A Sara convidou-me para um jantar do seu conjunto de amigos.
Costumam-se reunir todos os meses, boa parte do grupo são mulheres que foram colegas de faculdade, e um homem apenas, que cursando com ela, com boa parte de emasculação, deixaram entrar no grupo de irmãs. Tudo o resto são os apêndices. Seja os troféus que exibem entre elas, seja as muletas que usam para calar o sopro mudo do espírito. Sara conhece-me há um mês, e não lhe faltando perseguidores, indago-me se o motivo do convite é para que eu sirva de troféu visível, ou para me tentar impressionar mostrando que tem vida social. Se calhar nem uma coisa nem a outra, ou ambas. Em parte consigo acreditar na genuinidade do seu desejo e respeito por mim. A dilatação das pupilas e o ritmo cardíaco quando lhe agarro os pulsos impedindo-a de me abraçar, não mentem, e há de facto excitação genuína quando me vê. Mas dificilmente alguma me convence que a sua natureza hipergâmica é subordinada a uma racionalidade ética que tenha o outro em consideração, mais do que o solipcismo possa permitir, e este é se calhar o maior drama não assumido de todos os gajos, o de saber se a gaja com quem estão, gosta deles pelo que são, ou pelo que disponibilizam. Repara que não digo ‘fazem’. Eu, por exemplo, não faço ponta de um corno, apenas observo, testo e escrevo. E não me faltam Saras. Digo ‘disponibilizam’, pois é mais do que a função. Ser médico é das poucas profissões que dispensa este tipo de pormenor semântico. Médico é médico, à função corresponde por inerência, um brilho que se toma de empréstimo. O totem, o gajo, tem de fazer algo de prestígio, e igualmente bem remunerado. Se com menor prestígio, como ser dono de uma cadeia de lojas de ferragens, tem de exibir riqueza por via de bens de prestígio, e alguma sofisticação nas conversas, sob pena de ser tomado apenas como mais um labrego laborioso. O curso superior passa a estar associado a uma exigência de conhecimento e savoir faire, além da inteligência que releva da capacidade de cada um e uma retirar bom vencimento do que supostamente aprendeu numa licenciatura. O advogado, o professor, o arquitecto são valorizados como quid mínimo, o inspector da Judiciária, o acessor do Presidente da Câmara ou o piloto da Força Aérea, sobressaem pela relativa raridade e originalidade das suas profissões em relação à restante sociedade civil. Tive um professor sociólogo a quem na primeira aula ofereci o dom de me antagonizar, pois à sua tese de que o móbil social do indivíduo é a dignificação da existência por captação de apreço por parte da comunidade, eu retorqui que o móbil social é o sexo e garantir ou manter a escolha sexual, e que só quando a gaita já não funciona ou a vagina já não tem muito apelo para outros, é que o indivíduo encontra outras formas de ocupar o vazio que o instinto sexual anteriormente preenchera. O senhor ruborizou, inflamou-se e percorreu meia sala até mim dizendo que rejeitava de todo essa ideia. Eu disse que podia mostrar através do registo arqueológico e de teoria antropológica, o papel de bens de prestígio, e do sexo nestas nossas sociedades de primatas. Disse-lhe que ia fazer o trabalho a provar isso mesmo. Deu-me 12, só para não dizer que me chumbava. Preparei bem a coisa, com fontes daqui até ao cara de alho mais velho. Preparei bem a estrutura formal e lógica da minha tese. Negar-me, seria negar toda a bibliografia citada. Eu já sabia que ele justificava uma ideia que lhe era querida e que eu só para mijar na parada dele, me prejudicava a mim. Mas não conseguia não me ofender com aquela ingenuidade. Como não me estava para chatear com uma cadeira dada à base de autores dos anos 70 plasmados em powerpoints monocromáticos, não recorri, mas baixou-me a puta da média. Nada de novo. Sara liga-me dizendo, «-Amor, é para estarmos às 20:00 no Cais do Sodré.» «-Vou-te comer no Cais do Sodré.» «-Vais nada, está demasiado frio e não podemos andar