Perdia longas noites calcorreando junto ao rio a ver se metia em ordem as ideias.
Analisava tudo o que podia sobre a sua vida para evitar vivê-la.
Era como o rather not de um poema que lera algures. Epá, viver é chato, não quero.
A vida cospe-me na cara exigindo-me que me entregue a ela, eu retribuo o favor e entretanto a ampulheta não cessa.
Sou um daqueles que guardo os cabelos dela dentro dos livros, para quando emergir em tempos futuros olhar para eles e certificar-me que ou a vida me nomeou como Escolhido, ou para me rir dos meus traços de carácter que me tornam único.
Sentado no animatógrafo do Rossio a búlgara que dança para mim olhando recorrentemente para a slot das moedas, consegue criar a ilusão de uma ligação especial comigo no meio dos onanistas que em mesa oval escudada por alumínio a olham trepidando pelo vidro que nos separa.
O tempo parece claustrofóbico e o ar rarefeito. Por onde quer que olhe vejo turistas e ouço línguas diferentes. Lisboa tornou-se um folheto turístico. Asséptico entre os picos de cerveja e cocaína. Permanece o esqueleto, os monumentos erguidos por gente já morta.
Eu como os estrangeiros apenas vivemos nos escombros.
A porta do WC, como Caronte pergunta-me «-Yo jovem, que vais fazer ali dentro?»
«-Pôr pó no nariz.»
«-Deixa-te disso e circula.»
«-Não tenho o dom de usar drogas para ser criativo?»
«-Circula jovem, não te meto duas moedas nos olhos, mas meto ambos com a cor púrpura.»
A querer chegar a algum Rubicão, tenho de o fazer da forma mais difícil, sóbrio.
A minha estrada de Damasco lembra-me a verdadeira razão da minha aflição, sentir-me fita-cola daquelas que se agarram à pele se não temos cuidado, e com dificuldade se arrancam, não sem antes trazer parte de mim atrás.
E então bate-me, os textos do Viúva Profissional não lamentam os amores insuficientes, mas os pedaços de mim que as minhas amadas levaram.
Que espécie de depuração é esta? Será que no fim do arco-íris estarei eu mais próximo do original que saiu do útero de minha mãe?
E elas, onde me guardam, no coração ou num caixote do Esquecimento?
E agora, que farei à lembrança dos lábios escarlates de que guardo as lembranças.
Terão outros sempre Paris. Eu tenho Lisboa e os cabelos dela dentro de um livro.