenha tido em mim, mas por causa do que significa a assertividade e mau carácter de Joana, contrastando com as diferentes camadas de terra que se sobrepõem umas às outras, de forma quase indiferente e relaxada em relação ao que significa o Tempo assim medido para a mole de indivíduos que nasce e morre em cada camada onde auscultamos os seus objectos, restos mortais e atmosfera de sonhos. Joana, cuja personagem que escolheu representar é a da guerreira sobrevivente e resiliente, contra tudo e contra todos como o rio que morde as margens até ficar desdentado e indolente às paredes de terra que o confinam. Joana, que posta balelas de auto-ajuda, exortações ao mundo para público ler, e textos simulacros de profundidade bacoca, com a excepção de um – honesto – e eu num buraco? Que importância para mim teve esta moça, que me veja movido pela minha memória dela, ajoelhado num buraco semelhante ao que no futuro me servirá de sepulcro? Nenhuma. Tirei as luvas, pousei a colher, e afaguei as paredes da minha cova. Joana nenhuma importância teve, tem ou terá, mas a sua personagem ou arquétipo sob o qual a subsumi, sim. A instrumentalização da sua personagem sim. Conheci-a numa altura em que estava desesperado, carente, ego destroçado, e num buraco também, por causa de uma malandrice que permiti que me fizessem. Num Natal em que nem conseguia levantar a cabeça de desânimo, uma amiga falou-me em Joana. João, Joana, ela lê muito, é muito inteligente, também escreve, e gostava muito de sexo, tinha conversas sofisticadas e mais não sei o quê. Perguntei se só faltava ser bonita. Mostrada uma foto, Joana era, é de facto bonita. Siga, marque-se qualquer coisa, disse eu, projectando um qualquer ponto de fuga que me fizesse sair do buraco onde estava. Algumas linhas trocadas por redes sociais, ela cancela um dos encontros com desculpa de treta, e finalmente um jantar na casa da amiga em comum. Fiz a maldade de chegar propositadamente atrasado para aferir o grau de interesse da cachopa, combinando com a minha amiga antes, que comunicasse que eu não iria, e que observasse a reacção do indivíduo. Ficou triste e desiludida, esforçando-se para não o transparecer. Menos mal, pensei eu, alguma curiosidade em conhecer-me não é mau. A surpresa da minha chegada foi também bem disfarçada, com olhares desferidos pelo canto dos olhos e fingimento de que estava absorta em conversas alheias a mim. Reparei que levou uma amiga, ex do seu ex marido. Estive para perguntar se iriam formar algum clube de fãs. Mas o objectivo era mostrar à outra que tinha tipos atrás, eu no caso respectivo. Pousando a garrafa de vinho gourmet, que havia levado para quatro, agora cinco bebermos cumprimentei toda a gente. Até chegarmos à mesa onde tenho a mania de que sou rei e senhor da oratória, passámos por um período de apinhamento na cozinha preparando os cadáveres que serviriam de base à alegria da nossa reunião. As rememorações dos factos ocorridos assistiam-me na maquinal tarefa de desenhar perpendiculares à horizontalidade da fronteira entre ar e solo. Trazendo baixo os sedimentos que fofos e órfãos se jogavam a meus pés como donzelas inertes e apaixonadas. Acertando o corte, como queria à viva força acertar o corte da minha vida – numa quadrícula impecavelmente arrumada e geométrica – com Joana. Sem a conhecer, sem a conhecer, sem lhe auscultar o perfil como pessoa. No mesmo erro de aceitar a pessoa só pelo facto de ser mulher e minimamente razoável. Um facto era óbvio, tinha olho para escolher as melhores fotos para as redes sociais. Era bonita de cara mas a volumetria iniciada no baixo ventre e a largura das ancas que in loco conferem mais extensão ao seu centro de gravidade. Agradável à vista na mesma, e ter sido mãe duas vezes tem preço. Não me ralava, quando gosto das pessoas não sou cego mas também não ligo a pormenores. Numa das pausas a meio do repasto, que todos fizeram (menos eu que não fumo), ela volta da varanda do 7º andar mais