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Ide

19/5/2020

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I

Insónia.
Sempre dormi bem, que nem pedra de calcária feita de textos de Torga.

A meio da noite onde outras almas se preparam para segundos sonos e descanso semi eterno, levanto o rabo da cama e deixa-me lá ir para a secretária brincar com palavras.
Publico-as depois.

Cansado por demais mas sem sono para voltar a fechar os olhos, vou juntando letras vigilante para não cair nos mesmos temas amargos de sempre.
Não consigo não não falar deles, nem de me sentir menor por meter o dedo na ferida.

O trabalho de anos encaixotado na dialéctica da tragédia e da música, de Nietzsche.
Nunca tive as ferramentas necessárias para pensar assim, tão mais próximo de Schopenhauer e da cruel piada que ele descreve.

Mas outros campos se abriram, desde logo o de perceber que coisa esta somos nós, num mundo em que o que somos é ilusão, especialmente de que somos.
Como fica a minha responsabilidade para um deus, se apenas sou a ilusão de ser algo diferente de ti, sob pena de não poder subsistir de outra maneira?

Como consigo perceber o grau de 'especial' que recordo sentir quando era miúdo e brincava sozinho pelos cantos da casa, de que era um inventor do futuro, perdido em mundos espaciais.
Inventando canhões de plasma e laser, robots gigantes operados por humanos tal como via nas séries de ficção científica que davam na televisão.

Que significado particular por detrás desta ilusão, e que deus pode ser tão cruel que brinque com ela, só para se rebolar de riso lá nos Olimpos onde assiste à comédia.

Mariquices.
Cogitando, olhando o aparo de uma caneta que deixa lentamente tinta cair sob a minha mão, escorrendo por entre os dedos aquele negro especial de 10 euros o frasco, limpo aos calções velhos, e levanto-me para ir fazer um café. Coloco o grão no moínho e ao primeiro toque no interruptor, um cheiro a café fresco, como se fosse uma bandeira de esperança, irrompe pela casa, convidando-me, ainda antes de o beber, a ser produtivo e a forçar a matéria ao som da minha vontade.

Organizando rectas, semi rectas e semi círculos em sinfonias de significado, feitas para que eu me perceba e não necessariamente para que alguém me aprecie.
E penso, porquê esta necessidade de me entender, eu que me trato a mim como propriedade, como um negreiro trataria seu escravo a vender por preço baixo.

Para quê entender-me, se continuo a tratar-me abaixo do que acho que mereceria. A lembrança de ocorrer por vezes um ataque de choro, ou um avassalador sentimento de falhanço, mas porquê? Se sou precisamente quem sempre quis ser e consegui todos os objectivos a que seriamente me dediquei?

Não faças planos para a vida que estragas os planos que a vida tem para ti, dizia o grande Agostinho da Silva.

Escaldo a chávena, vejo o creme do café creme encher até ao rebordo.

Queimo ligeiramente a língua ao primeiro gole e me lembro que tomara muito ser vivo humano ser assolado por estas mariquices, que não me deixam esquecer da absoluta contingência do estar por cá, e que talvez isso faça parte da tal piada de mau gosto a que chamas vida.

Mas olha, só perdemos o jogo se nos queixamos dele.
Até lá, goza com esta merda.

Se a complacência do homem fosse natural para com a vida, podia sobreviver mas nunca passaria de pouco mais que res extensa.

Toca o som de cuco que tenho no Whatsapp.
Quem me está a enviar mensagens às 4 da manhã?

II

«-Posso ir ter contigo?»
Era a Adélia.
Respondo «-Fazer?»

«-Quero dormir contigo.»

«-Ás 4 da manhã?» pergunto eu, não percebendo as aproximações e afastamentos das cachopas.
«-Saí agora de um bar com amigas que foram para casa, estou perto daí.»

«-Adélia, vai dormir que estás a precisar.»

Sento-me à secretária, já com o café frio por ter estado a teclar com ela.
Onde ia eu, ah já me lembro, o angst existencial.
Como me poderia alguma vez esquecer, não falo de outra coisa.

Coloco o aparo ao papel e ameaço umas linhas sobre a inevitabilidade de isto ser um jogo porque nunca repetimos a mesma forma de ver.

Ligam-me.
Porra.

Era Adélia.
Epa Adélia, é tarde, deves estar bebeda e a cheirar a tabaco.
Quero ver-te e estar contigo, e não demoro nada estou já aí.
Espera, estás a conduzir com os copos? Pára já o carro.
Não tolo, estou num Uber, 10 minutos e estou aí.

