A cerimónia, parece, era de caixão aberto. Ainda bem, porque velórios sem ver o morto de boca aberta e moedas nos olhos, soam sempre a falso. Como se alguém fingisse a sua morte, para passar a outra fase da vida, ou se libertar da gente que conheceu, e deseja um novo princípio. É assim para quem se reinventa, para quem está morto, para quem termina uma relação parecida com o amor. Elimina quase totalmente, ou pelo menos à distância de um braço, o outro. Nega-lhe o discurso, mantém à distância, evita falar sobre o assunto. Assume que para o outro, o assunto é igualmente resolvido. O outro, e toda a sua dimensão emocional, são reduzidos unilateralmente, a uma não existência, a uma não relevância, no sentido mundano de que a vida é assim, e há que lidar com isso como gente adulta. Que a gente adulta entende bem as coisas das aproximações e das rupturas, e que acima dos namoricos existe a ‘vida’ que é superior e mais séria do que os assuntos do ‘coração’. «-Oh pá, há muito peixe no mar, eu não verto lágrimas por ninguém. Não quer? Venha @ próxim@.» Merdas deste tipo, escutadas vezes sem conta, em silêncio, e sabendo perfeitamente que não passam de desculpas e defesas. Temos forçosamente de nos tornar menos sensíveis, de modo a poder viver, ou sobreviver aos impactos amorosos. Como alguém que trabalha no guichet de uma unidade de queimados, e lida diariamente com tragédias humanas, por mais que se insensibilize, acaba por ter de pagar sempre uma moeda ao barqueiro. Assim a sequência de bocas, seios, cabelos, operetas, fingimentos e assomos, que decorrem da procissão de pessoas de quem vamos gostando. Quanto mais nos deixamos cair no abismo do outro, menos nós nos vamos tornando, e vamos regressando ao ponto de não regresso da individuação, percebendo que pouco mais levamos desta vida que as relações que estabelecemos uns com os outros. Envolvam cama ou não. Toda a gente vive como se não fingisse. Se não fingisse ser uma urna com vários cadáveres dentro, como se o amor fosse um, e não múltiplo de acordo com cada indivíduo por quem nos apaixonámos. O amor Cristina, o amor Rosa, o amor Francisca…e por aí adiante. É mais fácil a ilusão de que o amor é nosso, e não um vírus contraído pela existência do outro que nos infectou com os seus fluídos, trejeitos e maneirismos, fazendo-nos cair em enamoramento por si…é mais fácil a ilusão de que o amor é nosso, e que como lanterna em palacete assombrado e às escuras, ligamos e desligamos o foco de luz de acordo com a divisão do imóvel. Cada pessoa da nossa necrologia é um amor distinto de todos os outros, cuja parecença é talvez envolver cama, e mesmo assim, ninguém é igual na vertical ou na horizontal. Foder é um traço de carácter, tão individual como o tipo de piadas que nos provocam reacção em forma de riso. Para necrófilos como eu, é sempre motivo de espanto, olhar para as pessoas depois de mim, e ficar encantado com a sua capacidade, frieza, despojamento, desligação. Porque, admito, eu sou incapaz. Mas lá está, eu dou-me bem em funerais. A calma do corpo inerte nos velórios, sossega-me porque sei que a alma já não sofre tanto, para onde quer que tenha ido. E atenção que este não é dos piores mundos, este o dos ‘vivos’. Ao morto apenas espera a paz eterna, sem consciência da mesma, nós é que temos de pairar por cá, até chegar a nossa vez, e morrermos de desespero, porque tudo aquilo em que acreditávamos, serviu, mas era totalmente falso. Não há escolha senão viver na mentira, e saber a verdade ao morrer. O defunto suicidara-se, portanto estava fodido, para os lados de Deus, que não tolera os conas que não aguentam. Então o Criador dá-te vida, e tu cospes fora, seu cabrão? Porque faz dóidói, seu cobarde? Segundo se cochichava na cercania do velório, o tipo comprara duas embalagens de comprimidos para dormir, que misturara na cerveja, com que andava a matar-se do covid a esta parte. Eu sei o que é isso, a vida a consumi-lo, como aranha que prende a presa, e vomita para dentro da mesma um ácido que a dissolve, até não sobrar mais nada senão a casca de uma anterior existência. Mais ou menos todos sabemos isso, nos velórios. Se o gajo ou gaja que se mataram, passaram