III
Quanto tempo demoraria a perceber que eu não era o prémio que aparentava ser, que o pardieiro a que chamo casa, o óxido de ferro a que chamo carro, revelassem afinal, a minha origem social, a minha incapacidade em gerar algo melhor para mim e para os meus. Como os olhos dela contrastaram inconscientemente, afinal eu era de um mundo um pouco menos farto. Mas prometia imenso, mas de que me adiantava passar por um ‘pequeno génio’ em algumas tiradas e presença de espírito, em algumas posturas filosóficas ou literárias, por algumas introspecções expressas em voz alta, quando a realidade material me retirava quase toda a credibilidade e dignidade, aos olhos, se bem que as bocas o negassem… A ditadura da realidade material, aquela que afinal apalpamos, fazia esboroar a charada. Eu começava também a suspeitar que tanta elaboração de discurso, soava afinal a um papel de regatear sexo e afeição, convencer a gaja, por via de palavras, cheirava a um orgulho deslocado, bem como a uma pressão de desempenho desigual a favor da mulher, reforçando-lhe o papel de prémio, e consequentemente, o meu papel de submissão. Amor transaccionado, significa que não valemos por quem somos, mas pelo que damos ou fazemos pelo outro. Ninguém engana ninguém, nós é que nos enganamos a nós próprios. Dissolvendo-se a charada gradualmente na familiaridade, começa então a descoberta que é oriunda da procura, da procura de motivos para justificar um abandono que é decidido à partida. Algo no seu âmago lhe diz que merece melhor, que se iludiu com uma sombra, com uma fantasia, que não corresponde À verdade, um logro. Perde o medo de perder, e começa a testar cada vez mais intensa e sistematicamente. O humor cada vez menos jovial e interessado, os pedidos para tarefas que encarnam os truques de animais amestrados. Ligava-me e dizia que estava enfadada, aborrecida, ou a braços com um trabalho e que talvez fosse necessária a minha avaliação. Isso era suficiente para eu pegar na pasta escolar, passe social e ir da zona oriental de Lisboa para a Linha, com o meu leitor de música e phones no ouvido, variando de música que exaltava o amor ou heavy metal agressivo, que é o que um eu superior a mim usa para me dizer que algo está mal. Perante estes sinais racionalizava, a fraca condição de cabeça dela, que isto as mulheres são sensíveis e incompreensíveis, temos de as tentar entender e proteger. No fundo, mascarava a dependência do sexo e de um corpo bonito para mostrar na rua, se alguém mo dissesse na altura, não acreditaria e desmentiria completamente. As perguntas com que me interpelava, os assuntos que partilhava comigo eram um pouco ímpios e infantis, perdera toda a consideração anterior, e eu sentia-me esgotado e sujo após as conversas, até que num dia de epifania, me surge a expressão ‘caixote do lixo emocional’, isso, era o que eu sentia para o que ela me usava. A ideia do amor fusional e escrito na eternidade das estrelas, começa a corroer-se, pois se o amor é uma dança a dois, não se pode dançar sozinho com um pau de esfregona que era como eu me sentia. O maior aliado delas, é sempre o meu cérebro, que conspira contra mim, na sua missão suprema que se sobrepõe a tudo, procriar. Mesmo que a arrepio da dignidade pessoal. Que interessa o amor próprio perante um útero que nos dá a concretização da imortalidade possível? Que se lixe como tu sentes, faz tudo para manteres o sexo e o útero, nem que tenhas de rastejar e lamber sapatos, ou pior, mendigar por sexo. Lembro-me de um dia em que ela na sua secretária, escrevendo, e não me ligando nenhuma durante horas, e eu feito estúpido para lá tinha ido por causa de um seu caprichoso pedido (não queria estar sozinha em mais um drama formulado na sua própria cabeça) me senti injustiçado e lhe coloquei a pila, tesa que nem um