Acto 2 – Tu
A porta fechara-se atrás de nós assim que entrámos no elevador. Como não possuis pinga de espontaneidade fui eu que aproximei a minha cara da tua e analisei o semblante. Olhavas meus lábios. Encostei-os aos teus. Felizmente não exprimiste nenhuma postura de ‘sou difícil’ ou ‘é complicado’ o que facilitou a integridade do meu beijo como expressão do sentimento de comunhão contigo que naquele momento senti. Foste tão natural a tomar a minha boca na tua como se o tivesses feito desde sempre. As minhas mãos entraram pelo teu casaco dentro tacteando a tua carne e seus contornos em redor das costelas flutuantes e aquele vale logo acima do limite das calças e da coluna desguarnecida de vértebras logo depois do teu rabo. Abri as palmas das mãos para ter mais área de pressão e puxei-te para mim. Ambos a receio tacteando a reacção um do outro, para perceber quem largaria a boca primeiro, para evitar sinais de sobre arrebatamento. Agarrei as tuas duas mãos, olhei-te nos olhos e ri-me. Olhaste-me expectante sobre o motivo do meu sorriso. Perguntei-te «-Tens de ir já para casa?» Respondeste «-Não me posso demorar muito, amanhã trabalho cedo.» Farto de mendigar por bóias e pontos de fuga, lembrei que a única coisa que um beijo concede é uma troca de saliva, e que todo o controlo é uma ilusão. Uma onda de indignação morreu na praia em mim, afinal não me posso esquecer que estou de castigo pelo mundo. Então confessei:« - Tenho uma fantasia contigo desde que te vi e que gostava de concretizar.Gostava de fazer algo único que te faça lembrar de mim quando eu cá já não estiver, pois tudo o que fizermos até eu partir nunca mudará a tua decisão já tomada de não te envolveres com quem só amiúde poderias ver trimestralmente.E sei que o impacto da minha presença não foi suficiente para alterares o padrão de estabilidade que tens agora, garantido, confortável conhecido e medíocre como uma tépida manhã de Domingo.» O teu olhar tinha alguma coisa de triunfante, parecias adivinhar o que se seguiria na minha boca, afinal as tuas presunções acerca do mundo não existem, são apenas certezas empíricas e apodícticas, e um pequeno esgar de desconfiança parecia indiciar que achavas que a fantasia tinha a ver com sexo, colocando-me no longo rol de paisanos que te cantaram a canção do bandido. Parecias contente porque afinal a bruma que eu parecia emanar se dissipava sem notoriedade garantindo um biscoito ao teu ego, por ser tão inteligente a decifrar segundas intenções. Afinal o gajo que parecia interessante era só mais um pavão com penas emprestadas. Respondeste: «-Fantasia?Já? Que fantasia é essa?» Olhando para a porta do elevador que entretanto parara no piso 0, escondi a minha cara do teu olhar e respondi: «-Gostava de fazer toda a marginal até Cascais de mão dada contigo.» Olhaste-me com o mesmo olhar gasto com que se olha a repetição das desilusões, mas algo em ti lembrou-te que de facto era inédito, por tão imbecil que era tal enfadonha aventura no teu currículo de cortejamentos, que são sempre mel nos primeiros meses. «-Acho inapropriado e a esta hora e com este frio não vou andar no calçadão no escuro.É frio, perigoso e tenho de trabalhar amanhã.» Respondi:«-Não, vamos de carro.Até Cascais e voltamos logo. É num instante.Tens alguma graça mas nem tu me metias a andar de mão dada na Linha.» O «não» que se afogou na tua boca foi mais afogado pelos 4 copos de vinho tinto que beberas previamente que por uma genuína vontade de partilhar um cliché que não respeitavas. A negação não saiu, como eu estava à espera que saísse, porque a desilusão entre as primeiras impressões e o provincianismo da fantasia a concretizar criaram um fosso de frustração em ti, como em todas as mulheres nestas situações, que já não é aplacado com negações mas com rituais de imolação sacrificial em lume brando de humilhação. De forma a que o tipo que desiludiu perceba bem fundo a mensagem da sua inadequação. Disseste a rir: «-Ok.» Aproveitei