horas a avaliar a sua vida, agarrados a uma lógica de avaliação da qual não se conseguem libertar. E de como essa lógica pode matar, sendo nossa dona. Geralmente, um amor qualquer, onde o indivíduo desejado, nos largou, nos tratou mal, e se ausentou, como se fôssemos pedaços de merda que se enxota com o pé, nas caminhadas que damos nos jardins. É uma lógica um tanto ou quanto fundamentalista, essa do aquele ou aquela, ou ninguém. Ou será que é outra coisa, que é a incapacidade de perceber, como é que alguém que amámos tanto, foi tão estúpid@ connosco? Como, no decurso monótono de cada vida, os lábios que nos beijaram, as mãos que nos acariciaram, as palavras que nos elevaram e prometeram imortalidade, nos dizem coisas más e feias, nos golpeiam e roubam, nos ferem e menorizam…quando tudo acaba e já nenhum interesse têm em nós. Sim, parece que é motivo de morte, este do lidar com a natureza infernal do amor quando acaba num dos lados. Ou melhor, do não saber lidar com a maldade, de quem nunca esperaríamos vir a estocada final. Especialmente quando o outro nos perdeu o respeito, saiba-se lá porquê, e nos trata com ressentimento, apenas porque não consegue encontrar na sua massa córnea motivos pelos quais nos continuar a ter apreço mínimo. O amante que rejeita, culpa o rejeitado pelo amor que já não consegue sentir. Se isto não é uma natureza infernal, não sei o que seja. O que magoa, não é o direito divino de o outro seguir a sua vida sem nós, ou de lhe acabar o amor ou utilidade percebida em nós. Não, o que magoa mesmo a sério, é a forma como sai propositadamente do seu caminho, para nos infligir dano. Como alguém que deita metade de uma sandes para o chão, mas se dá ao trabalho de a apanhar, escarrar para ela e voltar a deitar fora, desnecessariamente. Não bastou a saciedade e o desperdício, há que vingar, inutilizar de uma qualquer forma. O amor transformado em ódio, pois que outra coisa não é o desdém senão um ódio no purgatório, para não admitir que ainda se ama quem se sente já não conseguir amar? Ninguém tenta magoar, o outro por quem já nada se sente. Não, as putas, quando rejeitam, ainda nos amam. E a sua velhaquice, nada mais é, que a expressão de um amor que se extingue, a golpes de vontade, por o indivíduo saber que já não respeita ou pode amar, o rejeitado. Por isso tanto gajo cai no erro compreensível, de reverter a rejeição, sabendo em algum nível de consciência que há amor ainda no olhar de desprezo. A natureza mais alta das putas, talvez continue a amar pela eternidade fora, mas o seu corpo, a sua estupidez, levam a melhor de si, a temporalidade (ó puta não percas tempo com este gajo que não interessa ao menino Jesus) exerce o seu poder, e elas sentem no corpo que há que largar o lastro, outros melhores piscam olhos pelas esquinas. É o contraste de tratamento de quem amamos, é o contraste entre o período de enamoramento e de ruptura, que nos dissolve por dentro como vómito de aranha em mosca mumificada. Apanhados nas teias vezes suficientes, tornamo-nos com o tempo, de facto cápsulas ocas com a forma de alguém que fomos antes. Sem interior que nos sustente, é quando a vida nos esmaga. Engraçado como nos funerais, há sempre uma gradação no pesar nos rostos, aqueles que prestam uma última homenagem com a sua presença, em grupos de 2 ou 3, ou 4, onde eventualmente o pesar é amenizado pela companhia mútua, as carpideiras que gravitam em torno do familiar mais pesaroso, os solitários, que tomam a homenagem como assunto entre si e o morto, os equilibrados, que têm tristeza no rosto, mas aceitam bem e ostensivamente, que a morte faz parte da vida. Caberá aos familiares, dividir os seus livros, limpar a sua cama imunda de papel higiénico seco e amarelecido com ejaculações múltiplas, dar baixa do seguro do carro, cancelar a subscrição da colecção ‘Cem anos de fado’. A homenagem que prestamos ao morto, não é a ele, mas à sua memória em nós, tal como o contraste entre as ‘putas’ e as amadas, mais não é que o resquício de um amor incondicional que sentimos outrora. Lá está, se fôssemos indiferentes, não falaríamos nisso. Saio do recinto e vou ver por uma última vez, algumas por quem este meu choque