I «É preciso ter sofrido o suplicio de uma cena análoga para compreender tudo o que essa esconde de dores, para adivinhar os longos e terríveis dramas que provoca.» Balzac, A mulher de trinta anos Ela estava na dúvida em relação à capacidade que tinha para se dar, para acreditar, para ser arrebatada, para olhar com esperança o futuro. Atrás de si a lista de ilusões e desilusões amorosas, simplesmente não lhe permitiam alijar a ansiedade de saber que qualquer amor que surgisse, ou seria algo de extraordinário (de acordo com a checklist pueril), ou seria uma situação de recurso relembrada todos os dias em que olhasse para o prémio de consolação. Olhava-se longamente ao espelho, nua, como um soldado analisa a espingarda, com a diferença que o seu olhar carrega melancolia e as mãos esticam continuamente mechas de cabelo em movimentos precipitados em direcção ao peito por entre as pinças dos seus dedos. Não conseguia não olhar para o seu reflexo, e perceber que não conseguia competir com a imagem que lembrava de si mesma há 20 anos. Entretanto, o mundo e a vida não parando, inundam o mercado da carne com competição mais firme, tonificada, e capaz de entrega. Um sentimento de injustiça e condenação pareciam esgrimir-se na sua mente. Injustiça, passou tão rápido. Condenação porque os que estão dispostos a contentar-se com ela, são os prémios de consolação que não lograram consolar ninguém. O que foram consecutivamente descartados por critérios demasiado lunares. Compensando a sua monotonia neuronal, apenas apreciada no mundo do trabalho, com a sua prostituição invertida, na forma de atrair a parceira não com a sua pessoa, mas com os meios que acumularam tipo formiga laboriosa, em virtude da expressão da sua mundividência: a relação entre os sexos é contratual. Nisto pensava, bem como na suspeita de que os homens têm um profundo desejo, e fraqueza, de serem amados pelo que são. E que passam a vida inteira a comprar vulva a partir do que dão. E que é este o motivo pelo qual alguns criam ressentimento e despeito para com as mulheres como um todo. Doía-lhe ainda o abandono do seu colega de trabalho 10 anos mais novo, as suas promessas de envelhecerem juntos e de mãos dadas, haviam feito que ela começasse a mencionar o nome dele aos pais, primeiro como colega, depois como amigo. No seu sonhar acordada, visualizava o seu triunfo na vida, mostrando aos demais que a sua personalidade e o seu aspecto físico haviam sido reconfirmados em alto valor, pela obtenção de um prémio na figura de um homem mais novo, mais elegante, mais bem vestido. Combinavam encontros por via da localização do whatsapp, partiam no carro dele para sua casa, de onde ele a tinha convencido a aninhar e a descartar o seu anterior amante, com fotografias de lareiras acesas e aconchegantes, de copos de vinho prometedores, de camas vazias à espera de conteúdo. O que começara por uma mensagem de grupo de whatsapp supostamente transviada, tornara-se no paliativo para a monotonia que ela sentia em relação à vida prévia, e ao adereço em forma de homem, que largara. Saiu uma ou outra vez com as amigas dela, mas ele mesmo sabia que ela era apenas um passo no seu caminho, e as promessas que lhe fazia, são permitidas, quer nos manuais da guerra, quer nos manuais do amor. Não lhe quebraria o amor próprio. Provaria a taça de mel, as vezes que quisesse, mas não celebraria qualquer sacramento, afinal era ele o prémio, mais jovem, mais composto, mais bonito, sem maquilhagem. Ela ainda suscitava uma ou outra erecção, mas existem mulheres para comer, e mulheres para desposar. E esta perdera o baile. No acmé, ele sentia que tinha de desfrutar este ponto alto na sua vida, apenas passando pela vida de outra, que já iniciara o longo caminho do ocaso. Mas em breve se fartou, a falta de firmeza na carne dos braços, as crateras de celulite nas pernas, os papos nos olhos e debaixo do queixo quando ela se levantava de manhã, o feitio dócil e sem notoriedade, em breve o lembraram que a missão estava cumprida, e que tinha aproveitado o seu momento, bem como a vantagem de poder dizer lá no trabalho que comera a gaja nova. Havia que procurar conforto na codependência do seu grupo de amigas, que a incentivaram a tomar acção e a mudar de vida como diz o povo. Grupo de amigas também, todas elas em diferentes graus, que davam conselhos sobre assunto que não tinham aprendido. Sim, que isto de levar um homem para a cama não é difícil, mantê-lo lá ao longo dos anos é que é desafiante. Mas quanto mais os amantes sucessivos se desviam do viço dos primeiros, menos esforço genuíno estão elas prontas a fazer. Insistem que têm de ser apreciadas por quem são, quando são incapazes de amar os outros pelo que eles são. A não ser com fabrico próprio de muita falsa moeda. Sentem que não têm de despender aquele esforço extra para agradar ao pretendente não óptimo. Ao pretendente que nos seus olhos não reflecte o valor que julgam, querem, ter, aos olhos dos outros. «-Estou farta de homens que não sabem o que querem.» ia dizendo, para