a deixa e puxei-te de novo para mim, abocanhando-te os lábios como se fossem máscara de desfibrilador, esmerando-me no bailado da língua de forma a garantir-te como horizonte de fuga, como praia caraíbenha para este náufrago prestes a ser colocado no meio do deserto que atravessa. Um claro pensamento masculino, toda a manobra pode terminar de imediato por vontade do corpo que sorvemos portanto cada momento pode ser o último. Por isso te agarrei gentil e vigorosamente pelo pescoço trazendo teu rosto para perto do meu, fazendo pairar o meu nariz sobre a tua pele sentindo o calor aromatizado que a derme liberta, um calor com o teu cheiro. Passando a mão do pescoço para os cabelos que os meus dedos percorreram lavrando como charruas a floresta negra acima do teu escalpe. Ainda sem colar os meus lábios nos teus lábios carnudos, colei a boca pairante nas imediações das tuas maçãs do rosto, onde concentras boa parte da tua sapiência cosmética. Não, não era uma falha na tua armadura, mas uma verdadeira ponte para o autêntico ser que deves ser (aquele que és quando ninguém te observa). Mas também uma canalhice minha de forma a manipular-te a pensar que o prazer que retiro do teu rosto tem noção das imperfeições que ignora. Que se lixe, perdido por 8 perdido por 80.Na tua longa galeria de idiotas que já esqueceste, há sempre lugar para mais um para meter em conversas onde é preciso rir mais as amigas. Tinha a barba desfeita e portanto deu-me prazer roçar meus lábios, e rosto em redor, de olhos fechados nas mesmas áreas da tua cara raptando para dentro de mim sempre que possível a tua expiração que avidamente capturava, porque era o cheiro do teu interior expelido pelo teu pequeno nariz. Nada mais se pode comparar ao sopro de dióxido de carbono e vapor de àgua que saindo procura libertar-se na atmosfera para se ver aprisionado de novo nos brônquios de outrém desta feita despojado da essência aromática que foi razão da captura. 11 da noite e eu armado em Grenouille, procurando traduzir em impulsos eléctricos no cérebro, as sensações de prazer que a análise do teu cheiro interior me traziam da massa recôndita daquilo que és. A tua pele era suave como toda a pele que é tratada com cremes diurnos e nocturnos. A merda dos brincos circulares que trazias impediam-me de aceder às tuas orelhas e além, onde geralmente o cheiro do perfume não chega. Subitamente, como acontece a qualquer nascido sob o signo de Marte, olhei o terreno sagrado do teu corpo e em especial da tua cara, como campo de batalha lavrado pelos olhos, boca pele e dedos de outros homens que te agraciaram com o seu amor. A lógica nega isto, naquele momento, naquele contexto espácio-temporal, dizia-me ela eu ser único. Não gosto de misturas ou de multidões acima de 2. Ego inseguro este, e possessivo, que nem levantava o rabo do sofá. Um ser humano real, como pareces ser, tem história e abençoa essa história, pois foi ela a razão da chegada a cada momento presente. Cada momento coevo de felicidade é resultado de um caminho que não pode e deve ser amaldiçoado. Ri-me de novo. Como mudei ao longo dos anos. O pensamento de outros já não me irrita e assombra pela comparação insegura, antes me tranquilizando de que a pessoa que está à minha frente, sendo psicologicamente equilibrada, trilhou um caminho. Antes olho agora, para a sucessão de amores idos como para ruínas deixadas por civilizações antigas.Gloriosos amores passados que o devir lavou nas àguas do tempo, ou que se repetirão em eterno-retorno pela eternidade. Isso é prova de que sentes, porque sentiste, é prova que amaste porque foste amada, significaste algo para outros. Isso não pode ser mau. Por um momento pareceste estar realmente comigo.Algo dentro de ti parecia estar em conflicto, e eu nunca te roubaria de outro, nem mesmo dos outros nas tuas memórias. Uma palpitação em mim assinalou o gozo extremo de ver a tua cara séria e concentrada que prenuncia o arrastamento de todo o teu ser, da