muito juntos sem máscara.» «-Ok, vou tomar banho.» A água quente relaxa-me o corpo todo, marreco de 8 horas de ler e escrever, e de tentar resistir à tentação de rever filmes de ficção científica ou de amores infelizes. Apoio ambas palmas das mãos na parede porosa e arenosa do chuveiro e sinto a vaga de calor inundar-me de cima a baixo. Que raio vou eu para estas caldeiradas, que se lixe. Preciso sair de casa, e não estou obrigado a entreter ninguém, que é aquilo que qualquer gaja espera quando é o homem que a convida para sair. Como se bastasse aparecer, que aparecer é já por si o prémio. Engraçado que é mais comum nas mulheres desinteressantes do que naquelas que têm alguma vida interior. Poderosa ferramenta, a vulva, criando a ilusão de que vale por si, e todo o mundo é a sua ostra. Que merda faço eu aqui na estação fluvial, com este frio à espera de uma cachopa que conheci numa seguradora. Com uma saia castanha e óculos da moda, maiores que a própria capacidade de rotação ocular, olhou-me e perguntou-me o que eu queria. Eu respondi que o que queria e o que estava ali a fazer eram duas coisas diferentes. Que queria cheirar-lhe o cabelo molhado após tomar banho, mas que estava ali para resolver de uma vez por todas o imbróglio no qual a companhia em que trabalhava, Sara, havia causado. Riu-se, e tentou reencaminhar-me para a primeira linha, recusei, e disse que a história já vinha de trás, já havia passado por todos esses passos e que estava ali para falar com alguém que mandasse qualquer coisa, pois são assim as coisas cá no burgo. Apesar de agradada com a minha presença, cheirava-lhe justamente a reclamação e antes de me enviar para outro departamento qualquer disse-lhe que gostava que a minha história com ela fosse pelo menos tão antiga como a desta reclamação. Ela responde-me dizendo que não terminasse igualmente em reclamação, pois histórias de amor tristes, não permitem reembolsos. Riu-se muito convencida do seu atrevimento no jogo e da sua presença de espírito. Eu respondi que nenhum amor meu é uma história triste porque não só não reclamo, como o reembolso é sempre dado de antemão, em suor e beijos. E que portanto, quando acaba, nada há a pedir. Ficou sem resposta, vi que estava hesitante entre o que lhe mandava o senso comum, mandar-me dar uma volta, e o que um pé meu na fresta da sua porta lograra, curiosidade em saber mais de mim. Antes que respondesse, arranquei um papel do seu retrógado memorando e pedi-lhe para lhe escrever o seu número, que tínhamos um amor triste por fazer. Riu-se. Uma semana depois, após jantar, sessão de cinema e passeio pelo calçadão do Estoril, pediu-me que a abraçasse que estava com frio. Nossos lábios uniram-se e só se largaram ao fim de uma curta semana que passámos na sua casa com vista para o mar, de onde solicitara trabalhar à distância, trabalho só possível quando me apanhava a dormir. As amigas iam ligando para saber porque cancelara compromissos e inadvertidamente eu ouvia no telemóvel as suas vozes perguntando: «-Sua puta, conheceste alguém?! Deve-te estar a saber bem, para te cortares com a gente.» Outra dizia «-Fazes bem, aproveita, parte essa pila ao meio!» Ela ruborizada tentava baixar o volume do altifalante e terminada a chamada eu disse-lhe: «-Devias seguir a sugestão da tua amiga.» Iniciava-se um longo e prolongado beijo, com todo o peso da seriedade e entrega do mundo, em que o indivíduo pode alijar momentaneamente toda a descrença pós amores juvenis. Assentando os lábios no objecto de amor que acredite ser o ‘Tal’, pode sentir-se ainda que ilusoriamente, olhando no rosto do Criador, ainda que através do reflexo de uma paixão. «-João!» Saída do Metro, oscilando seu braço para mim, para que a visse, com as 29 Primaveras, encurtadas por uma mini saia de cetim verde, e um blusão de aviador de pele de carneiro, cujo forro interior coincidia com os sapatos prateados, realçando o lacre viçoso