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Ilusória sucessão de cilícios

20/5/2022

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A manhã estava fresca e oferecia um purgatório de alívio antes das brasas infernais tornarem difícil a respiração.
Acordei cedo, como faço quando estou apaixonado, isto é, quando inebriado pelos meus ancestrais neurotransmissores vocacionados para a transmissão genética.

Tinha ‘ganho’ uma data de discussões de Facebook na noite anterior, deitando-me apenas às 3 da manhã.
O vento nas minhas velas vinha de saber que ia ter com ela de manhã para a acompanhar na cama até perto da hora do marido voltar.
Ruiva como só o sangue, rira-se para mim no Aldi, e mesmo sabendo que era casada, não resisti a esvaziar as bolsas pendentes, mordendo para mim um dos meus princípios de não cobiçar a mulher do outro.
Mas o desejo relativizava o perigo de um barrote pelos cornos ou a dor moral de encornar outro.
Sabia bem melhor acordar suado na cama de um casal que não eu, e perder-me nos gemidos dela, mais por prazer de se vingar do marido, que pelo dano vaginal que eu lhe provocava.
Sou acordado antes do tempo, lá pelas 9 da manhã, com uma sms que me efervesceu o sangue, completamente imbuído da convicção de fornicar em breve.

Ao ler, as minhas bolsas tocaram na testa de alguém na Nova Zelândia.
«-Hoje não vai dar, as coisas ficam por aqui, não me contactes mais.»
Que puta de frieza. Como é possível fazer-me objecto de tal forma que pareço nem existir na piada que é o mundo?
Todo o meu âmago se sentiu rejeitado, pior, cuspido e relativizado por quem anteriormente me convencera do contrário.
Para uma mulher é fácil declarar-se violada anos após o acontecimento. A quem me queixaria eu, por a minha individualidade ter sido comida e cuspida sem apelo ou agravo?
Algo em mim deu de si.

A sucessão de tratamentos abusivos, sem consideração, forçou-me ao pecado último da interpretação de factos desconexos como parte de uma narrativa integrada.
Ela era apenas mais uma na sucessão de cabras. E havia de pagar por isso, macacos me mordessem.
Eu conhecia a rotina dela, saía na estação da Póvoa, do trabalho até tarde nos escritórios da metrópole.
Não foi difícil pedir emprestada uma carrinha branca e engodá-la com uma conversa de encómios que a seduziram até às portas traseiras de uma Ford Transit sem visão para o interior.
Depois foi só aplicar um murro circular que fez com que o seu cérebro embatesse na moldura craniana e provocasse a não consciência. Com que a libertei deste mundo, com um torniquete à moda da Inquisição antiga. A sua urina espalhou-se pela furgoneta previamente plastificada para o efeito.

​
Mijamo-nos ou borramo-nos quando saímos deste mundo.
Percebi que a urina não tendo por onde sair, de igual forma acolheria o sangue do desmembramento que eu planeara.
Enterrei-a às 3 da manhã, para honrar a nossa primeira confissão de amor, sob uma milenar oliveira da Póvoa de Santa Iria, com vista ampla sob o estuário.
Como palavras de homenagem, disse-lhe que apesar de longe das filhas, teria uma boa paisagem para aplacar a tristeza que o mundo lhe trazia por não compreender.
Umas semanas mais tarde vi uma reportagem na televisão sobre um fenómeno religioso, uma oliveira à beira do Tejo, que tinha azeitonas vermelhas, cujo azeite sabia a lágrimas.
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