desconfiança e da jocosa distância para mais perto de mim, espelhando no teu rosto a necessidade de reviver em mais um ciclo, um amor que resgatasse todos os anteriores e desse ainda que por momentos, a ilusão de que a individuação vale a pena quando alguém está prestes a amar-te incondicionalmente. O triângulo formado na base pelos teus lábios e cujas arestas rectas como mãos levadas ao céu terminam pouco acima das tuas narinas estava nitidamente vincado, não sendo um gesto pensado mas puro sem máscara de persona. Eu havia provocado alteração na tua indiferença. Mas todo o controlo é ilusão, e o que corre dentro de ti é-me totalmente inacessível. E no entanto havia mais verdade naquele teu olhar triste que nas erupções de programação neurolinguística de positividade forçada. A glorificação da alegria pela alegria é como escolher um filho entre dois. É que a tristeza é a única coisa que dá profundidade ao que somos e carácter épico à nossa existência. As crianças que cresçam à sombra dizia Saramago. E na sombra desses olhos castanhos penetrei com o olhar e vi uma verdadeira faceta de quem és, naquele lamento existencial de quem não esquece a falha tectónica entre uma dor acerca do mundo e a sua própria vida. Finalmente havia encontrado uma aresta deste ser. Joana era humana e não uma ficção validada por outras ficções. Eu ainda não lograra uma erecção. Geralmente o toque ou a troca de expirações quentes faz o truque. Mas ainda hoje não sabendo porquê, aquele momento retinha um capital de significado que não consigo explicar. Seriam as expectativas em relação ao ser ignoto, novidade, que defronte mim se apresentava anónimo? Seria a novidade e a promessa em surdina de uma noite de orgasmos que traziam carácter distintivo à coisa? Não. A clarividência como alvorada havia trazido para a minha consciênciaa urgência de significado acima de todos os critérios. Especialmente em relação ao orgasmo que morre logo ao nascer, desaparecendo mumificado para sempre e de forma anónima na memória. Quantos orgasmos dos que já tivemos, podemos distinguir na sua unicidade irredutível? Sob certo ponto de vista apenas recordamos um único orgasmo e desejamos o próximo que se assemelhe no melhor possível. Hipnotizado pelo sinal na ponta do seu nariz, procurei auscultar as suas vibrações, perceber se a galeria de homens que tinha em si sepultados, representavam degraus para um frágil ego ou uma forma de dar sentido a Cronos...ou se de facto eram expressão de arrebatamentos sazonais. Meteu a mão no meu queixo elevando-me o rosto e perguntou:«-O que foi?» Eu disse: «-Nada, estou a fazer-te o perfil.» Qualquer conquistador passado ornado de genocídios olhou para territórios desconhecidos com a mesma insegurança com que eu olhava agora. Mas sou um homem ou um rato? É o meu espírito assim tão fraco que uma rejeição ou um jogo de donzela de corte me joguem pelo chão como palhaço circense? Claro que não, mas há sempre um período de refracção após um uppercut que quase te deixa K.O. A consciência deambula zonza enquanto a massa encefálica se recompõe do choque contra as paredes do crânio que a delimitam. Mas passo a passo, lentamente vai recuperando e ganhando controlo que é uma ilusão, sobre o seu pretérito e actual reino. Que se foda.Sou mais forte que o que gosto de pensar. Tudo o que preciso está em mim e a minha integridade supera os joguinhos palacianos que aprendi a reconhecer. Tomo-te como a todos, como geradora de acções honestas e bem intencionadas, até prova em contrário. Fiquei sem saber se de facto sentia o que pensava ou se era o cabrão do macaco a manipular-me no sentido de justificar sob qualquer luz, o esperado salto para a cueca, ou para o abismo, o que vai dar ao mesmo. Mas lembrei-me de um texto teu Joana, em que dizias: «-Jamais voltarei ao que fui antes de ti.Só por isso (exactamente por isso), obrigada pela lição de vida.» Lembrei-me que ao ler pensei que quem pode ser assim tão ingénuo, não tem capacidade