cedo. Encontra-me na mesa, começamos a falar e a conversa azeda quando aponta a forma como quer que a aborde, apontando coisas que não tolera ou admite em mim. Leia-se, discordar dela, e particularmente em fase de cortejamento, que nas palavras dela teria de a respeitar e aos limites que impunha, falhando enumerar quais os limites que que queria que eu respeitasse, quando perguntei quais eram. Essa falha em enumerar e o gaguejar que a ela se seguiu confirmaram-me o que eu já sabia, era uma mera táctica de descolhoamento. Estava a dizer-me por outras palavras, que para a Ilha dos Amores aparecer no horizonte, eu teria de rastejar até beijar os pés do Adamastor. Disse-lhe muito cordialmente que ninguém me determina a espontaneidade nem a concordância ou discordância de discurso, e que muita rapaziada existiria por aí, mais capaz para esse tipo de conversa onde se troca uma posição própria por validação de um deus de lábios menores. Mas João, eu escolho o tipo de pessoas que entram e permanecem na minha vida, e não quero pessoas negativas que não cumprem as minhas regras e me sorvem energia, eu defino as fronteiras da forma como quero que me tratem, era o que mais faltava. Mas Joana, dizia eu, repara que isso que dizes que escolhes é a reflexão de uma quimera que projectas a partir da tua ideia para o mundo que te rodeia, mas isso é escolha e problema teu. O outro não é o boneco insuflável com a boca sempre aberta de espanto na tua direcção ante a maravilha que és. Quem discorda de ti não é teu inimigo nem uma pessoa negativa ou cansativa, é alguém que não tem o mesmo investimento de ego nas tuas crenças, que tu tens. A isto exclama que não lhe devo falar de egos que ela tem um curso de Psicologia e percebe melhor do que eu aquilo que estou a dizer. Ignorei a sua jactância e prossegui dizendo que a tua própria definição de fronteiras é uma limitação do meu discurso, que considero cordial e correcto mesmo quando me insultam, e que por isso aquilo a que chamas de escolha de como queres que te tratem não é senão um condicionamento do outro, à maneira de quem lendo um mapa chega ao pé de uma lagoa lamacenta reclamando pela falsidade do real por comparação ao mapa que a representa de cor azul clara. Adiantei, estás a fazer uma infantil utilização do ultimato, do ou fazes como eu quero ou não tens acesso à vagina dourada. A sua face ficou ruborizada, e bombardeia-me com palavras proferidas demasiado alto, deixando-me perplexo por ter rasgado o seu verniz tão rapidamente, e para não ser deselegante com os anfitriões, calei-me, não lhe dei resposta. Confirmara-se que era uma viúva alfa, projectando o passado inatingido por qualquer prospecto de futuro, havia-me desqualificado na primeira interacção, porventura projectando a sua interpretação de erros passados em mim, por certo lendo-me como alguém que não sou. Sem qualquer esforço da minha parte, revela a sua forma de avaliar e pensar, quando por si revela a ascendência que o ex tem num dos rebentos, que como todos os miúdos em determinada idade se interessa por meios, e a expressão utilizada e vincada por ela, é «poder económico», com um arregalar ostensivo de olhos quando diz o «económico». As premissas do seu comportamento comigo eram finalmente clarificadas. Naturalmente o masculino teria de perseguir o feminino e trata-lo de acordo com o ditame imposto pelo último. A naturalidade com que isto era dito e expresso era divertidamente desconcertante. Ela assumia como base desta mundividência, que o falo era de valor inferior ao da vulva. Como que se olhando para mim tivesse ‘intuído’ o meu estado de carência, logo, o meu estado de sujeição, e tudo a partir da atenção que lhe dava e da argumentação que apresentava. Notava-se que era daquelas pessoas que considerava a realidade simples e que quem quer que elaborasse frases mais alongadas e manifestasse surpresa com a dialéctica que a conversa permite, era um fraco. E que por arrasto, falar muito é