I Uma mão adulta toca-me no ombro de forma áspera. O Professor Ricardino repreende-me por ter derrubado a Nélia, no jogo de futebol. Eu ia a correr, e no campo da escola primária, uma das raparigas que tinha forçado o direito de jogar de forma igual com os rapazes, atravessa-se na minha frente enquanto eu me desmarcava para um potencial passe do detentor da bola. Não a vi, arranquei, choquei e caí. Sem sangue levantei-me e continuei a correr, como quando acontecia quando chocava com rapazes. A diferença estava no facto de ela ter começado a chorar de forma muito sonora e desesperada. A uma rapariga, não fica mal o desamparo. Rapidamente se formou um grupo de amparo em torno da promessa de ninfeta. Algo no som de tristeza que emitia, me fazia querer proteger e confortar aquela criatura, que regra geral me ignorava e que me brindava com sorrisos amarelos e falsos, quando comigo tinha de lidar. Tinha o joelho esfolado, e quando lhe coloquei a mão no ombro para pedir desculpa por algo que eu não planeara, chorou mais alto como forma de castigo irado para comigo. Os professores pediram que me afastasse, que a deixasse, que já tinha feito o suficiente. Os outros colegas rapazes, não todos, faziam cara de reprovação e um ou outro censurou-me de forma audível, para que a queixosa pudesse ouvir a sua promessa de aliança. Pensei porque estaria a ser censurado por algo que ocorre regularmente nos jogos de rapazes, e quando eu caio e obtenho 20 fracturas expostas de cada vez, ninguém me coloca a mão no ombro, ou uma alma vem caridosa proteger-me, senão talvez um Sorriso de Deus, que me diz que estou a ir bem. Sozinho, mas bem. Ninguém gostava de jogar com raparigas. Estragam os jogos todos, metendo regras novas do que vale e do que não vale, e compensando a falta de coordenação motora com discussões infindáveis sobre essas regras. E nessas discussões nunca perdendo o ar de velhas senadoras infantis, conhecendo o pináculo de maturidade no recreio escolar. Eu e outros, invariavelmente calamo-nos, em curto-circuito entre a lógica do jogo, da brincadeira, da acção, e a confusão instilada por elas, que querem participar, nas suas condições. Gostamos de brincar com elas, o toque aveludado da pele, os melhores cheiros de transpiração, os rostos redondos e simétricos que aplacam a virilidade e nos hipnotizam com mais força que uma guerra de calhaus contra outra tribo que detestamos. Uma palmada do docente no rabo, dá-me vontade de chorar também. Não o faço, não sou nenhum menino da mamã. Se o fizesse, amanhã, teria de andar à porrada com tipos abaixo na minha hierarquia e com tipos mais agressivos que ainda vivem na dúvida sobre a minha proficiência em pugilato. Mas porque raio me bateu? Para mostrar a ela que a agressão não é admissível. Mas que agressão? Sou maior, mais forte, mais agressivo e não a vi. Lembrei-me que na aula o professor ensinou que a uma mulher não se bate nem com uma flôr. E eu respondi armado em engraçado, que se dá logo com o vaso. Os rapazes riram-se desta piada batida, as raparigas não. Ofendidas na sua dignidade, viam na chacota, uma ameaça à sua condição. O jogo reatou. Numa jogada em que passo a bola, a Nélia de forma calculada, falha a intercepção da bola, pontapeando-me em cheio no peito, deixando-me sem conseguir respirar por momentos. Ajoelho-me no chão e lembro de me virem lágrimas aos olhos, não de dôr mas de perda de fôlego. A custo lá entrou uma inspiração nos pulmões maltratados, que me permitiu ver que o jogo continuara sem interrupção, ouvi uns comentários de não sei o quê tinha sido a paga. Outro entrou para o meu lugar, o que me deixou irritado. Mais ou menos restabelecido, observava o jogo, feio, desorganizado, manco, onde elas corriam corriam atrás da bola até esta sair por uma das linhas, perante a impotência de a conseguirem controlar. Um sai a coxear, entro eu. Nélia, finge que não me vê, tudo casual. Por sorte a bola vem para o meu lado. Nélia também. Protejo a bola, sinto-a agarrar-me a roupa e arranhar de propósito ou só raiva, com as unhas. Dou-lhe com o ombro. Cai desamparada. Pára o jogo. Sou chamado de tudo, até uns bananas vêm dar-me murros, encostar a cabeça, algumas miúdas dão-me pontapés, e quase todas em algazarra, me puxam os cabelos. Arranjei-a bonita, pensava eu. Em choque com os chimpanzés depilados em torno de mim, fui aguentando até à chegada dos professores. II No secundário, ter namorada era ter estatuto social. Poder mostrar a toda a gente que se é amável, isto é, que algo reside em nós que é apreciado por outros. Não basta a natureza trabalhar a harmonia das hormonas, que ainda é um signo de posição social no rancho de primatas. Para mim, namorada era para dar chochos e linguados e lamber as maminhas. Quando dava por isso, tinha uma igreja erigida em honra da mulher. III A Jan é uma norte-americana, loirinha e de olho azul como eu gosto, que literalmente me deu atenção numa rede social. Ligava-me, perguntava-me coisas sobre mim, e reagia mais quando eu não lhe ligava nenhuma, que quando a tentava convencer a um encontro. Saiu do Idaho aos 20 anos, atrás de um namorado australiano, e aos 27 anos ele larga-a, ficando ela até aos 32 a servir em mesas de