cabo de machado, em frente à cara. Que gajo nunca fez isto? Achando que as mulheres ficam excitadas como nós, exultantes por esta forma de revelar a exuberância da vida e a capacidade do portador. Elas também não entendem porque é que os homens gostam tanto de mostrar a pila. Os dias que passava com ela, ela tinha o seu comer, e eu pouco ou nenhum. Ela não se ralava com a alimentação, e a mãe dela, achava no íntimo, que não ia estar a sustentar nenhum marmanjão, sem amor próprio que tão facilmente inundava com a sua presença, a casa dela. Ambas começavam a ver-me como móvel da sala, daqueles que não se manda fora, porque ainda sustém um vaso velho no canto da marquise. Não era que a sua mãe fosse uma má pessoa, não era nem é. Pura e simplesmente, algo dentro dela lhe dizia que não ia fazer nada por um homem, nem que fosse o da filha, não ia cozinhar, especialmente para um tipo sem graça, e não prémio, como eu. Mas esperava ser entretida, passeada e ter este ou aquele jantar pago, pelos homens com quem se envolvia. Vivia alegre, entre a fruição da sua música, os serões entre amigos sofisticados, e um ou outro engate, ou pico emocional que a vida burguesa urbana nas raias lisboetas ainda permitia. Valia-me o queijo e as tabletes de chocolate que ia comprar ao supermercado antes de chegar a casa delas. Passei alguma fome, e explicava a mim mesmo, ‘-É por amor…’ Quando vinha à minha, nem que tivesse de a levar a comer fora, ou fizesse a comida, eu e a minha mãe não falhávamos com refeição certa. Poder-se-ia pensar que faria tudo para garantir a proprietária do útero do filho. Mas não, ou talvez só um risível pouco. Gostava das miúdas que eu levava para casa, menos da Susana. Dessa nunca gostou, apesar de a achar muito bonita. Cenas das mulheres. Via-me trazer para cas as vítimas como gato doméstico que parece querer ensinar o dono a caçar. Eu pensava trazer pintassilgos e ser um grande gatão, mas durante a passagem das horas, as pequenas aves, por algum truque de alquimia, transformava-se em ratazanas agressivas, e ausentes. Uma vez fiz uma birra com ela, interpretava a sua secura de ofertas como sovinice, não tinha a capacidade de ver que ela já não gostava de mim, tinha pena, pois via que eu gostava dela. Conspiravam ego e idealismo, contra mim. O ego dizia-me que sou tão extraordinário, que a razão do comportamento dela não pode ser a falta de amor. O idealismo indicava o caminho no qual a razão do amor é ele, próprio e valendo por si, e que sendo raro, que sendo uma conjunção irrepetível no espaço-tempo, é forçoso que se aguente e lute por ele. A rarefacção do afecto físico levou-me a procurar carinho e sexo noutras paragens. Não a larguei porque não me lembro de ter arranjado alguém fisicamente mais aprazível nessa altura. A Lúcia era melhor na cama e desejava-me, mas algo nela soava a falso. Expunha um sobredesejo como elas gostam de exprimir um sobreamor, mais para nos convencer que gostam de nós, que propriamente por gostarem efectivamente de nós. Após noites de cauboiada, o cacilheiro deixava-me no Cais do Sodré, vendo Lúcia ir para o trabalho e eu com uns remorsos de todo o tamanho. Que é o que acontece até hoje quando traio alguém. Numa dessas noites, logo ao início com Lúcia, eu ainda achava que foder era inserir a carne hirta o maior número de vezes possível, na vulva receptora de forma a provocar mecanicamente um orgasmo e assim garantir o afecto e respeito que se haviam perdido, pelo motivo menos óbvio para um idealista, o motivo material. Eu culpava a minha personalidade ou atavismo, ou falta de roupas caras e sofisticação, mas depois observava a forma como ela e a irmã falavam do namorado desta última, que não sabendo citar de cor Rimbaud, tinha muito mais posses do que eu, era alguém do nível social ‘delas’. De modo