Passámos a ficar mais tempo juntos, em sua casa, raramente saindo senão para compras e corridas em direcção à saúde pelos parques urbanos da zona. Evitávamos a beira do mar naquela zona, para não deixar a relação que se iniciava, cair em cliché. Sem paciência para desempenhar papéis rebuscados de gestão do espanto inicial, que todos os amantes gerem nas primeiras fases de enamoramento, confesso-me já agastado pelo mais que expectável percurso deste novo envolvimento, é tudo igual, resta-me portanto, apenas observar. Observar, analisar. E calar-me, pois a racionalidade expressa oralmente, é o maior desidratante vulvar conhecido pela Humanidade. O orador de discursos racionais não práticos sobre a realidade, para sobreviver psicologicamente, tem de aprender a calar a sua voz, a viver entre os escombros sem alguma vez olhar para cima para o Sol. Nem sempre me controlo, pois o nervoso constante que me acompanha, cá dentro no âmago, me faz falar mais que feirante orgiástico. Canso-me do esforço para me manter calado, sinto-me não ser eu. De volta e meia, quando a ideia ou indignação levam a melhor sobre mim, lá saem meia dúzia de frases desabafadas, que contra minha vontade recebem em resposta um olhar surpreso, daqueles que damos aos borracholas que tentam fingir não estarem ébrios quando espetam com a mini no chão sem querer. Convidava-me constantemente para pernoitar em sua casa. Os jantares começam sempre após uma sessão de abraços e beijos e posteriores fingimentos que não se está assim tão feliz por ter ali o outro e estar próxima mais uma noite de sexo. Nem sempre ia, que tenho uma data de merdas para fazer todos os dias, especialmente agora que não se pode sair de casa nem para mergulhar, nem para pesquisar, nem para ir para arquivos chafurdar no passado. Observava em mim próprio, os sinais que exprimem o não me sentir em casa no meio das pernas dela. Ao início é para esquecer, a força da paixão, leia-se endorfina, é tal que cega o monstro interno. Mas da mesma forma em que gradualmente ela me vai comparando com as suas estátuas do passado, também eu me vou apercebendo do lado humano daquela que me encandeia por agora. Do extinguir do seu olhar de admiração por mim, de fascínio, não porque eu vá encarquilhando como folha seca, mas porque o jogo das comparações corre desenfreado em seu espírito. Lembra aquele com quem fez amor no topo da montanha do Pico, na viagem da C+S aos Açores. O rapaz mais popular da turma, com roupa de marca e postura despretensiosa com a vida, cujo maior factor de distinção para os demais, não lhe era inerente, mas relativo ao apreço que uma pequena multidão de ninfetas por ele exprimia. Como restaurante anónimo, que ganha fama apenas pela persistência em manter portas abertas, a observação de desejo de outras apenas suscitava o desejo nela, entregando-se de forma mistificada ao prémio que a desfloraria numa noite de Verão a 2000 metros mais próxima do céu. Ou aquele que com ela se lançou numa viagem de mota pela costa ocidental da África do Sul, e que ela contou aos pais ser no Mediterrâneo, para eles não ficarem preocupados. O firmamento estrelado, a fuga de uns leões que vieram à costa ver o mar, ou a pitão que ela viu enrolada em torno de uma gazela. Nestes altos de emoção, a vida passa pela garganta como brandy suave, certo o indivíduo de estar a capturar recordações para a velhice e para justificar uma existência, um sentimento de aproveitamento da existência através da manufactura de impulsos eléctricos gravados no carbono encefálico. Ou aquele que por via do seu carisma, a fazia chorar quando se zangavam e ele ameaçava retirar o seu amor. Já tendo passado os 25 anos, ela começava a aninhar-se na ideia de que seria aquele que lhe faria um filho, uma casa e uma história convencional de amor. Abandonada por este, chegou a temer pela sua capacidade de amar, até que as amigas a convenceram de que ainda havia tempo, estava prestes