V De prodígio anterior, eu passara a ser o empecilho, aquela bolha de acne que sabemos que não devemos rebentar, mas está mesmo no meio da cara. A vida dela prosseguira e só mesmo por caridade ainda fazia eu parte dela. Chamada por festas deslumbrantes, sob vestidos sedosos com brilhantes, e sorrisos radiantes de concretização social, tinha cada vez menos paciência para a minha existência, quando muito para lhe escolher um telemóvel novo e tratar da inserção do cartão, matar uma centopeia em casa, dar-lhe ideias para bibliografia. Tudo na arrumação estrita da utilidade. Eu próprio olhava para o par romântico de dois anos antes e nem me reconhecia, quanto mais a Queda. O estado de choque era duradouro, pois, quando pensava na forma de tratamento dela, tentava perceber que raio em mim, sugeria tal asco, tal reacção gutural ao quer que fosse que fosse a minha pessoa. Eu? A minha imagem? O que existe dentro de mim que mereça tal desdém e pena. A espiral regressiva lavava-me o cérebro, e ela, presa entre um sentimento de dever e um imperativo biológico que lhe fazia sentir nojo em relação a mim, acumulava pressão como panela de cozedura com carrapito, rebentando em pequenos episódios de puro despeito. Eu não conseguia escrever, estava emocionalmente e psicologicamente desfeito. E numa consulta de medicina de trabalho, foi-me dito que tinha uma arritmia. Perguntei:«-Só doutora? Nem sabia que ainda sobrava qualquer coisa…» Saindo do consultório na Avenida do Brasil, ao apanhar o autocarro para casa, ela liga-me. Um assunto de treta apenas para ventilar com o seu caixote do lixo emocional, ainda considerado para o efeito, porque a sua baixa auto-estima não estava habituada a ter alguém de ouvido sempre pronto para ela. A minha reacção de revolta perante tal fez despoletar uma discussão, na qual senti claramente o meu coração bater descompassado, eu que fazia desporto desde miúdo, que podia com sacos de 50 quilogramas nas obras, e que pegava sozinho em máquinas de afagar, vergado por um rabo de saias. Ia-me convencendo disto através de repetição mântrica, para me preparar para o óbvio, estava tudo terminado de facto, apenas ainda não oficializado. A capacidade de introspecção é algo d lixado. Consegues perceber os teus cordelinhos, mas também consegues perceber como a outra pessoa realmente é, tendo tu, os óculos do amor desligados. Não é muito difícil, depois de passado o feitiço, pois como reza o chavão, sabes quanto gostam ou gostaram de ti, pela forma como te tratam quando nenhum interesse em ti já têm. V Além de depósito de toda a desordm emocional que gerava, eu servia o para ela invisível propósito de convencer-se de que era boa pessoa. Sabia que já não gostava de mim, o motivo era constantemente rebuscado nas justificações formuladas. A verdade é que tinha razão. Eu jogava por um conjunto diferente de regras, ia para a frente de batalha no Somme, com fisgas quando do outro estavam a Schwerer Gustav de 800 milímetros. Todas as mensagens em relação ao sexo oposto, iam no sentido errado, erradicando-me da pool genética, pela consequência das minhas acções. A rejeição do amor Disney, idealizado e até romanesco, espreitava pela esquina, mas ainda assim eu queria amar a mulher. Em curto circuito, o cérebro desfazia-se entre a incapacidade de conceder falhas de espírito a um corpo perfeitinho e rosto simétrico. Ou em perceber que trata-la como delicado milagre, como achava que se devia fazer às mulheres, começando pela minha mãe, era o indicado, e apreciado. As minhas amigas também me haviam dado indicações do que queriam num homem, e vá se lá entender, não funcionava, não era bem assim, não podia estar tanta gente enganada, portanto só podia ser uma falha da minha natureza. A desconsideração dela era tal, que eu próprio já principiara a desgostar dela. Não foi com surpresa, que o fim, me trouxe liberdade. Vim depois a saber que se envolvera com um treinador de fitness, sem barriga de cerveja, ou seja, andou à procura da qualidade genética. Apesar de bonita e bem feita, tinha um feitio desadequado para o mercado da carne, pelo que andou aos caídos, servindo de receptáculo de esperma a uns quantos que não se queriam comprometer com ela, certos claro, de que arranjariam melhor. Perto da idade dos trinta, lá conseguiu desviar um marido de uma colega, com quem assinou um contracto de utilização de útero, por troca de rendimento mensal estável. Vive feliz até agora e o despeito continua, tendo-me em tão pouca consideração que não vê mal nenhum, em ocasionalmente, me lançar uma ou outra tarefa de desarticulação argumentativa, de fulano ou sicrano que lhe expuseram a ignorância que não deixa de tentar mascarar. VI As minhas crenças são escolhas minhas, sempre foram, não posso culpar ninguém. Mugi as letras do amor, para descobrir que as tetas estavam secas, e é risível, porque é só mais uma parte do embuste. Dourei cada paixão com o brilho da minha imaginação, apenas para fugir do demónio que pasta dentro de mim. Fora de mim o vazio infinito das subjectividades dos outros. O amor no qual eu depositara a minha fé de redenção eterna para nós os dois, esboroara-se na minha crença de inadequação esculpida por meu cinzel. As forças em acção nelas são também inacessíveis, e mesmo que lhes pudessem tocar com uma mão, não o fariam. Mas o pior, sabes, o pior nem é o abandono. O pior é aquela postura de asco, e a contradição plena de sistemas de crenças. Para ti, a quem determinada nunca será indiferente, cabe-te um mau bocado. A maioria reduz a paixão a uma mera troca de fluidos com algum conteúdo emocional. O inadequado fica para trás, sem alguma saber que o seu crime foi existir. E apaixonar-se por gente morta. VII Hemingway dizia que bebia, para tornar as pessoas mais interessantes. Eu forço-me a apaixonar. ////// As ruas de Lisboa ornadas de alfarrabistas Percorridas por nós de mãos dadas Recolectando livros para as nossas futuras estantes Os dias quentes e gordos Regados pela saliva dos beijos Que não mais irão ver A nacionalidade de nós os dois Espalhada Pelas bandeiras cardiais.
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