amaricado, me causa mais estranheza. Aquela que dava pontapés na atmosfera, sob um robe rosa, como se fosse um sinal de maluqueira, daquela que ela concebia como agradável e inesquecível para os homens. De como me chupava a pila de olhos fechados ou quando os abria, falava com ela, como se fosse uma amiga a quem se contam segredos. Mas de como a desviava como se a mesma tivesse peçonha, na hora de me vir, coisa que nunca acontecia por mais punhetas que me batesse, ou tentasse bater. «-Mas olha, e tu não me fazes minetes?» E eu respondia, «-Mas que caralho de insistência é essa, eu porventura peço-te para me chupares a pila?» Aquela merda soava-me a algo relacionado com poder e ascendente sobre mim. Não uma adesão lúbrica ao descontrolo sensual, uma tesão por mim…não. Soava mais a um chupa-me a cona que gosto de ser chupada, seja por ti, seja por outro qualquer. Ou um, se não me chupas a conaça, é porque não gostas de mim. O seu esforço para parecer respeitável aos meus olhos ia além do seu interesse na minha opinião dela. Era uma bula que exprimia a forma como queria ser tratada por mim, com a reverência prestada a um cardeal, de forma a reforçar a fantasia que tinha de si mesma. Eu tratando-a da forma x, confirmava a sua crença x. Pairando em torno dela, eu perguntava-me em que é que ela se achava superior, ou melhor que eu. Não era pessoa para passar um dia a foder, e a comer pizza e ouvir música dos anos 80, nas pausas. Eu era uma peça do seu puzzle, um adorno na sua vida. Adiante, um pouco mais a norte, visito outra, que se achava muito sofisticada devido às roupas de marca, devido a ter um ‘bom’ carro, devido a cumprir todos aqueles requisitos de sucesso que observava nas pobres de espírito iguais a ela, que a rodeavam no escritório de uma fabriqueta qualquer. Como se essa merda valesse alguma coisa no sítio para onde todos vamos. De como fazia recolha selectiva do lixo, apesar dos quilómetros gastos em gasóleo…afinal as pessoas têm de viver, em verniz de unhas, em cremes experimentados em legiões de animais inocentes. Os desejos de aumentar as mamas e sentir-se desejada por mais gente, de ácidos para eliminar manchas na pele, por vouchers de ginásios que prometem amenizar a decadência na firmeza da sua carne desperdiçada. Ocasionalmente vejo-a fugir com o rabo à seringa com a sua consciência, ela sabe – todas sabem – o quão puta foi comigo. Eh, eu não sou um anjo, mas faço ponto de honra não dar um motivo para que justifiquem de alguma forma, a canalhice que virão a fazer. Arrisco-me a passar por sonso, mas é só porque já sei o que a casa gasta. Ah, eu encornei-o porque já não falávamos e eu jogava Candy Crush e ele lia o site de «A Bola». Não, encornaste porque és uma puta. O resto são histórias que contas para pareceres bem. Das vezes que passei fome em casa dela onde morava com a mãe, porque a mãe sentia que não tinha de fazer jantar para mim, pois não ia alimentar nenhum marmanjão. Esta pequena burguesia lisboeta, que perdeu quase tudo no 25 de Abril, excepto a sua lógica mimada e filha da puta. A minha proletária mãe, nunca deixara a filha passar fome em minha casa. A filha, não habituada a ser tratada desinteressadamente, ia dizendo que era uma forma da minha mãe lhe ‘dar graxa’, por namorar comigo. A lógica do arrependimento não é para todos. O maior filho da puta, não se sente tal, se o seu compromisso ideológico lhe branquear todos os comportamentos, de igual forma que eu, o sensor censor, analiso quase tudo com o rigor de um deus tirânico. E afinal somos apenas humanos…não é? Ou então, aqueloutra que x, y, z… Percorrer os natais passados, pairando neles, só me fazia dissolver cada vez mais por dentro. Se calhar esta gente deficiente, tem razão, as coisas são para esquecer, e para se fingir sempre um começar de novo. Tenho de regressar, estão quase a fechar o caixão, e adoro a sensação dissolvente, da cal que irão lançar no meu rosto. 'The Corpse of Anna Fritz' - 2015 -aContraluz Films S.L., Benecé Produccions S.L., Cine de Garage, Corte y Confección de películas, Playtime Movies, Silendum Films - all rights reserved - fair use policy
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