que adornava os seus lábios. Há muito que uma gaja boa não me provocava uma reacção assim, de me fazer mexer o falo, que se coloca em sentido como que pedindo a sua vez para falar. Nem bom dia nem boa noite, disse-lhe: «-Porra, o meu mangalho quer jantar antes de mim, estás de arrasar, vais ser comida ali no escuro, e nem te queixes das baratas.» «-Tonto, vou nada, está frio e estamos atrasados.» Fiquei com cara de parvo por ter revelado a facilidade com que dois dedos de carne feminina me lançariam em fornicação, mas não me ralei muito, fiquei até contente por isso, pois agora sei que após algumas cambalhotas, o que tinha carácter de absoluto se vai gradualmente relativizando. É como o oxigénio debaixo de água…só temos consciência do seu valor, imersos. Agarrou-se a mim de forma apertada, dando-me o braço, para que a abraçasse, e não pude deixar de pensar que se algo seria fingido, uma forma de me fazer sentir com familiaridade suficiente com ela, que permitisse uma noite de fingimento correr sem sobressaltos. Dei comigo a censurar-me por pensar nestas merdas, ordenando-me a entregar-me à experiência, mesmo que fosse fingida, nada paga a minha espontaneidade. Pelo caminho ainda me agarrou para me beijar, ou por desejo genuíno ou para compensar a nega dada anteriormente à sessão de sexo em lugar público. Tive de me esforçar para me entregar ao beijo e ralar com este tipo de cogitações, e terminado -seguindo-se a continuação da marcha e o morse das mãos dela que com apertos visavam dizer-me que estava feliz- dei por mim a indagar a mim mesmo, que sou lento, porque raio se queixa do frio mas vem de mini saia, e estando atrasada sai a cerca de 2 quilómetros do destino. Não quero saber, não há lógica, para quê querer encontrá-la? Entrando no restaurante, apinhado, perguntei-me a mim mesmo se não havia recaído na condição de conas. Então numa situação de pandemia, vou-me enfiar num lugar apinhado e ressentido com a reclusão sanitária que o governo nunca deveria ter levantado? Por causa de uma gaja e da promessa de vulva? Estive para voltar para trás, mas vendo um lugar desocupado num dos topos da mesa, disse a Sara, que isto é de loucos, e que eu fico no topo, onde mais ninguém me pode tocar. Ela estranhou, primeiro, percebeu depois e respondeu que só me queria bem e presente. Sim, mas se ficas ao pé das tuas amigas, eu fico no topo. E ela respondeu que ficava ao pé de mim. Toda a mesa com quase cerca de 20 pessoas teve de se reorganizar, para eu ficar sozinho numa ponta, com Sara perto de mim, e a impressão geral passou a ser que eu era ou esquisito, ou velhaco, ou com a mania de ser melhor que os restantes. Sem prato vegetariano, tive de pedir bacalhau assado, como se o desgraçado por não ter voz, não gritasse de dor quando o matam. Valeu ter duas garrafas de vinho à minha frente, que usei para me silenciar tendo em conta a algazarra em redor, com solicitações de todos os lados da mesa para todos os outros lados da mesa. Os homens eram os mais calados, por menos histórias terem em comum, tirando alguns serões em conjunto deste ou aquele casal. Assim que apanhava algum tema de conversa em que podia deiar-me levar, refocava a atenção nas garrafas de vinho que iam aparecendo à minha frente. Fingia olhar as pessoas de ambos os lados da mesa, para não parecer anti social, e ia saboreando o vinho da casa, entregue a pensamentos próprios. Sara ia-me esfregando a perna com as suas, e ocasionalmente metia a mão na minha braguilha para me afagar na zona, eu sem saber se era o prémio de consolação ou de agradecimento por eu estar ali, ou se realmente estava impaciente por mais intimidades entre nós. Levou com um garfo, um pouco de bróculos à minha boca, pois ela não liga muito a verduras. Do canto oposto da mesa alguém exclama: «-Eh lá, ó Sara, nunca te vi assim tão mimosa! Ai tão querida que ela está dando a papinha à boca.» Perante a risada geral, a atenção