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Lamber a morte de mim

2/6/2022

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O frio sabor do metal, um pouco amargo para o céu da minha boca, era a única ligação entre mim e a certeza de uma ligação entre o momento presente e a impossibilidade de estar a sonhar. Se puxasse do gatilho, deixaria de existir.


Pensamento caro. Será que é assim tão fácil? Escapo-me assim com tanta facilidade?


Espreito para baixo e vejo as letras ‘Desert Eagle’, e aspiro pela mão de Deus libertadora por via do calibre .357 e o cheiro a carne queimada.


Começa-me a doer o maxilar, e sai uma lágrima, por nem na morte me conseguir respeitar por levar algo a termo. Pergunto a mim mesmo, que tenho eu que me prenda aqui, a ‘isto’?


Nada.


Nem mesmo a ideia de provocar tristeza e desgosto aos meus familiares.
Afinal, para o suicida, a tristeza dos que o amam, dura só até ao funeral. Não sabe que perdura até ao fim da vida de cada um dos que conheceu.
 

É assim que vejo ou tento catalogar as pessoas que conheci ao longo da vida. A partir do que conheço delas, imaginar a sua postura perante a minha morte. Os piores são os que acham que a coisa acaba e acabou.
Chamo-lhes os ‘engenheiros existenciais’, pois concebem a vida e a vida psicológica como uma mera troca energética e alterações de estado.


Abraçam os filhos e os pais, e os irmãos, com ligações emocionais fortes, mas negam a todos os outros o insondável mistério das profundezas destes macacos de carbono.


Traduzido por vernáculo ‘pimenta no cu dos outros para mim é refresco’.
A vida só é problemática na narrativa acerca dos outros, que apenas serve como confirmação do seu próprio estado de superioridade em relação aos demais.


 Fechando a boca e mordendo a atmosfera, percebo que o cabrão do cano da arma comprada na dark web, é grande para caralho.
Algures no canto da sala, reflectida num espelho, uma cara familiar, a minha, pergunta-me como é que cheguei a este ponto.
Um pouco mais gorda e bolachuda, daquilo que lembrava das enormes promessas de juventude, onde censurava alguma vez a ideia de pôr termo à minha vida.


Mas filósofo como sou, que é essa merda de pôr termo, e ‘minha vida’.
 


Está certo, ela largou-me, fez um upgrade, arranjou um com mais dinheiro e levou os nossos filhos com ela.
Onde é que isso justifica que eu me mate?


Penso que é só a desilusão de o amor falir, ao mesmo tempo que a nossa ilusão naquela pessoa.
A puta ainda me tentou convencer que a culpa era minha. Olha, vais com o caralho, porque não regaste as plantas. Sneaky puta com gaslighting de que nem se apercebe.


Já tardiamente percebi que se estava a convencer a ela mesma pelos motivos que eu nunca lhe dera para a ruptura.
Com um ar senatorial, como quem toma uma decisão de estado, como se oportunidade que a vida lhe dera, mais que um caminho ou escolha, a fizessem rica entretanto.


Onde não existem, a estrutura de símio força, como ratazana pela carne de condenado, uma saída, ficcionada a cada dentada até à luz da liberdade. Pelos entrefolhos do amor passado, esventrado pelo egoísmo mais frio e cruel que o cano desta pistola.
Como não tinha pretextos, inventou-os, que eu lhe asfixiava a vida, que não a entretinha como centro de massa do sistema solar que ela achava ser. O facto de ter passado os últimos anos a divorciar-se de mim, não era responsabilidade minha. De ter alterado os critérios de avaliação. De não ter analisado as origens dessa mesma alteração.


Tem uma cona e por isso acha que os astros lhe devem homenagem e o universo, especiais favores. Desculpa se a palavra ‘cona’ te ofende. Estou prestes a matar-me, escrevo aqui no memorando, para evitar ofender a tua sensibilidade em ocasiões futuras.
Ai João, odeias as mulheres. Como se o ódio fosse o oposto do amor. Creio que a indiferença é o oposto de amar, e por isso, dizer que odeio, apenas significa que amo de uma forma cá minha.


Mas depois se digo que odeio, e faço o favor, dizes-me, se as amas, amas como são e não te queixas, se te queixas é porque não amas como são. E se calhar há razão nisto. Não as odiando, odeio a minha visão romântica delas. Mas nem posso falar em ‘elas’ pois cada indivíduo é um indivíduo, com a constante de ter vulva. E os mesmos padrões de comportamento. Mas que sei eu? Sou apenas um traumatizado de guerra incapaz de juízo objectivo porque alguém me magoou e agora destilo ódio por não obter o prémio do universo, a santa conaça.


Para variar, não foi a falha ética da puta que me fodeu. Eu já sabia o que o ‘amor’ significava.
 
As pessoas só mostram quem realmente são, quando já não têm interesse em ti. Aí, já não precisam fingir, ou esconder quem são. Mesmo que à vista de todos. Mesmo quem se esconde à vista…tornando o seu feitio ou carácter, de acordo com a expressão de si que pretende esconder.
 