retirar o foco de qualquer responsabilidade nas suas acções, como se o mundo apenas lhe devesse coisas boas. O vexame de ter ouvido vezes sem conta, historietas morais sobre a ideia de que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, tornaram-na ainda mais introvertida do que já era, guardando as suas palavras e reacções, o mais possível, por uma profunda vergonha de ser quem era. Doía, mas não podia chorar sobre o leite derramado ou engolido. Havia que retornar ao ginásio, descobrir nova roupa e cosméticos que maximizassem o que ainda tinha de valor, para captar a atenção do melhor homem que ainda conseguisse. Sabendo no seu íntimo que uma bóia de náufrago, não é o navio que se afunda, mas ainda assim, permite manter à tona. Tentou fazer introspecção, e a melhor conclusão a que chegou foi que não sabia usufruir plenamente da sua sexualidade, que havia que de alguma forma se libertar de amarras que senti em si. Inscreveu-se em seminários de gurus feministas que lhe ensinavam que tudo o que de mal achava ter, era responsabilidade dos homens, da sociedade, das moscas, da vespa velutina. Pagava para ouvir que não tinha responsabilidade nas consequências das suas escolhas. Lembrou um ex que lhe oferecia livros, e lhe tentou ensinar a fazer introspecção. Não percebeu porque se lembrou dele, mas lembrou, com algum asco à mistura, pois quando um homem tenta explicar algo, da sua boca só parecem sair frases de convencimento para que ela não se liberte dele. Por mais boa vontade e estima que ele tenha tido por ela, que se tenha preocupado, o silogismo é simples e retorna sempre ao mercado da carne e à relação entre deve e haver. As contas de merceeiro que todos fazemos, manipulados pelas nossas colónias de genes que se querem propagar. O reflexo mandava de volta o olhar triste e melancólico da certeza de que o próximo, a existir, iria exigir uma dose maior de fingimento e omissão. Os tempos do idealismo emocional ficaram para trás, o mundo agora é mata-mata, e o homem um parceiro a saber manter, sob pena de se perder a única e última oportunidade que valha a pena. Ou ele tem de ter tão pouca autoestima que o faça participar voluntariamente na farsa a dois, ou, ter uma tal bonomia de carácter, que apenas se rale com a diminuta lista de amantes passados, e a simplicidade dos seus modos. E no entanto, comprará sempre um presente envenenado. II «O casamento tal como se pratica hoje, parece-me ser uma prostituição legal .» Balzac, A mulher de trinta anos Feliz ou infelizmente, o que não faltam são homens em busca de um útero a quem chamar seu. Ou quando o útero passou do prazo, uma vulva intermitente, gerida a pinças, de modo a manter a ilusão de equilíbrio nas relações. Diz a sabedoria popular, que a verdadeira medida de carácter é a forma como tratamos os outros quando não precisamos deles. E que em abundância, poucos são aqueles que conseguem ser justos ou decentes. Há qualquer coisa de análogo entre o pato-bravo que gasta dinheiro em flamingos cor-de-rosa e a mulher que tem mais de um pretendente. Especialmente se um dos pretendentes gostar mesmo dela, sente-se confortável na escolha, e nunca descalça, perante amanhãs cinzentos. O delicioso string along que opera, mantendo o peixe preso pelo beiço, de forma a que nunca solte o anzol, garante sempre uma dose de autoestima a pedido, quando necessita de se sentir bem consigo mesma. Sem éticas profundas, sem complicações desnecessárias de uma vida que se torna simples a partir de mantras simplórios. Sabe perfeitamente que tem de criar a ilusão do carácter especial do seu encontro, o gajo, o verdadeiro romântico em quase todas as relações, tem de acreditar que não existe contrato na sua relação. «-Lembras-te da primeira vez que me deste a mão? Senti um choque eléctrico na glândula pineal e borboletas na barriga.» Enfeitiçara um polícia, profissão com algum prestígio e que ganha acima do ordenado mínimo. Não cita Shakespeare, mas sabe como funciona a lei nos casos práticos da vida. Tem, por isso, mais utilidade numa existência que não passa de materialista. Para quê complicar as coisas? Saber fazer introspecção não me traz pão à boca, nem é bom assunto para falar à mesa, nos happenings sociais. Dedica agora todo o esforço para se prender e moldar ao homem que é a última oportunidade de mostrar ao mundo as consequências das suas escolhas. Escolhe roupa em catálogos online, e passa a dedicar ainda mais tempo à magia da maquilhagem. À noite quando lhe abraça os ombros, para não se mover muito na cama da obrigação copulatória, diverte-se a sentir os movimentos de ascensão que o colchão providencia, e quando começa a ficar seca, pensa em amantes passados que ainda lhe povoam os sonhos. III « Não amamos nossos iguais.» Balzac, A mulher de trinta anos Culpa tudo, todos e o mundo à sua volta, incapaz de olhar para si. Sabe que não pode olhar, pois não só assume a responsabilidade das suas escolhas, como não quer perceber o grau de agência que não tem. Culpa este ou aquele namorado por usarem roupa