súbita e o rubor de Sara, o que conta foi que bebi mais um copo de vinho. Alguém perto de mim, com mais controlo e maturidade, (ou para me tentar convencer de algo) diz-me: «-João!? É João né? A sério, é a primeira vez que vimos a Sara assim tão ligada, e carinhosa, e só por isso estamos a estranhar.» O tom era de me convencer a acreditar na excepção, mesmo que inevitavelmente releve que antes de mim – a excepção- houve outros, as regras. Eu respondi: «-Ainda bem. Ela é muito meiga.» Agarrei-lhe na nuca e puxei-a gentilmente para mim, e beijei-a, deixando a interlocutora prévia, sem nada que dizer. Chama-se Laura e é uma das mais velhas do grupo, e, portanto, das mais comedidas. Senti o seu olhar avaliando-me, porque não corara, e porque respondera à sua tentativa de testar o meu enconamento com o bypass emocional que promete excepção, como se a excepcionalidade de alguma coisa fosse prova do que quer que seja nos dias que correm. «-Chicas Fatais, de penálti até não mais!!!» Era o grito de guerra delas, repetido de forma ostensiva e gutural até, treinado previamente nas noites de festa na residência universitária que partilharam. Os tipos, riam-se e quase que ficavam encolhidos perante tal exposição de vitalidade e empoderamento. Um ou outro, ria-se sardonicamente, por perceber o espírito de grupo que tomando conta dos indivíduos era o maior prenúncio de possível granel. Ficamos sempre na dúvida se o indivíduo que age em grupo, é o verdadeiro indivíduo, ou se é um outro além do que normalmente todos fingimos. «-Então João, não bebes?» pergunta a matrona matrafona do grupo, aquela que menos afortunada com benesses genéticas de geometria facial, vinga-se do mundo e da vida que não teve, com ressentimento que se exprime em comportamento ostensivo, como que para mascarar o aspecto físico com a poeira da personalidade. De nome Ângela, respondo-lhe: «-Bebo e bebo mais que tu.» À resposta a mesa emite um sonoro «Uhhhhhhhhh!», interrompido por alguém que diz «-Isso cheira-me a desafio!» Eu cometera a infantilidade de medir pilinhas com uma gaja, que suponho, não a tem. Não podia voltar atrás. Com surpresa vejo que traz – por certo já ébria dos brindes anteriores – duas garrafas de vinho cheias, para tirar a limpo o desafio de dominância que achou que eu tinha feito. Olhei para ela, a ver se estava a sério. Alguém disse «-Pá ò Ângela isso é estúpido beber uma garrafa de vinho pá, isso não tem graça.» «-Pshiu.» - diz ela, «-Eu bem vi como ele puxou a cabeça da Sara para trás como se ela fosse dele, e ele um grande machão!» Um silêncio súbito abateu-se naquela zona do restaurante, e a maior parte dos presentes, constrangidos por aquela estupidez dita por uma amiga parva, olhavam para mim a ver como eu reagiria, e eu olhando para Sara, vi que ela mais que os outros temia a minha reacção, pois é necessário elegância para resolver este tipo de imbecilidades que qualquer ébrio pode dizer ou fazer. Pareceu-me que devia ser eu a não estragar a noite a ninguém e disse em voz alta: «-Ok, até à última gota, mas se alguém não beber, lava a roupa interior do outro durante um mês.» A gargalhada geral abafou as exclamações de «-Bem dito!», «Boa!» ou «-Bem respondido!» Quando estávamos defronte um do outro para beber alguém entrelaçou os nossos braços, alguém bêbado de certo, eu deixei-me ir na onda. Por um lado só me queria esquecer, por outro lembrar onde estava. E então percebi que o nome que todas elas davam ao seu grupo era «Chicas Fatais». Um sentimento infantil e missionário emergiu em mim, como se estivesse a defrontar uma equipa de feministas ressabiadas num jogo de futebol de 5. Bebi rápido a minha garrafa, e ao pousar a mesma, que a Sara me disse para não beber, reparo que a minha oponente ainda nem a meio ia e já o verde rosto de vómito anunciava ir pairar. Ainda bolsou algum vinho ao chão e fez o esforço de voltar ao lugar. Urros e palmas, e orgulho em