Pousei o revólver no boudoir do meu descontentamento.


Dediquei-me a analisar o que se passara, de acordo com o meu entendimento e não de acordo com a guerra psicológica que a minha mulher me fizera antes de me trocar por outro.


E de acordo com uma fria lógica não podia culpar o outro, ela.


Sim, lembrei-me de ir ter com o gajo, que perturbara o lago de águas paradas da minha infelicidade. Dava-lhe um enxerto de porrada, e raspava-lhe o rosto no alcatrão até só ficar a madrepérola do crânio. Provocaria uma tragédia na família dele e amigos, gente que nada tem a ver com o meu infortúnio. Ia preso, e ficaria privado da liberdade de morder o cano de um revólver. Teria de me enforcar com um lençol, bem mais doloroso, além de que a morte ou desfiguração da cara de outro de nada me adiantaria, pois ele nada fizera de mais, a não ser fazer um ping na armadura e descobrir que obteria mais um troféu para pendurar na parede. Fez o jogo dele, não foi nada pessoal. Quem me traiu foi ela, ela é que tinha um contrato comigo, não ele. Mas espera, de onde vem esta energia para tanto ódio?


Lembrei-me do esforço em desempenhar uma personagem para os pais dela e sociedade em geral.
Para mim. Para os outros, para a pantomina.


Nos casamentos e baptizados, como o homem responsável e de quem se pode depender.
Quando só me apetecia juntar aos solteiros e beber até perder noção de mim. Fingia que não, que era superior.
Afinal era o gajo que tinha uma vulva no seguimento do braço.


E a cona é o prémio deste mundo.
Valida-me como pessoa e como projecto de vida.


Agora que o projecto de vida me trocou por outro, descubro não só que fiquei vazio com um saco de plástico ao vento, como que andei a desempenhar um papel longe do real. Que me menti para aplacar a insegurança.
E é isso que não me perdoo.


O passar por outro e olhar de cima para baixo porque uma gaja me dava o braço, validando a amabilidade que só não granjeava obter.
A cona é um objecto de prestígio.
E eu o meu maior traidor.


Desempenhei um papel que tinha por base a crença de que pouco mais valho que um qualquer bicho esborrachado na estrada matinal.
Que não sou suficiente como sou, que é apanágio do ser homem, esmerar-se pela aprovação do feminino.
Vomitei para os pés, desviando a tempo a pistola.
A tipa, a mãe dos meus filhos, nenhuma culpa tem do ocorrido. Esta é uma ideia de difícil ingestão.
Perco a indignação que alivia a dor da rejeição.


Afinal, não sou vítima.


Afinal sou o filho da puta que me faltou ao respeito, sim sou o responsável pela forma como me trataram.
Mas que culpa tenho eu de ter nascido assim?


Consigo ser diferente? Quero, sequer, ser diferente?
Todas as charadas, todos os fingimentos, todo o esforço que gira em torno de se ‘ter’ uma mulher, vale no final, o preço pago? De nos perdermos a nós próprios?


 
De onde vem o ódio? Da minha estupidez na insistência em crenças erradas?

Da falha em controlar o indivíduo à minha frente, de forma a que eu não me sinta magoado?

Dos períodos em que não consigo satisfazer os meus desejos sexuais, de forma satisfatória, por mim?

Pertenço à falange de gente amaldiçoada com o desejo de amor e satisfação por via de um tirânico e pétreo outro, que goza connosco acerca do seu suposto carácter empático, nunca aplicável a nós?


Encostados a paredes frias, arredados dos sorrisos do mundo, aprendemos a lidar com a ideia de que nascemos como erro neste mundo, e que há que fazer o melhor com as cartas que nos deram no baralho.


Fingir como se ninguém soubesse. O ónus da derrota é duplo, por perdermos e por nem sabermos jogar.
Toda a minha personalidade passada, construída todas as vezes nas minhas rejeições, se esboroa com areia pela palma de uma mão, as crenças que me conferiam segurança, de afastar o bicho papão que é a crença de nada valer, de ser um erro da vida que teima em não desaparecer, voltam a cada vez que me tratam como um não humano, cada vez que me queimam na fogueira para fins de aquecimento próprio.


Mas não sou inocente. Também eu julguei os outros como menores, por não conseguirem engatar gajas. Aliás, mesmo no topo do mundo, olhamos para cima, para o homem que saca as mulheres que quer. A cona é objecto de sucesso.
A mulher á volta é senão a deusa que afaga a nossa, cabeça, e sussurra que sim, não somos erro nenhum, existe um programa metafísico do qual fazemos parte, a ilusão de superar o esquecimento é adiada se depositarmos código genético das gónadas de outrem.
E depois percebo que sou mais humano, desperto, digno e eu, nestes momentos de ruptura.
Os contentes na vida, vivem na mesma ilusão que eu vivia. Que tirando a dor da ausência de quem amamos, a rejeição é a bênção que nos liga à realidade.

​
Um pouco como dizia o velho Mestre Eckhart, os demónios são apenas anjos que te libertam da vida.
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