Olha que...
Porra.

Toca-me à porta como se fosse alguém de algum concurso televisivo a atribuir um prémio.
Ainda nem entrou completamente pela porta e já me agarrou nos países baixos e morde-me o lábio superior numa encenação de desejo que viu em alguma ópera bufa dos anos 90.

Estatela-se contra um computador que tenho desmontado no hall de entrada e que já devia ter ido colocar a reciclar.
Partiu o salto demasiado alto e a placa gráfica que por sorte não lhe cortou pele ou tendão.

Para disfarçar, começa a repetir que me quer demais, e que tem passado a semana toda a pensar em mim depois do café que tomámos.

Que o que eu dissera lhe custara ouvir mas que eu tinha toda a razão.

E eu sei lá argumentar com uma bêbeda.
Vou-te fazer um café, e vais beber àgua.
Não! Vim aqui para te comer como se fosses um pastel de nata na boca de um diabético.

Achei tanta graça à expressão, que saiu tão pura e genuína que me passou o mau humor.
Lembrei-me que o truqui truqui me viera bater à porta e que isso sempre me deixa bem disposto, como viciado em endorfina que sou.
Já que não sei definir a verdadeira felicidade, que vá gozando a química.

Tu não estás católica.Devias descansar aí um pouco e depois chamo-te um táxi para ires para casa.
Ou vou-te lá meter, se bem que precise de dormir primeiro. Ao pensar alto ela seleccionou as palavras alterando a sua táctica.
Sim, tens de dormir, vem, vamos dormir um bocado depois levas-me a casa.
Pousei o saco de café e fechei-o para o gato não o mandar ao chão, que depois a cadela faz o resto, trabalham em equipa.

Assim que me deito, mete-se em cima de mim e esfrega-se no meu corpo como os ébrios costumam fazer, de forma bruta atabalhoada e descoordenada.
Acho mais graça imaginando a minha figura filmada fora de mim, que pela situação.

O que me parece ter guiado toda a existÊncia, é relativizado perante todos os pensamentos introspectivos que sou capaz a esta hora.
Parece-me que para ter alguma intimidade com ela, vou ter que passar o teste da cópula.

Tento excitar-me olhando o corpo dela, para lá da ilusão.
As pernas tonificadas e os pés bem feitos, as mamas do tamanho certo e uma carinha de querubim barroco, facilmente a minha língua lhe penetra pela boca dentro como caravela a estrear, e o mosto quente desliga-me de imediato a consciência, Deus toma conta a partir daí. Sei que não tenho forma de ficar saciado e que aquelas conversas pelo meio, são apenas para que o tempo passe mais rápido até à próxima.

«-Adélia, nunca sentes vontade de render o teu ego e alijar o peso?»
Ofegante e com os olhos entreabertos, abre a boca e não fala. Consigo cheirar as caipirinhas que lhe assassinaram a sobriedade.

«-Do género, deixar de vomitar aquelas résteas últimas que temos nos confins de nós, de amargor, de irritação do estômago que só se quer libertar do veneno?»
«-Estás a falar de quê?»

Pois, nem eu sei.
Nem eu sei que quero exprimir, mas que algo...
Mariquices.

Agora sou eu que não quero pensar no mensageiro que sempre aparece a lembrar-me que algo está fora do carril.
Fujo para o meus escapismo preferido.
Começo a beijar-lhe a cara, de certa fora invejando os seus olhos que ainda conseguem ver tudo de uma forma fresca.
Fingindo ignorar que os beijos são um voltar à carga, vira-me o rabo e diz que quando acordar bebe então o café.

Algo na sua cabeça a alerta para a obtusidade do que disse, vira-se para mim, força um sorriso, dá-me um beijo vazio de conteúdo para que eu saiba que gosta de mim, e não a leve a mal ou fique ofendido.

Rio-me mais um pouco.
Espero que adormeça e saio de casa sem fazer barulho.

O ar fresco da manhã sabe tão bem como o aroma quente de café novo, e meto-me a caminho de Belém.
Paro o carro perto da Embaixada do Japão.
Saio e vou para o lado do estuário, em direcção à linha.

Pelos pescadores lúdicos e outras testemunhas do mesmo tempo que partilhamos, de frente para o Sol, que não se farta de cair há eras sobre nós.
Em lugar vago, sento-me olhando a baixa ondulação das àguas pelas quais um dia o Rosto de Deus vogou.

Não é prisão ao passado que me faz sorrir, mas uma promessa de futuro. E que as coisas não são como queremos.

Às vezes a benção vem em forma de vulva que nos enxota para longe.
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