As mãos enrugadas e no escuro das luzes vermelhas, viravam cartas entre ossos, que veterinariamente não consegui identificar. A senhora vidente, inalando pequenas doses de enxofre, sem me olhar e sem me ter dito uma única palavra desde que entrei na tenda marginal na feira medieval de Aljezur, mostra a palma da mão olhando para a direcção do solo com olhos fechados.
«-João, tu já reencarnaste 11 vezes. Estás na tua última, estás ainda aqui só para fazer o balanço das tuas vidas passadas. Depois desta mudas de plano. Não é preciso entrares em desespero, o pior já passou, mas este último desafio também não é fácil. A sua dificuldade está na sua estranheza.» «-Que plano?» retorqui eu. «-Não interessa. Não te mates, isso é o mais importante.» Pensei para mim, matar? Nem me passou pela cabeça, se bem que há uns poucos anos atrás, me via sem saída de uma má situação que felizmente se veio a resolver sem eu nada fazer. Não acredito em ocultismos, valeu pela experiência. Já a caminho da A2 achei o ralenti do carro demasiado acelerado, parei na berma da estrada, acendi um pequeno holofote led sob o possante motor de dois mil centímetros cúbicos, e rodando o parafuso que regula o ralentim do carro em sintonia com a válvula termoestática, reduzi a aceleração até soar bem ao meu ouvido. Quando me preparava para baixar o capot, o carro desliga-se em simultâneo com um relâmpago sem trovão, e sem nuvens no céu. Não percebi o que se passara, o céu estava rosa e o Sol já só mostrava o rabo mergulhando a Ocidente. Vi perifericamente um vulto encostado à porta do condutor do carro, e baixei o capot por isso. Devia ter uns 230 centímetros de altura, coberto andrajosamente da cabeça aos pés por um grosso capote de lã cinzenta cinza de crematório. Não tinha rosto, apenas um abismo negro no lugar da cara. Atrás do carro, uns 2 metros, uma mesa de piquenique e dois bancos corridos, que não me lembro ver ali…piquenique? Na beira da estrada? A voz afiada diz «-João, estou aqui para falar contigo.» «-Quem és tu?» perguntei eu. «-Sou o teu anjo da morte. Senta-te 10 minutos ali na mesa comigo, desapareço já.» «-Meu anjo da quê?» A figura desfocada não me permitia ver a direito e a minha própria vontade entrara em piloto automático como se eu não fosse dela dono. O meu medo levou a melhor sobre mim e corro para me sentar dentro do carro, rodando a chave e nada. Digo em voz alta «-Merda para o motor de arranque. Deve ser escovas.» Olho para trás pela película preta comprada no chinês, que cobre os vidros do Toyota comercial de dois lugares, e vejo o vulto imóvel na mesa, esperando por mim. Algo de racional me fazia ter vergonha do meu medo e associar de alguma maneira a avaria mecânica ao cara de abismo que me falara antes. Saio porta fora e sento-me defronte do tipo. Ou tipa. Não conseguia identificar. Assim que me sento começa a falar. «-João cometeste sacrilégio em relação à tua vida.» «-Já sei, desperdicei tempo com gente que não merecia.» «-Não. Desesperaste. Ter desespero em relação à própria vida é a maior aceitação de falhanço e ao mesmo tempo a maior dignificação do tempo que te foi dado aqui.» Falava a minha língua. Calei-me e escutei. «-Só cá vim avisar-te porque foste a uma vidente. Não gosto que recorras a privados para serviços espirituais estatais, deves seguir as vias oficiais.» O anjo da morte tinha sentido de humor. «-Não tens motivo nenhum para desesperar da tua vida. És um sortudo e privilegiado pela mesma, és é demasiado orgulhoso para o poderes ver. O orgulho tolda-te o espírito que se fecha cada vez mais sobre si.» «-Ó anjo da morte, da minha morte, é fácil para ti falares que nunca encarnaste. De fora, de carne espiritual é fácil falar. Olho o predador matando a presa, cuja única ofensa ao mundo foi existir, e choro. Não por lágrimas físicas, mas desejando que não fosse o mundo assim, mas é. Vejo as patas, as penas ou barbatanas no último estertor e penso que não posso ser deste mundo. Não queria que um morresse comido nem outro à fome. Tenho nojo, asco, à morte. Qualquer indivíduo que desapareça, é para mim uma tragédia, que contrasta paradoxalmente, este mundo é uma merda e não consigo deixar almas que estão prestes a deixá-lo. Dou por mim a tentar salvar ratazanas, pássaros que se perdem do ninho, cachorros mal afogados à nascença jogados no caixote do lixo por um filho da puta qualquer. Dou por mim a desabar em choro compulsivo quando não consigo salvar nenhuma vida. Tento salvar pombos moribundos que encontro à beira da estrada, até caracóis que saem com a chuva apanho do chão e mando para a erva alta para ninguém os pisar. Não é por ser bonzinho, que não o sou nem quero ser, é porque uma voz dentro de mim me diz que sou responsável pela vida do meu próximo.» «-E tens razão, a Morte não é deste mundo.» Dizendo isto aponta-me o indicador com aquelas falanges descarnadas e diz «-Além do mais, a tua cruz é essa, demasiada clareza de