«Quero deixar escrita uma confissão, que ao mesmo tempo será íntima e geral, visto que as coisas que acontecem a um homem acontecem a todos.» JL Borges I A história de um amor feliz equivale mais ou menos à vida de um ente querido, bicho ou pessoa. A vida nos estágios iniciais, promete muito, ejacula alegria e viço, que são no fundo meras auto-celebrações. O encontro onde jaz algum tipo de sentimento, acaba sempre por degradar-se, dar origem a outro, ou morrer, tal como o receptáculo desse afecto. As relações alteram-se, ou acabam. Seja pela morte, seja pela vontade. Vemos o vizinho na rua, a quem no decurso dos anos aprendemos a cumprimentar, uma ou outra vez cogitando na razão desses ‘-Bons dias. ‘ que lançamos aos outros, que essa saudação emerge de um acto mecânico instaurado pela sociedade de costumes, cristalizado sobre a vontade de duas pessoas celebrarem a presença mútua num espaço e tempo, uma espécie de tradução de «-Seu cabrão, bom dia, estás vivo? Estamos vivos e que continue assim, até morrermos daqui a muitos anos.» Pela boca, e mecanicamente apenas sai «-Bons dias vizinho!» Diz a ética amadurecida, que difere esta dinâmica com os humanos menos viajados em torno do Sol. Os bons dias ditos a adolescentes ou jovens adultos, é uma mera formalidade que amiúde cospe de regresso um eco de cordialidade do outro lado, na urbe desta orbe. O jovem corpo é alérgico a ruminações sobre a própria morte, ela é-lhe tão estranha com um copo de água fresca é no meio do deserto. A morte dos outros, ocorrida ou adivinhada, não traz grande carga metafísica, apenas uma ténue suspeita de que o outro que morreu, ou aqueloutro que morre, merecem tal, para expiação de uns quaisquer pecados cometidos. O jovem pensa conceptualmente a morte, mas não tem a experiência da mesma na carne. Dedutivamente é-lhe óbvio, que tudo acabe um dia. Mas a janela de futuro recém aberta ao seu caminho, transbordante, grandiosa, transforma aquele ponto preto lá ao longe, num minúsculo grão de Cosmos, que com o passar dos cada vez mais curtos dias, se agiganta até se tornar a inevitável parede ou túnel ferroviário. A morte parece ao jovem corpo algo tão estranho como uma rodela de gordura num mar de água limpa. Afogados em hormonas e neurotransmissores com nomes esquisitos, que ora aceleram o ritmo cardíaco, ora nos afundam numa depressão, ora nos elevam numa mania, os jovens corpos estivais, ora retribuem o cumprimento, ora não retribuem, consoante o comportamento hormonal que não entendem. Olha para os mais velhos não como receptáculos de experiência desta merda de estar vivo, mas como cadáveres adiados que de alguma maneira se recusam a perecer, como humanóides ultrapassados, despojados da única coisa que justifica o querer estar-se vivo, cá, todos os dias abençoando o Sol. Aos olhos do novo, o velho é algo de ultrapassado pela evidência da passagem do tempo enquanto sucessão de consciências, o velho ultrapassado por um mundo que mudou, um corpo sem utilidade no mundo requentado da vertigem e sentimentos ao rubro. Essa gente de outras eras, alinhada em fila para o abismo, um passo de cada vez em direcção ao abismo da obliteração e do esquecimento. Condições humanas irrepetíveis, ao que parece, perdidas para sempre num turbilhão de nascimentos e mortes. Mortos a prazo. Mortos a prazo que nos passeamos pelas ruas, recusamo-nos a morrer, a sair dignamente nas nossas condições, não. Inventamos histórias que nos convençam que o dia de amanhã valerá ainda a pena testemunhar, que progredimos no espírito, esse malandro que só vale alguma coisa no ocaso do corpo. O que nos faz continuar a respirar, mesmo sabendo que não viveremos mais um amor, que a ‘vida’ cada vez nos entusiasmará menos, que as coisas cada vez menos notáveis serão? Como continuar vivo, sem a capacidade que a vida tinha de nos seduzir, capacidade que decresce exponencialmente ao ritmo que mergulhamos na ideia de que ela, a vida, outrora foi diferente do que é agora. Não foi. O nosso corpo é que mudou. Os nossos pensamentos são o nosso corpo a falar. Como se num prédio abandonado e escuro, uma janela onde só sobra o rectângulo da guarnição, deixasse entrar a luz do móvel e previsível Sol, que