dois ou três gajos apêndices que por certe numa ou noutra altura haviam sido enconados por esta mulher masculinizada e castradora, envergando um sorriso. Por acaso o vinho caiu bem, apenas me dando vontade de mictar, que adiei, para apreciar o momento e não indiciar que iria vomitar o vinho. A espera amaciou-me e a minha fala começou a arrastar-se, se bem que o pensamento continuava acutilante e fluido, como sempre que me embebedo. Aliviado da carga liquida, regressei à mesa, mais bem disposto e já disponível para falar com alguém. Ao sentar-me ao ver o pernão de Sara, disse-lhe ao ouvido que o WC estava limpo. Ela riu-se e respondeu que era uma boa ideia, mas não queria chamar as atenções. Nem eu, respondi de pronto. O gajo que estava ao meu lado, ergue o copo e olha para mim para brindar. Brindo bebo e ele continua surdo e mudo após beber também. Fiquei sem perceber. Siga. Ângela volta à carga e olhando para mim ergue o cálice e diz «-Brinde ao feminismo!» «-Brinde!!» respondem quase todos erguendo os copos e bebendo em alegre e jovial celebração. Eu não. E era isso precisamente que Ângela previra e pretendia, um quid para desqualificar o gajo pelo qual perdera a face ou parte dela, no seu grupo. «-Então João, não bebes?» disse sorrindo maliciosamente. «-Nop.» respondi. «-Podemos saber porquê?» «-Podem.» Enchi mais uma vez o cálice, e bebi vagarosamente, com boa parte dos presentes olhando para mim, como que esperando uma resposta. «-E…?» esbracejou Ângela, por certo esperando que eu largasse lenha onde me queimar. «-E o quê? – perguntei. «-Porque não bebes?» «-És tu que queres saber ou o grupo, é que a pergunta que fizeste implicava estares a falar por todos.» Retorceu os olhos «-Ok, sou eu que quero saber, diz.» A vontade de me anular numa questão parva como aquela fez com que não tivesse noção de que podia correr ainda pior para o seu lado. «-Ainda bem que queres, mas nada ganho em dizer-te, nem é importante.» «-Bem me pareceu, não queres admitir que defendes a patriarquia contra um sistema de igualdade entre os sexos.» Visava ela manipular emocionalmente, e condicionar a minha resposta usando a pressão social também. Ri-me e traguei o que restava do bacalhau. «-Então, não brindas?» «-Não.» «-Porquê?» «-Porque não gosto de apoiar discursos de apoio ao ódio.» «-Desculpa?! Feminismo, discurso de ódio? Ah, espera, para ti igualdade é ódio.» «-Não, igualdade estrita sim, é desejável, mas uns serem mais iguais que outros já é outra coisa.» «-Admite que te chateia que as mulheres se organizem e tenham força e não dependam de homem nenhum.» «-Escuta, o feminismo é um discurso de ódio. É como alguém que tomando uma chuveirada no poliban e achando que a água está muito fria, abra toda a água quente, e ache que sem limitar a quantidade de água aquecida, por milagre a temperatura correcta chegue sem afinações.» «-Claro, pois temos sido subjugadas e limitadas pelos homens inseguros durante milénios. Reduzidas a papeis instrumentais e dependentes do homem financeiramente.» «-Não gosto desse discurso simplista acerca da ‘história’. Por exemplo, em eras mais violentas que a nossa, é natural que existisse violência com as mulheres, mas havia violência com os homens, com outros homens, como hoje. Se não gostas de ser dependente de um homem para ter liberdade económica, achas que algum gajo gosta de ser dependente de ti para ter liberdade procriativa?» Todo o grupo escutava o esgrimir de frases. Nem tanto pela novidade da minha personagem, mas pelas ideias em jogo, e por estarem uns quantos gajos presentes, a quem provavelmente era finalmente dada a oportunidade de ouvir canções diferentes. Um esperto, tomou o partido das mulheres, curiosamente aquele a quem a relação com a gaja em frente dele parecia mais precária, onde era mais notório que ela era dona e não parceira. «-Que lata, então o corpo é delas e queres mandar no útero de outros?» «-É precisamente