pensamento para o teu bem.» «-Clareza de pensamento? Deixa-me rir pá. Se o meu pensamento fosse claro eu saberia as razões por detrás das acções dos outros. Porque aquela colega no Facebook me ignora as mensagens, porque não bloqueou logo? Para proteger o telemóvel da vista do namorado? Mas se eu nunca lhe sugeri nada…Afinal serão as mulheres que só pensam em sexo e que qualquer gajo que fale com elas apenas as quer comer? Que merda de ética é essa, em que se reifica um para protecção de outro? Que discurso prodigioso contam a si mesmas para justificar a falha moral que cometem? Que capacidade é essa de conviverem com a hipocrisia de não querer que outrem seja cortado do seu mundo virtual, apenas lhe cortando o direito a qualquer palavra, como se achassem que isso não é fácil de descobrir? Posso continuar ad aeternum. E daquela que continua o seu périplo de borboleta, lixiviando cada atitude de merda, à noite como Penélope tecendo fios, no final da manhã está sempre ilibada. Usa-me a mim e a outros para se vingar do namorado e para preencher ego seco e tardes desocupadas e monótonas. Desculpa-se para dentro repetindo que também a uso e portanto ambas reificações anulam-se e assim está tudo bem. Por isso a projecção de vício no outro, a qualquer custo, é condição sine qua non para a sobrevivência do próprio ego. Ou seja, o indivíduo safa a sua pele, imolando a do outro. A consequência das minhas acções anulam-se se a narrativa que tenho das acções alheias as fizer iguais ou piores que as minhas. E aí temos um dâimone, uma violação continuada de outros, dos seus sentimentos e das suas espontaneidades, por uma ausência de carácter acentuada com o declínio da captação de validação masculina. Ou a outra que sempre que lia as minhas dedicatórias nos livros que lhe oferecia louvando a sua personalidade, me fazia a mesma cara que a mãe da Paula, como que se olhando para um enfermo mental acometido de loucura momentânea, como se soubesse que nada era daquilo que o apaixonado vê. Ou as outras que cospem para o ar que os homens são manipuladores ou só pensam em sexo, mas eu escrevi poemas a todas, e nenhuma me escreveu a mim. Nenhuma me ofereceu rosas. Nenhuma foi honesta e frontal. Não sou chauvinista man, apenas observador. Raça do caraças, tentando condicionar, influenciar e anular, para testar a firmeza da personalidade do outro. A mulher é por natureza, o verdadeiro bully. Se perante força de resistência, diz que somos brutos insensíveis, se permeáveis a cada capricho, frouxos que detestam. Se somos correctos, directos, desprezam-nos porque não sabemos jogar o jogo. Ás amigas queixam-se de que os homens não sabem o que querem, quando os que as levaram com falas mansas e bolos, as comeram e largaram. Claro, para proteger o ego, ai de alguma que pouse a cabeça na almofada e pense ‘Epá, fiz merda.’. O erro, a falha são vistas por elas como ataques a si próprias, como que se o aprendiz fosse responsável por ainda não saber fazer melhor. De onde não tiram benefício algum, largam como o diabo foge da cruz, nem que seja preciso esperar pela ocasião certa, ou seja, só larga a liana de trás quando garantir preensão na liana dianteira. Diz-me, meu anjo, porque hei-de eu esperar códigos morais de quem não os tem? Ou a outra, deixa-me contar-te esta, que procurava nitidamente um macho de acordo com o seu percebido estatuto social. Que havia estudado 12 anos para ser cirurgiã como se 12 anos fosse algo de homérico. Eu disse-lhe que estudava há 23, e ela cuspiu de soslaio, aparentemente só o campo dela confere dignidade. Isso e viaturas novas com IUC alto. Anjo, só respeitam a força. Apenas.Somente. Não a física. Dominarem mentalmente um gajo hipertrofiado é só mais um troféu que mostram às amigas para estabelecerem as suas hierarquias de grupo de ‘amigas’. Os homens medem pilinhas, elas medem as filas de mendicantes do seu afecto, a quem nunca dão respostas cabais ou deixam de enviar mensagens contraditórias. Por natureza os mendicantes caem que nem tordos nisto. «-Ao que dizes João, só um problema de perspectiva.» «-Como assim?» «-Foste cá metido para fazeres a observação e resumo do que consiste ser-se humano. Enquanto te focares na dor que sentes, e no negativo, escapa-te o âmbito da lição a aprender. Livra-te de tanto orgulho. Não leves tão a peito este tipo de postura. Dá-te por feliz por não seres afinal tu, o pobre diabo que não sabe o que é estar vivo. Há quem ache que viver é um objecto brilhante em ninho de corvo.» «-Eu sei que tens razão, mas algo em mim fervilha por causa disto.» «-Claro, mata a fantasia e tudo ficará mais claro.» «-Como assim?» «-Já passaram os dez minutos.» Dei à chave e o carro pegou limpinho limpinho. No pino do Inverno, o ar quente entrava pela sofagem, e a janela aberta mostrava-me à frente as belas paisagens do Inferno, com as escadas para o Céu, um pouco além delas.
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