ou inclinação para representar peças. A ingenuidade não é defeito mas depuração de espírito. Como que se a erosão provocada pelas dores e desilusão fosse comparável à acção do escultor de bloco de mármore. Apanhar pancada não nos torna melhores, apenas mais cautelosos até que já velhos não dançamos à chuva por cautela pela pneumonia. O medo venceu finalmente a natureza revolucionária e irreverente, jovem, do mundo pujante que cada um de nós é ou foi. Não, o rio torna-se largo e descuidado, tendendo a ser no fim, planície.Porque todo o poder abrasivo das rochas que o percorrem, o deformam. A pancada não nos ensina nada, apenas no deforma. Não sai nenhuma estátua, apenas a autoaniquilação do rio das nossas vidas. Foi nesse momento, que te abracei com força, contigo exclamando :«-Oh!» Apertando-te forte contra mim corria o risco judicativo de acentuar a tua opinião sobre mim de inadequado. Mas, estava a leste disso. A epifania que me proporcionaste naquele momento foi como a abertura de um portal de cristal entre mim e o númeno do mundo. A urgência da ameaça de teres de acordar cedo lembrou-me que faltava caminho. «-Vamos?É rápido a esta hora.»- perguntei. Apreensivo porque um beijo nada representa, o controlo é uma ilusão e a partir de certo grau de experiência facilmente desenvolvemos limitadores de velocidade dos sentimentos, há quem lhe chame responsabilidade, outros maturidade. Humano que não possaser arrebatado pela promessa da tua presença não te deseja como eu te desejei. Surpreendeste-me dizendo: «-Vamos.». Às vezes ir contra nós é a única forma de exprimirmos quem somos. Assim o interpretei, consciente de que cada hora mais sem dormir seria um prego maior no caixão do teu dia de trabalho seguinte. Nada em mim se alegrou pela aparência de bom encaminhamento no acesso à vulva.Fiquei até irritado com esta ideia que emergiu por si, oriunda do macaco. Naquele momento bastava-me prolongar a tua presença para compreender o real efeito dela em mim. E estava preparado para mais um corte habitual da tua parte. E senti que o prémio era eu, e não tu. Finalmente a minha espiritualidade sobrepunha-se ao hipotálamo. Sentia-me uma pessoa melhor, só por estar perto de ti. Já na A5 acelerando quebrei o silêncio de significado e perguntei-te se a tua indiferença era resultado da minha interpretação ou uma estratégia de sobrevivência tua, pobre coração massacrado pela Existência. Pareço estar condenado a achar que a empatia pela presença de outro pode surgir por mera acção da minha vontade, ou através de uma qualquer espécie de osmose da minha vontade para o outro. Mentalidade de náufrago. Disseste que não era estratégia nenhuma. O cabrão do macaco não se calava.Tornou lógica a ideia de entrar na marginal que bordeja o mar escuro e insondável lá à frente, a fazer mais perguntas que trouxessem certeza a algo indefinido como é sempre tudo o que ocorre no período de enamoramento. Perdido nesta luta para calar o dito, senti um toque largo pousar sobre a minha mão que engrenava as mudanças. Era a tua mão que colocavas em cima da minha com o delicioso e simbólico entrelaçar de dedos. O que qualquer gajo quer porque se sente desejado. A tal tipa ingénua não falhara, deixara mais uma vez arrebatar-se pelo seu coração, havia autenticidade nela, as ficções não lhe haviam determinado a identidade. Mais uma vez disposta q.b. a tentar a sorte na roleta russa da paixão. Levámos as mãos tão apertadas que o suór escorria por elas devido ao calor gerado. Foste a primeira a manifestar pudor em relação aos fluídos gerados, retirando a mão para a limpar. No rádio tocava o cd de singles dos Future Islands. A lua cheia fazia espelho na baía e parei o carro. O vento lá fora limpara as ruas de gente. Travei o carro, baixei a música e olhei para ti. Aquele sorriso característico teu, branco pelos dentes certos e boca franca, brindou-me como recepção. Nada de exasperação, enfado ou agastamento pela repetição de clichés. Ter-me-ia