rasteja iluminando o decrépito soalho bafiento e com cheiro a urina de rato. Cada dia assinala a sua passagem, cada vez mais curta ou longa de acordo com a translação da Terra. Assim se sucedem as gerações, iluminando o espaço escuro por fugazes momentos, oscilando entre elas, da escuridão, ao meio-dia, ao ocaso, empurradas por um orbe que não conhecem ou controlam, inexorável, para as margens de uma janela em ruínas, até que cada fotão de glória passada se lance de novo na escuridão e no esquecimento, pressionado pela luz que agora foge prometendo voltar amanhã como amante disputado por outros afectos. Sorrindo amanhã, mas a outros, já não a nós que temos também de enterrar a esperança. Os que agora sentem estar no umbigo do mundo, controlado por gente velha para explorar gente nova, reinventam a mesma sopa de sempre, os trejeitos mudando pelas eras, as ideias, as roupas, para proteger esse bem, essa unicidade no tempo, essa celebração do zénite corporal, esse privilégio, na marcha imparável de se ver o Sol por momentos no cume de uma montanha aonde chegámos saídos de uma prisão, e que passa breve até iniciarmos a viagem de descida de uma vida abreviada. Nesse clube só são admitidos membros que partilham as mesmas características, como se o envelhecimento fosse uma lepra que apodrece os corpos, infectando o ambiente, de jovialidade e disponibilidade para celebrar. Por isso dizemos os bons dias aos mais jovens que conhecem o caminho ascendente, e que não sabem senão discriminar. As relações entre as pessoas pautam-se por uma sucessão de adiamentos e de ódios, ao mesmo tempo, de prolongamento dos prazeres. Quando chega a sombra do Sol que na penumbra auspiciosa se deita no canto do céu para desaparecer, é que ficamos apenas com a recordação dos dias luminosos passados entre prazeres tépidos de recordação de todos os desgostos provados, relativizados pela luminosidade do astro-rei. II Queria fazer-lhe uma surpresa. E garantir ao mesmo tempo, algum grau de certeza para mim acerca do sacramento que iniciáramos um mês antes num hotel de Cascais. Pelo último nome dela, indaguei na terra de onde me dissera ser a sua família. Algures nos arrabaldes lisboetas. Procurava o que fosse esboço de uma morada que ela não me dera e não valia a pena ligar a perguntar sob condenação de estragar a surpresa. Na rua principal, onde quer que perguntasse, toda a gente conhecia quem eu procurava, pelo nome de família, e ao seguir as indicações para o que me parecia ser o mais próximo de onde morava, perguntava-me a mim mesmo que tipo de sacrilégio estaria eu a cometer, misturando a minha classe social, com uma vários furos acima, só possível por via de frequência na mesma instituição universitária. Chegado à porta de uma extensa quinta, pálida ruína do que parecia ter sido em tempos mais recuados, puxo um pequeno sinete que era proporcional à distância de audibilidade de gente no espaço habitado. Ninguém respondeu. Fiquei sem bateria no Motorola, e desloquei-me alguns quilómetros até encontrar um café que me permitisse contactar por linha fixa. Lá se ia a surpresa. Ao discar os números, um misto de sentimentos, a certa estadia com ela, que não se rogaria a convidar-me, talvez quanto muito, desqualificando-me por este possível abuso de privacidade e distâncias. Por outro lado, o sentimento emanado de algo mais elevado em mim, de que esta perseguição do ‘amor’, quando tinha leituras para fazer na minha secretária, era afinal, uma degradação e o verdadeiro sacrilégio, só mascarado com as duas ideias que o cabrão do meu ego me leva sempre, que a vida é curta e temos de aproveitar, e de que o amor é razão mais que suficiente para valer por si mesmo. Sobrepondo-se a tudo. Tentamos, nós os conas, agradar sempre às mulheres, com algo que vai além de nós, aquilo que podemos fazer por elas. E se sabemos claramente que o fastio, o enfado, o aborrecimento, são escolhas que tomamos ou não, no caso das mulheres damos o litro para que não se aborreçam, não vá dar-se o caso de preferirem o outro a nós. Dei comigo a pensar se não era essa mesma, a razão de querer fazer uma surpresa. Pairava a dúvida de que o que me tinha levado ali era não o desejo de estar com outro