esse tipo de mentalidade que te inferioriza ante um membro do sexo oposto. Ao dares a liberdade total de abortar, estás a relativizar o teu próprio código genético, estás a dizer que o espermatozóide não tem qualquer valor, e que o ser humano masculino é secundário em relação ao detentor de útero, a mulher. Estás a assinar por baixo da tua própria menorização.» «-Também era melhor eu não ter direito de mudar de ideias.» responde Ângela, curiosamente não desviado para um ataque de vergonha ou emocional, o que me surpreendeu. Continuei: «- O aborto como forma de contracepção é só a celebração da liberdade feminina, é permitir à mulher dizer, olha, emprenhei deste gajo, acho que consigo fazer melhor e portanto, aborto – ou seja, deito para o lixo o código genético de alguém a quem concedi consciente ou inconscientemente, acesso a um útero. No mínimo é inconsciência, no máximo é algo muito longe da igualdade.» «-És, portanto, contra a mulher ser dona do seu corpo?» «-Não, sou a favor da responsabilidade da mulher perante as suas acções. Violações e outras margens percentuais dos abortos, fazem com que o mesmo tenha de ser legalizado nestas condições, porque se for como forma de contracepção, não passa da decisão última da mulher em anular algo que o outro tenha a dizer numa relação consentida. Qualquer gajo que não veja sequer um problema nisto, é um conas.» Olhei para o gajo que me interpelara quando disse ‘conas’. Ângela responde, «-Então nesse cenário que pintas, como conseguirias uma igualdade estrita?» «-Não conseguia, o mal está feito. A única solução é, infelizmente, registar mentalmente e ignorar qualquer imbecil, homem ou mulher que diga que é feminista. » «-Registar e ignorar? Como é que é isso? Isso é possível?» - finalmente Ângela a mostrar uma velhaquice retórica, fácil de desmontar. «-Simples, se defendo que as pessoas têm de ser responsabilizadas pelas suas escolhas, como é o caso do aborto, a única coisa a fazer é lembrar quem se discrimina com base no género, e não lhe passar cartão, deixar a falar com o vazio.» «-Eu não discrimino com base no género.» responde ela. «-Discriminas, achas que eu por ser homem, ou para ter dignidade da minha opinião tinha de ser defensor do feminismo.» Parou para pensar e sou interpelado indirectamente por um dos casados. «-Ele fala assim, porque sofreu no passado, a nossa Sara será a Salvação!» O riso geral aliviou a conversa e amenizou a atmosfera em torno das sobremesas que, entretanto, chegaram. Percebi já tardiamente que tinha ganho uma excelente oportunidade de perceber os níveis de interesse de Sara, se agisse de forma arisca, indirecta ou desinteressada, então o convite tinha obedecido a um interesse meramente pessoal onde eu era um acessório. Se pelo contrário, mantivesse o mesmo comportamento, a atracção por mim seria real. Na fase dos cafés, O tipo que falara por último dirige-se a mim em tom conciliatório e pergunta se quero um cheirinho no café. Agradeço, recuso e acrescento: «-Todos já provámos desse cheirinho, por parecer que o tens no café, não quer dizer que continue a cheirar.» A frase soou de forma estúpida mas de alguma forma pareceu-me que ele ficou a pensar naquilo. Ângela exorta todas de novo a um brinde «-Ao feminismo e aos namorados patriarcais!» Peguei no copo e brindei para regozijo dela. Sara pega-me na mão e puxa-me para a saída, acenando com a mão a todos os que estavam na mesa. Já havia pago e chamado um Uber enquanto eu estava na conversa. O vinho ainda fazia das suas e eu estava de certa forma dormente, e na traseira do C-Elysée a minha mão fez subir a saia até à cintura, no mesmo ritmo em que a respiração dela se tornava mais ofegante. Exausta na cama, via-me cozinhando para ela, e trazendo o pequeno almoço à cama, beijei-a no rosto, e apertou-me contra si num abraço apertado, que não me queria largar. Nem para comer.
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