A manhã estava fresca e oferecia um purgatório de alívio antes das brasas infernais tornarem difícil a respiração.
Acordei cedo, como faço quando estou apaixonado, isto é, quando inebriado pelos meus ancestrais neurotransmissores vocacionados para a transmissão genética. Tinha ‘ganho’ uma data de discussões de Facebook na noite anterior, deitando-me apenas às 3 da manhã. O vento nas minhas velas vinha de saber que ia ter com ela de manhã para a acompanhar na cama até perto da hora do marido voltar. Ruiva como só o sangue, rira-se para mim no Aldi, e mesmo sabendo que era casada, não resisti a esvaziar as bolsas pendentes, mordendo para mim um dos meus princípios de não cobiçar a mulher do outro. Mas o desejo relativizava o perigo de um barrote pelos cornos ou a dor moral de encornar outro. Sabia bem melhor acordar suado na cama de um casal que não eu, e perder-me nos gemidos dela, mais por prazer de se vingar do marido, que pelo dano vaginal que eu lhe provocava. Sou acordado antes do tempo, lá pelas 9 da manhã, com uma sms que me efervesceu o sangue, completamente imbuído da convicção de fornicar em breve. Ao ler, as minhas bolsas tocaram na testa de alguém na Nova Zelândia. «-Hoje não vai dar, as coisas ficam por aqui, não me contactes mais.» Que puta de frieza. Como é possível fazer-me objecto de tal forma que pareço nem existir na piada que é o mundo? Todo o meu âmago se sentiu rejeitado, pior, cuspido e relativizado por quem anteriormente me convencera do contrário. Para uma mulher é fácil declarar-se violada anos após o acontecimento. A quem me queixaria eu, por a minha individualidade ter sido comida e cuspida sem apelo ou agravo? Algo em mim deu de si. A sucessão de tratamentos abusivos, sem consideração, forçou-me ao pecado último da interpretação de factos desconexos como parte de uma narrativa integrada. Ela era apenas mais uma na sucessão de cabras. E havia de pagar por isso, macacos me mordessem. Eu conhecia a rotina dela, saía na estação da Póvoa, do trabalho até tarde nos escritórios da metrópole. Não foi difícil pedir emprestada uma carrinha branca e engodá-la com uma conversa de encómios que a seduziram até às portas traseiras de uma Ford Transit sem visão para o interior. Depois foi só aplicar um murro circular que fez com que o seu cérebro embatesse na moldura craniana e provocasse a não consciência. Com que a libertei deste mundo, com um torniquete à moda da Inquisição antiga. A sua urina espalhou-se pela furgoneta previamente plastificada para o efeito. Mijamo-nos ou borramo-nos quando saímos deste mundo. Percebi que a urina não tendo por onde sair, de igual forma acolheria o sangue do desmembramento que eu planeara. Enterrei-a às 3 da manhã, para honrar a nossa primeira confissão de amor, sob uma milenar oliveira da Póvoa de Santa Iria, com vista ampla sob o estuário. Como palavras de homenagem, disse-lhe que apesar de longe das filhas, teria uma boa paisagem para aplacar a tristeza que o mundo lhe trazia por não compreender. Umas semanas mais tarde vi uma reportagem na televisão sobre um fenómeno religioso, uma oliveira à beira do Tejo, que tinha azeitonas vermelhas, cujo azeite sabia a lágrimas.
0 Comments
Leave a Reply. |
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|