manifestar muito interesse e que muito interesse é falta de opções e que falta de opções significa que ninguém quer o orador, e que isso significa pouco valor ter. Por isso diziam os antigos que o silêncio é de ouro. Eu era por ela visto como uma velha garrafa de Whisky de malte, vazia. O conteúdo que me faltava era o de acerto com o mundo objectivo. Aquele que todos nos queixamos nos textos de meia noite nas redes sociais onde nos queixamos da natureza do mundo quando as coisas não correm como queremos. Eu era bom pelo aspecto, teria peso para lhe dar atenção, mas não o suficiente para algum ponto de massa critica, não bom para beber. Mas apesar de tudo, queria convencer-me do meu peso no seu contexto. Numa noite tomou comprimidos e bebeu aguardente. Ligou-me a contar, que se estava a matar. Disse-lhe que ia sair para ir para casa dela. Disse que não, que já iam duas amigas a caminho a quem ligara primeiro a informar o ocorrido. Que estava a ficar melhor. Hei, todos precisamos de atenção e mimos de vez em quando. As amigas tocam à campainha, no momento em que me dizia que já não tinha força para escrever no teclado virtual do telemóvel, levanta-se efusivamente e chega rápido à porta onde as recebe efusivamente, deixando o smartphone pousado na mesa e eu pendurado sem aviso prévio. Era claramente uma suicida precavida. Desliguei. Ainda falámos algumas vezes telefonicamente, onde por iniciativa própria me contactava a marcar encontro para depois uma hora antes telefonar a desmarcar sem adiamento proposto. Mesmo querendo dar o benefício da dúvida algo me dizia que estava fora do sítio. Escrevi o texto de despedida sobre ela, e não gostando liga-me de imediato vernaculando e ameaçando, comigo calmamente dizendo qual o sítio apropriado para acondicionamento das suas ameaças. Nessas breves conversas exprime achar que mau carácter é traço de personalidade forte. Ameaçou-me com a Lex. Ri-me. Descobri que engravidara. Ri-me ainda mais. Qual a sua necessidade de jogos quando andava com outro que lhe captara a escolha reprodutiva? Terá a insegurança este resultado, a necessidade de sentirmos que temos opções caso a aposta no cavalo escolhido corra mal? A determinação prévia de como queria que a tratasse, deu-me a resposta, ela queria ser adorada como deusa babilónica para captar capital de autoconfiança para lidar em igualdade com o puro sangue de quem escolhera engravidar. Ordenhando essa autoconfiança através de mim. Nem que isso implicasse alimentar a peça de teatro que fosse essencialmente colocando a vulva numa curva adiada até ao infinito a ver se eu percorria a estrada. Desde a verbalização em alto e bom som à mesa, que já era para mim alguém a quem eu só dava já o benefício da dúvida. Lembro que na altura decidi não dar azo à minha indignação ante estas forças que agem por detrás dos olhos dos outros. Da mesma maneira que todos achamos sermos imperscrutáveis ao entendimento de quem quer que seja. É essa a minha maior falha, o orgulho. Em vez de aceitar, indigno-me pela possibilidade de o outro achar que me engana sem o seu consentimento. Tempos outrora em que me flagelava pela desconfiança, mas no mundo de Dante, não é desconfiança, é entendimento. II Perdido no ócio desta cogitação prolongada, raspo com a colher de pedreiro uma rocha que afastada a poeira, se torna saliente. Com a ponta dos dedos tacteio para ver se vale a pena descompor o aspecto musealizável da quadrícula, com este calhau inoportuno. A sua superfície era de algo análogo ao mármore, e era trabalhado o que me aguçou a atenção. Podia ser um seixo. Tacteando com o indicador percebi a concavidade que determina o fim de um queixo e o início do cume de um lábio. Lembrei-me de todos os beijos dados com a maior oferenda de carinho que cada momento me permitia, aos seres que me captaram os afectos nas diversas camadas geológicas da minha vida. Poderia ser isto um busto, um rosto? Não deixei de com colher e trincha esgravatar