a conhecer um homem que lhe provocaria esses altos emocionais que o justificariam como prémio, e dessa forma provando de novo que ela era especial, e a prova está no conjunto de coisas especiais que lograra. Captação de valor através de símbolos externos a nós. Porque os nossos demónios não nos deixam viver saciados apenas connosco. É preciso o apreço do outro, que outra alma prove a nós mesmos, que somos dignos de existir e de sermos amados. Que somos mais que a nossa aparência, que nas gajas boas está tão ligada ao que são, que não conseguem conceber a ideia de que pouco tempo têm para continuar a suscitar desejo. Convencida de que o Verão nunca acaba, pousa delicada como borboleta nas mais variadas aventuras sem preocupação que não procurar validação e novas memórias que rememorar. Pensamos na mortalidade e decrepitude, mas não conseguimos conceber que venha a calhar a nós. Damos palmadinhas nas nossas costas com orgulho porque não instrumentalizamos o outro, terminando a nossa relação com ele, apenas para o trocar por um terceiro que nos venha a facultar a validação que ele já não consegue. Sentados no sofá, a luz das duas da tarde deste Inverno, espalha-se pelos cortinados brancos e reflecte-se ondulatória nas paredes, e provoca-me uma nostalgia filha da puta. Olho para o espaço entre a parede e a janela, e pequenos grãos de pó flutuam em suspenso, e é como se visse o tempo, o tempo como um eterno e adiado gemido pelas galerias fora, tenho de sair daqui, de me concentrar no momento e felicitar-me neste tempo, fazer como elas, capturar memórias para me enganar no infinito do espaço. Puxo-lhe as calças do pijama para baixo, ficam presas pela posição das pernas dobradas, tenho de a comer, apenas o sexo me distrai destes pregos temporais, não lhe tiro as calças completamente, mas o fio dental preto fica à minha mercê. O algodão e a viscose agarram-lhe a anca como os anéis de uma constrictora em torno da carne, a superfície da pele está quente, e sabe a dormência quando a lambo e sopro de seguida, para lhe provocar um arrepio que a acorde. Na televisão continua a passar o ‘Altered Carbon’ que a convenci a ver. Com ela adormecida acabei por me aborrecer revendo o que já sabia. Um movimento de pernas que se juntam mais a mi, faz saber que algo no seu sonho lhe diz que a chamam na realidade cá fora. Gradualmente vai-se lembrando que estou ali e que ainda não é tempo de rejeitar os meus avanços. Um leve gemido de conforto em relação ao sono acompanha o movimento de rotação dela para mim, que aproveito como caçador ardiloso, para bloquear as pernas na posição que quero, e agora mordo-lhe a parte interna da coxa, que a acorda de vez, apenas para largar um gemido maior e abrir mais as pernas ao sentir o calor molhado que promete viagem para outras paragens. O sabor agridoce amostalhado que jorra sem parar, dança com urros sonoros que a fazem agarrar ao sofá e encarquilhar como folha seca ao Sol de Outono. A respiração ofegante lembra-me uma praia com o contínuo restolhar das ondas, e após um estertor que parece uma suspensão do tempo, ela tenta-me puxar para si, para me beijar. Permaneço no mesmo sítio e tapo-me quero ficar às escuras à porta do portal. Encarar o inimigo de frente e perguntar-lhe que tem ele contra mim. Prefiro olhar de frente para o futuro que se insinua por debaixo das frestas das portas, de mim curvado sob a monotonia da rotina, e descaracterizado pela familiaridade. Ela inerte no leito à espera que eu termine, enquanto sonha estar no cume de uma montanha. Vivo em sobressalto por ela me fazer ciúmes com outros e desdenhar-me de forma tão ostensiva que o ar se torna irrespirável, enquanto me consumo em pensamentos que me recriminam sem quartel. Faço-lhe uma festa na pele das pernas, sob carne firme, e em direcção ao seu rosto, me atiro, como vaga vinda de longe só querendo na rocha morrer.
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