desadequada, quando ela usa a roupa que pouca individualidade confere. Queixa-se dos artifícios dos homens, apesar de estar coberta de tinta, cremes, e lantejoulas que parecem criar uma divinização ou teatralidade da sua imagem. Queixa-se dos namorados que não queriam trabalhar ou não tinham aspirações, apesar de as suas qualificações não a fazerem mais que empregada fabril com vitaminas, deslocada, e sem encargos fixos que uma vida em comum, acarreta. Pais e tios podem ajudar, e assim a vida é satisfatória, e permite avaliar as vidas alheias, de uma posição de superioridade, mesmo que infundada. As pessoas valorizam diferentes coisas, e é assim que deve ser. Mas não evitamos deixar as nossas larachas e opiniões, mesmo em assuntos que conhecemos pouco. Por exemplo, o porquê das nossas avaliações, e a nossa incapacidade de autoanálise com olhos objectivos. Fugimos todos da verdade e apontamos em acusação, todos aqueles que tentam expor o jogo. Confundimos não falar com aqueles que amámos, com resolução do que ficou para trás, talvez com medo de que nos deitem na cara, que no fundo não somos boas pessoas, mas que mesmo os imbecis precisam de amor. Eu por mim, detestaria deixar essas palavras no mundo, por mais que me apeteça. Para quê afundar mais os cadáveres adiados, que se julgam acima de mim? Não, o mundo está bem assim. Cada um faz a sua cama e refastela-se nela. E é assim que deve ser. A imagem no espelho que lhe devolve o olhar, torna-se cada vez mais uma figura desconhecida, entre a diferença do que era lembrado e uma realidade que se recusa. A incapacidade de avaliar as suas escolhas, não é defeito. É protecção. Do mesmo modo que um assassino dorme consciente apenas porque lhe disseram que nada de mal fez por matar quando era soldado. IV « Uma mulher que há muito tempo perdeu a esperança no futuro ou em si mesma ; uma mulher desocupada que confunde o vazio com o nada .» Balzac, A mulher de trinta anos Inunda-me o telefone com mensagens sobre o quão especial foi um encontro que tivemos. Mesmo que no dia a seguir, o namorado tenha estalado os dedos e ela tenha voltado a correr para Peniche, como cachorro bem treinado. Pressionava-me a dar respostas, que eu estava farto de não dar. Queria ganhar, não a pessoa, que isso vem com o tempo, mas a garantia que eu não puxaria o tapete. Eu disse-lhe «-Tu não me queres a mim, tu queres é um namorado.» Teimosos estes gajos que insistem em ser amados pelo que são, e não pelo que dão. Tal como as feministas gordas querem ser amadas pela banha e pelos charros que fumam. Cada indivíduo quer confirmada por outro, a magnificência que a si próprio não consegue dar. Ela preparara-se bem. Antes sozinha que com um homem que considere inferior a mim. E disse-mo, certa vez no carro, que se calhar ia acabar como a Noémia, uma prima mais velha, que também ficara solteirona, mas tinha uma casa ou ninho, decorado com muitos objectos acumulados ao longo dos anos. Que isto de ter homem não é troféu, e que podemos ser felizes apenas apreciando a vida familiar sem apêndices emocionais externos. Uma espécie de grito de Ipiranga, ou tudo ou a morte. Ou o rei, ou nada, como palavras saídas da boca de uma plebeia. Tanta pragmaticidade e geração após geração, ficam pelo caminho todos os que não se adaptam. Rejeitados por cadáveres adiados. Medrosos. Atávicos. De partir o coração. V «Existem pensamentos a que obedecemos sem conhece-los : estão em nós sem que saibamos.» Balzac, A mulher de trinta anos Repetem à náusea que os homens são comandados pela cabeça de baixo. Enquanto calculam o deve e o haver das suas vidas, sem qualquer arremesso de paixão. Que são guiadas pelo coração, pelas emoções, pelos sentimentos. Mas são implacáveis quando os seus interesses estão em jogo, com amnésia rápida nas ofensas cometidas, na inversa proporção da lembrança das ofensas que sofrem. Não se pode culpar uma marioneta, convencida que é mulher, quando é apenas uma mão invisível que a controla enfiada nos entrefolhos. Devemos portanto ver para lá da maquilhagem, e ter pena dos seres que só aparentemente levam vantagem na ‘vida’. VI «- Senhora, é preciso saber esquecer suas dores ou cavar um túmulo - disse.» Balzac, A mulher de trinta anos Até porque se soubessem a merda que fazem, se dela tivessem consciência, não conseguiriam viver consigo mesmas. Como não conseguem. Ela ainda me disse «olá» a partir do túmulo, e convidou-me a entrar, vamos morrer juntos. Mas amor, morta já tu estás. E eu não me esqueço de como procedeste comigo, apesar de me veres sorrir para ti. Mas João tens de perceber que eu só queria segurança. Sim, amor, eu sei. Eu conheço essa história tão repetida como a do bebé que flutua no Jordão e se torna rei quando adulto. Mas tu só te lembraste da minha existência após terem ocorrido todas as pragas. Diz a sabedoria popular que a verdadeira medida de carácter é a forma como te tratam quando já nenhum interesse têm em ti. Não podemos levar a mal, não terem carácter.
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