cuidadosamente tudo à volta para desencobrir o mistério. Consegui colocar algum pó de lado e uma boca saúda desde séculos o raiar do Sol poente, e um magnetismo apodera-se de mim, com meus dedos limpando seus lábios de forma a compor a boca. Entreaberta como que respirando ou querendo dizer algo, seria esta a ocasião em que a mulher dos meus sonhos deixaria de estar enterrada nas camadas inconscientes. Lábios tão belos que torneados por Deus. Teriam estes cabelos a cor vermelha daquela que queria trazer até mim? Passa a tontura momentânea do clímax da descoberta. Apenas tenho um queixo e dois lábios, não sei ver se são de mulher. E se forem, achas que é Deus que fala contigo dando-te um sinal? Que a mulher que queres é de pedra? E viveu antes dos teus elementos serem tu? Já não é Arqueologia que faço, é a ilegal caça ao tesouro, rapina de património com a ponta dos dedos, só cuidadosos para manter a integridade do rosto que quero ver. Mas o meu amor não mo quer mostrar, entregue que está a outro, e colocando-me de lado como Joana. Não me sinto injustiçado, as coisas são como são. Não posso ter a minha cereja, tal como não posso conhecer o busto que desenterrei. Uma qualquer piada metafísica mostra-me a partir de uma vitrina aquilo que não posso obliterar em uníssono comigo, misturando elementos. Apalpo um nariz desfeito por metade. Como quilha de navio que deixa adivinhar os dois bordos. Consigo agora abarcar todo o rosto sob uma das minhas mãos. Toda a terra demora demasiado tempo a sair e a dar lugar a uma imagem nítida. Só uma narina chegou a mim através dos tempos. O gotejado no mármore dá humanidade à face. O que me afasta dela é mais que uma escolha. É o mesmo que nos aproxima. O que não tem remédio remediado está, digo calçando de novo as luvas para esgravatar o chão sem me cortar. Percorro um círculo amplo onde calculo estar o perímetro da cabeça. Delineio um perfil pétreo. Começo a definir o monte de cabelos, apanhado por detrás da nuca e lembro quando tos agarrei enquanto te beijava por trás sorvendo a tua boca. O rosto de pedra prometia o que fora só momentâneo, total decisão e que o mundo arda pelas mãos de mil Neros. Um ângulo mais agudo permite que eu arranque o busto completo do seu milenar enterro no chão. Pesado ergo-o verticalmente, sacudo a terra e limpo-o como posso. Meneia a cabeça para a esquerda e desta feita não estou desiludido. A expressão não é irónica como a de Ozzymandias, é fatal. Tento imaginar-lhe cor, cabelos vermelhos, rosto branco, lábios mais vermelhos. Não combina, o rosto sem olhos projecta uma determinação perdida pelos tempos fora. Como alguém que lamenta pelo tempo que lhe resta e depois, o incumprimento de um amor escrito nos astros celestes. Este busto de mulher revela a pessoa em pedra, que olhava além do mundano, através do pulso magoado de saber o quanto custa existir, e o quão inerte de sentido que não revolta, tudo isto é. Ela própria me diria, por entre aquela boca entreaberta que nenhuma mulher é o sentido ou válvula de escape para a minha vida. Eu responderia, eu sei amor, tens toda a razão. Mas saber que há algo em que nós dois fomos feitos para encaixar na teia das órbitas dos planetas como duas aranhas siderais em dança de acasalamento, sossega-me, que posso eu dizer... Afago o rosto do busto, passeando o indicador levemente acima do sobreolho e tento compor-lhe os cabelos como sei que ela não gosta, e puxá-lo para mim a partir da nuca, para lhe beijar no delta entre a parte inferior do olho e superior do nariz. A solenidade, impede-me. Há algo de respeitoso no rosto da jovem. A expressão de determinação no acesso a uma mágoa metafísica que perdurou através dos tempos até mim. Num tempo em que a pessoa viva gravada em pedra poderia olhar para o futuro com esperança e apreensão, tal como eu olho para as tuas mãos esperando pelo dia em que me agarrem para não mais me largar. Continua. (…)
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