que o sexo raro, era gasto nesse objectivo, dar-lhe um orgasmo que a sua psicologia impedia. A repetição rítmica prosseguia até ficar completamente seca e eu continuava pois ao longo dos meses justificara a sua desidratação vulvar, com problemas fisiológicos. O resultado era um pénis inflamado e com pús corrosivo, que me incomodava e fazia mictar a qualquer hora, andando constantemente a lavar o marsápio nas casas de banho da faculdade e dos cafés finos lisboetas onde ia ter com amigos e colegas. Numa dessas noites com Lúcia, coitada, que nunca levei a sério, a dor aliada à comichão não me deixavam revelar toda a expressão do meu desejo horizontal. A gaita pedia por uma limpeza maior que água e sabão. Inventei uma desculpa para o facto e ocorreu-me a feliz ideia de despejar álcool etílico, que jazia ali próximo. Lúcia olhou-me com uma cara de estranheza, mas não queria naquela fase, desafiar-me a assertividade que se esforçara por incentivar, de forma a que me sentisse bem por ser homem, com ela. Condicionando-me, por sua vez, a associar bons sentimentos à sua presença, tal como eu queria associar bons orgasmos ao meu outro amor, para que ficasse comigo voltando ao que éramos no início. «-Passa aí o frasco.» A dor lancinante foi tal que só podia competir com o esforço que fiz para manter a compostura, o meu inconsciente já me sussurrando no ouvido que não podemos dar parte de fracos, senão era mais um pito útero a afundar a depressão da nossa rejeição. «-Estás bem?» Recorri a festas e beijos para desviar a atenção, esticando o rabo para trás e para a frente para poder lidar com a dor. Tirei a gaita para fora e pedi para que soprasse nela, e ela achando que eu estava a gozar, começa a sorver, aumentando a agonia, pois o calor do céu da boca e da língua só vinha acentuar o contraste da sensação de ardor, que a frescura etílica a secar mitigara. Como fazer agora para evitar magoar os sentimentos dela? Deixa-a chupar, acontece que a dor me fez murchar como criança triste deixada à sombra, ela assumiu que era por causa dela, por causa do aparelho que tinha nos dentes. A minha próxima missão seria dar-lhe um fodão, para restabelecer o seu amor próprio, a ver se não me esquecia de manhã. Mas não, eu estava com a pila naquele estado e com a alma prestes a estilhaçar-se por um desgosto amoroso que se aproximava. Lúcia também se começou a afastar, como forma de preservar o seu amor próprio, pois se uma mãe de namorada não cozinha ou nos paga o jantar, uma potencial candidata não se esforça demais para garantir um gajo aparentemente igual aos duzentos que lhe entopem o telemóvel com propostas. Ò amigo, não queres há quem queira. Solicitada por engravatados, não era eu com calças à boca de sino, barriga de cerveja e cabelo à tropa, citando Heidegger, que a ia impressionar. Estava ainda preso numa relação de codependência, onde lea nitidamente esperava que Deus lhe lançasse alguém melhor ao caminho. A tal birra que fiz com ela, por achar que entre quem se ama não existe lugar para ser-se forreta, (e tenho razão, mas ela já não me amando…), e queria forçar, tal como o orgasmo, uma prenda da parte dela. Andava de olhos num cd do Billy Idol, havia-lho mencionado ao de leve e esperava que ela mo oferecesse, como acontecia quando ela me exprimia o desejo de algo. O meu amor afigurava-se contratual e com base num sistema de trocas, o que só me aviltava mais a mim próprio, para comigo mesmo. Mas também sabia, que no fundo, só queria o retorno a um estado anterior de encantamento, incapaz de lidar com as coisas como elas são, esperando que fossem como deviam ser. Nem era pela merda do cd, que o compraria facilmente. Era apenas pela destruição que eu tentava adiar, da esperança de um amor redentor.
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