ser humano, mas a artimanha de manipular a sua percepção, para provento meu. E nisso degradar-me. E degradando-me, errar o alvo. Emparedados entre duas lâminas, a nossa exigência ética e dignidade pessoal, e a neofilia feminina com uma pitada de competição sexual. E a incrível facilidade com que se aborrecem connosco, caso não sejam cumpridos os mínimos, ou caso pertençamos à maioria que se rala com o seu enfado. Na hierarquia masculina, cada homem é um caracol que se arrasta lentamente pelo gume de uma afiada navalha. Tentando manter o equilíbrio entre o enfado que possa provocar na mulher, para tentar garantir a cópula, a paz domiciliária, o cessar-fogo das agressões verbais, e no fundo, evitar o abandono. Tentando manter o equilíbrio entre o enfado que possa provocar e o seu sentimento de dignidade pessoal, que por sua vez oscila entre o valor que o indivíduo dá a si próprio, o conhecimento da natureza humana e o condicionamento social que lhe sussurra constantemente ao ouvido, que a mulher, a vagina, são o prémio. Coacção por contínua repetição, torna-se segunda natureza. Claro que já viste estes homens, nas viagens saloias de fim-de-semana, passeando as mulheres dentro de veículos, onde o que mais conta é a deferência para com elas, na escolha de um novo trajecto, que nunca seja a repetição dos anteriores. Deve o tipo ter um alargado conhecimento de cafés, praias, discotecas e hotéis rurais, para trazer o carácter da novidade à relação, mesmo que na relação baste à mulher aparecer, de preferência bonita. Liguei por fim, para ela, enganando-me à primeira num dígito do número que ela me deu, quando estivemos à conversa, sentados depois de uma aula, no Anfiteatro principal da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa. A voz que surge do outro lado indaga sobre a minha autoria, e ao aperceber-se que sou eu, demonstra-se alegre e receptiva, e não a conheço o suficiente para saber se é sincero ou cordialidade que traveste um sentimento de estranheza e imposição. Diz-me para regressar ao portão da quinta, ao que respondi que já lá tinha estado, tocado e ninguém me respondera. «-Não ouvi, agora estarei à tua espera.» Quer dizer, atenderam, uma cadela bem grande, cuspira-se toda para me tentar ferrar o pé por entre a folga inferior do portão, e só jogando com essa intenção dela, consegui através de coordenação motora, chegar ao sinete e puxar rapidamente antes que a cadela percebesse que a mão em cima estava dentro e acessível, do seu território. Ao entrar no espaço, disse-me que prendera a cadela noutra área da quinta. Conduz-me para o interior habitacional, e a meio do trajecto de me mostrar a casa, abraçamo-nos muito apertados um no outro, e beijamo-nos, só terminando no amparo que a cama dela oferece ao peso da gravidade dos nossos corpos, revelando-se o mundo de forma explícita, no reflexo do espelho onde nos vemos exprimir durante horas. Uma almofada sob a minha nuca, e ela por cima, permitem-me olhar o espelho defronte, em toda a glória hardcore de mim dentro dela, da sua vagina, ambos imersos na convicção de que é isto, é este o momento de redenção de toda a solidão passada, mosto dela escorrendo pela minha verga dorida de tanto congestionamento sanguíneo, mosto com cheiro a vinho novo que os mais ingénuos identificam sem dúvidas de ser a mais pura expressão de desejo genuíno. Apenas nos largávamos para mictar e comer o que eu fazia na cozinha, para comermos. Andava pela casa de outros em boxers e meias como gosto de fazer nas casas das minhas mulheres, mexendo o arroz ou a massa, e olhando em redor para tentar adivinhar a vida costumeira, que está ausente na minha presença. Tornámo-nos inseparáveis, e enquanto eu fui novidade, ela baldava-se às aulas comigo, para irmos para as praias radiculares em torno de Olisipo, almoçávamos e jantávamos com amigos e familiares de ambos, e alguns até me diziam «-Eu gostava que alguém gostasse de mim da maneira como ela parece gostar de ti.». Ao que eu nada respondendo, só podia lamentar cá dentro, «-Como é possível ser fiel a alguém, que sabemos indubitavelmente, está connosco a prazo, e gosta de nós condicionalmente?»
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