enganado? Teria interpretado mal a leitura a frio que fizera de ti? Seria algo de quase inédito. Estendi a mão em direcção à tua cara e afaguei-te a cara olhando para as passagens das costas da minha mão pelas tuas bochechas, de forma lenta e intencional como faria ao tactear todos os limites do teu corpo. Meneaste a cabeça inclinando-a de encontro à minha mão, e com a tua mão vieste tocar nos meus lábios com a ponta dos dedos. Voltei a ver o triângulo da seriedade na tua face, cuja soma dos ângulos internos sempre determina fingimento ou não. Não fingias, nem representavas, sentia a tua presença ali, no espaço e no momento. Peguei na tua mão e beijando-a trouxe-a para o meu colo, observando-lhe os pequenos e decididos polegares, bem como os outros dedos, grossos e proporcionais em relação à mão de onde partiam. Um abraço seguiu-se e depois dele a reedição mais ofegante do beijo.Desta vez os meus lábios e língua não se contentaram só com a tua boca, vagueando como bêbedos vadios as irregularidades da tua cara que lhe dão a graça que tem. O corpo que preenchia o interstício entre meus braços contorcia-se em direcção a mi e retribuía a exploração que eu próprio fazia, conhecendo a fisionomia dos teus lábios vistos pelos olhos dos meus, ao mesmo tempo que apertava os braços com as mãos confirmando a firmeza da massa que se lhes opunha. Finalmente uma erecção, a primeira do ano que ali se iniciara. O calor e cheiro do teu ponto supraesternal finalmente colocou a funcionar o velho e infalível motor de combustão interna que só precisa das velas incandescentes certas para funcionar ad aeternum. Deixaste de ser ponto de fuga e passaste a avenida. Toda a incerteza, desilusão, vitimização ficavam para trás enquanto ao apertar-te as nádegas te puxava para mim, bebendo a tua saliva como se fosse a maçã de eva em estado líquido. Desgrenhada a tua figura e cada vez me parecias mais humana, nada de poses, exercícios de estilo, para que os outros vejam. O teu rosto humanizara-se através de amassos com alguém a quem não eras indiferente. Ambos sabíamos o guião a partir dali. E no entanto disseste «-Pára.» cortando o cordão umbilical que nossas línguas haviam criado. E parei. Não foi preciso nenhum duche frio, já estava preparado porque estava a correr demasiado bem. Mas dois completos estranhos sem a argamassa das conversas de avaliação mútua, dificilmente são mais que dois corpos na mesma tesão. O meu Graal é o significado por isso não custou. Não é a vulva, essa coisa vulgar e às paletes por aí. Significado e significante porque só isso individua. Deste-me a mão e ficámos apenas a olhar um para o outro. Disse-te que já estava ansioso pela felicidade dos momentos por vir que nunca se concretizariam. Enquanto se saboreia cada momento da novidade, a ilusão da outra pessoa como algo diferente de tudo o resto experienciado até então. O castanho dos teus olhos pressagiou a promessa da aurora que assobiava através do canto cada vez mais frequente de pássaros, estar a caminho. O tempo passou demasiado rápido. E disseste que podias não ir trabalhar, afinal era fim-de-semana. Fiquei sem saber o que responder, mas vi que sorrias. Perguntei onde querias ir tomar o pequeno-almoço. «-A um lado qualquer.», disseste. «Deixemos passar mais algum tempo, que é coisa que não temos, a ver se abre algum café pelas redondezas.», pensava eu. Começámos o jogo de encarar o outro de olhos nos olhos, agora que a luz inundava tudo, e já se começavam a reconhecer de parte a parte as expressões faciais como consequências do que cada um ia sentindo. Sou muito mau neste jogo, demasiado expressivo, facilmente passando de cara em cara, a maior parte das vezes revelando o que sinto antes ainda de o pensar. Muito mais pétrea ou controlada oscilavas de sorriso em sorriso para uma cara de ‘surpreende-me com a palhaçada seguinte’ que reconheci como insegurança. Tentar controlar a ideia que o outro faz é e só pode ser insegurança, a não ser que