restaurante. Para justificar a perda daqueles anos que não voltam, dizia que ele era sociopata. Aos 32 decide que sempre gostou de cavalos e vem para Portugal, aprender a lidar com o cavalo lusitano. Diz que só teve cinco namorados, com um orgulho de probidade. Jantámos, trocámos uns beijos, mas assim que pressentiu afeição da minha parte, baixou a estima que em mim projectava, e tornou-se mais difícil. Na boa, continuei na minha, desta vez reduzindo a atenção que lhe dava. Liga-me a perguntar se queria ver o «The witcher». Código para encontros mais íntimos. Passei quatro horas com parte de mim erecta, já convencido de que ia para casa sem passar à próxima fase de envolvimento. Elas gostam de testar o auto controlo. O meu é total, não gosto de facturar personagens que não me desejem, por isso, é para onde durmo melhor. Vinda da casa-de-banho pergunta «-Is now that we have sex?» Ó amiga. Após 4 horas, e após beijos limitados por piercings na língua que não me deixam exprimir a minha arte de beijar, estava um bocado enfadado. O preservativo havia sido tirado de uma roda de motorizada, e a única coisa que eu sentia era o molhado em torno das minhas gónadas. De facto, a sua húmida caverna, não era nem muito grande nem alargada. O que podia confirmar alguma probidade, sempre dúbia. Jan não gosta de foder. Gosta de se vir. A meio vapor, tenho de acelerar pedindo ajuda ao atrito para me acordar em baixo. Desgostosa, dizendo que you guys like like that, troca de posição, esmagando-se em mim em movimentos concêntricos do baixo-ventre, onde pela respiração percebi que ia claramente atrás do orgasmo. Pensei, bem, deixa lá, pode ser que depois queira mais, acorde alguma coisa e tenhamos rambóia a noite toda. Veio-se, beijei-a, afaguei-a, e ela rapidamente me olhou a ver se eu me despachava também. Não gosto muito dessas merdas. Não permito que me usem como dildo autolocomovido. Ainda me tento excitar olhando para ela, mas o orgasmo vem como obrigação e só depois dela colocar lubrificante, que tinha guardado estrategicamente, numa gaveta, o que afundou a desconfiança de que se eram só cinco os namorados, os engates, deviam ser uma procissão de pilas. A forma desapegada e prática como atirou o preservativo para o lixo, pingando-lhe a feia carpete, e como se deitou na cama olhando para mim, por cima de uma espécie de cobertor que não faz mal sujar (não sou digno dos lençóis onde dormirá) solicitando com os olhos que me fosse embora, renitente em magoar sentimentos, como se eu percebesse a peça representada. Ó amiga. Percebi onde estava toda aquela ordenação de fronteiras. O pai havia largado a família antes dela nascer. Ressentia-se com todos os homens em geral, se fossem pacatos. Era uma viúva alfa. É pena. Tem bom cabedal para aguentar comigo, mas não o desejo necessário para tal. IV Não fico onde não sou a religião de alguém. Como se tenho de ter através dos olhos de outros, a validação que não me consigo dar a mim mesmo. Sentindo-a escapar pelos dedos, por causa dos mesmos demónios de sempre, ligo-lhe às duas da manhã e pergunto se me vê como um hookup. Diz que não, e que me quer ver em breve. Queria acreditar mas não acredito. Algo em mim faz questão de anular a coisa toda. Faço-lhe uma birra de ciúmes, intolerável a um engate de net, que nem merece os lençóis, ou o favor de ler os seus textos. Desliga e com razão o telefone, e não me volta a falar. Queria dizer que foi um dos meus planeados testes à personalidade de com quem me envolvo. Mas não. Foi alguém em mim. Como num plácido lago repleto de náufragos, todos lutam para se manter à superfície, boiando. Eu, sem bóia ou tronco, tenho de dar às pernas e agarro-me a quem não me afasta com um croque. Agarro-me como náufrago para não me afundar, esquecendo-me que sei nadar por mim. Agarro-me e levo os dois para o fundo, o que faz com que cada uma ao minímo sinal de que há preensão, me afaste e se desloque para outro a quem se agarrar, por sua vez. Como electrões dentro do átomo correspondendo aos neutrões do núcleo. Bate-me. Como numa cena de «O dragão vermelho», os espelhos nos olhos das bonecas, são como preciso de me validar a mim mesmo. Preciso de me sentir o deus de alguém, para esconder o facto de que sei nadar. Valeu-me a Flávia. Falámos durante horas, após a minha crise de ciúmes, que não era crise de ciúmes, mas hábito de náufrago. E ela soube dizer-me por onde era o caminho. Uma semana depois, a Sónia ligou-me, após ler o meu texto, onde se vendo mencionada, alegou que eu tinha finalmente chegado ao que ela dizia. E eu respondi, não Sónia, mesmo que o tenhas pensado, não o soubeste articular. E não o pensaste. Apenas aproveitas o mea culpa que faço, para me dar um encontrão de vingança, no nosso recreio. Porque me sentiste a colocar espelhos nos teus olhos. Desliga-me o telefone na cara. Outra. De novo. Na pior zona da rebentação, levo porrada a entrar e a sair. Derrubado, engolindo areia. Mas o mundo é um lugar de abundância. Deus manda-me assim estas lembranças, do género, tás a ver, queimas neurónios mas eu é que sei. Deus é grande.
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Junho 2024
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