seja método estudado para fins de manipulação, o que pela impossibilidade da coisa me parecia muito rebuscado. Desafiei-te: «-Se adivinhares o que estou a pensar vendo a minha próxima expressão, pago-te o pequeno-almoço. Se não adivinhares, pagas tu o pequeno-almoço onde eu escolher.Alinhas?» Disseste que sim, com um movimento de cabeça. Imaginei então que te despia e começando pelo casaco que facilmente saltaria fora, já passara pela camisola, pela camisa com demasiados botões e quando me aproximava da carne e sentia aquela ansiedade semelhante à que em miúdo sentia sempre que começava a ver o mar quando ia à praia, comecei a ver os contornos dos teus seios e imaginei as minhas mãos neles, e o som da tua respiração aumentar, isto para exagerar a fisionomia lúbrica do meu rosto para te pagar o pequeno-almoço. Estranhamente não reconheceste a cara de tarado que amiúde é a minha. Disseste não ter percebido em que estava a pensar ao pensei que te estavas a fazer de desentendida. Até o pescador lá fora que entretanto chegara conseguia ver a 200 metros que a donzela estava em perigo nas imediações deste predador. «-Ok.» - disse eu: «-Não ganhaste portanto eu escolho onde pagas.Certo?» «-Certo.» respondeste. «-Tens alguma coisa que se coma em casa?»-retorqui com um esgar de lábios manhoso que facilmente identificaste pelo que se via na expressão da tua cara. «-Tenho.Uns croissants fora do prazo e café.» «-Dá para barrar chocolate neles?», perguntei a fazer-me de difícil. «-Dá.» «-Então é melhor metermo-nos ao caminho, para se chegar a tempo decente, desta importante refeição.», gracejei. «-Vamos, eu dou-te as indicações.» «Buga.», disse eu. Desta feita não entrelaçaste a tua mão na minha até ao destino. Mas foi já da tua porta para dentro que te vi sorrir francamente de novo. Tirei o casaco e coloquei-o nas costas de uma cadeira da tua cozinha.Sentei-me e fiquei a mirar o novo habitat. Foste fazer o quer que fazes quando chegas a casa para ficares mais confortável e quando chegaste à cozinha meteste Gnutella e croissants do ano passado em cima da mesa.E foste fazer o café. E perguntas:«-Porquê croissants?» «-Porque isto faz parte de uma cena de um dos meus filmes preferidos, o ‘Bitter Moon’ ou ‘Lune de fiel’ no caso do romance.» Com cara inquisitiva perguntaste:«-Que tem de especial?» «-É a história de um amor demasiado forte, entre um escritor de 40 anos e uma mulher mais nova.O primeiro encontro carnal entre os dois ocorre frente à lareira pelo meio de café com leite e croissants.» «-Aqui não há lareira.» disseste com algum sarcasmo. «-Calculei, mas contento-me com croissants duros e se pensar no filme sinto-me mais em território conhecido.» «-Que estavas a pensar quando estavas a fazer a careta?» Respondi: «-Porque é que isso te interessa?» «-Porque sim.» «-Estava a pensar em todas as formas de te despir e de ter-te deitada com as tuas pernas passando em frente à minha boca e morder-te o tornozelo tatuado antes de suares em cima de mim.» Pousaste a caneca e com uma cara séria e desiludida olhaste para mim. Continuei:«-O teu pescoço seria por onde começaria, lambendo-o como se fosse o pé do profeta, traria todo o teu corpo nu de encontro ao meu como se fosses um edredom para tudo o que está fora de nós. Fechados neste pequeno e concêntrico mundo, aquecendo-nos apenas de nós e olhando apenas para nós.Esquece isso de que todos os corpos não variam o suficiente para que sejam tomados como diferentes entre si.A tua cara torna-o diferente e isso basta-me.Portanto as coxas que apalpo, as nádegas que mordo, os gémeos que lambuzo não são massas anónimas de carne tendão e nervo, mas braços abertos que irradiam a partir de ti.Tu, o quer que sejas és a fonte da minha tesão.» «-Tens de facto o melhor latim a Sul do Reno», disseste. «-Eu sei, e eu avisei.» Entregaste tua mão na minha, entrelaçaste os dedos e disseste: «-Bebe o café antes que fique frio.»
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