O Ivan, é um bom escritor brasileiro, que me contactou por email após se tornar leitor assíduo do meu blog.
Achou graça ao que por lá leu e achou que podia falar com a editora dele para me publicar por terras de Vera Cruz. Por mim. Embora ache que a minha estrada para escrever melhor seja longa e que neste momento esteja sem gasóleo parado na berma, qsalixe, bora siga a Marinha. A troca de emails coincidiu com uma sessão de autógrafos que teve de dar no Chiado, e convidou-me para lhe pagar o jantar quando chegasse ao aeroporto. Lá fui eu, na desconfiança de que pudesse ser um gajo que gosta de gajos e usar a análise do que escrevo para arranjar mais uma aventura horizontal, o que me irritaria nem tanto por ter de dizer que não jogo no clube das bifanas, mas mais por levar a sério – talvez demais – o trabalho e a análise literária. Hemingway como farol, com uns extremos que nem consigo chorar, de integridade e de intensidade no narrado, a que Ivan contrapunha que todo o acto de amor, e a escrita é um acto de amor, implica ilusão, e portanto a impressão do gringo que tanto me impressiona é pouco mais que uma idiossincrasia de carácter. Que o meu é diferente. A sua opinião fez-me revisitar os textos desde 2006, quando comecei a escrever para que Susana me lesse, e acabei por a levar para a cama, mas ganharam vida por si próprios, tornando-se na caldeira onde largo o carvão das aventuras e flirts, para compreensão própria e não para que me leiam. Se bem que se me trouxer mais cueca, a máquina alimenta-se por si própria, e raios, umas palmadas nas costas nunca fizeram mal a ninguém. Aparentemente não. Já ébrios saindo do aeroporto da Portela, ele me perguntou com aquele tom de brasileiro dominicano, que queria ver mulheres bonitas de Lisboa. Tinha dado jeito o Elefante Branco, mas algum inapto fechou-o. Levei-o ao Maxim’s, um dos poucos cantos lisboetas que ainda me faz tirar o rabo de casa à noite, e cujo gerente foi meu colega de curso, e aprecia bastante as merdas que vou rabuscando em papel. Tenho lá uma garrafinha de malte, guardadinha, com o meu nome, para ocasiões especiais. «-Conheces este gajo? Este gajo é um bom escritor brasileiro, o tal que falámos, que estranhamente gosta mais de Camus que de Sartre?!» O meu colega, reconhecendo-o, sentou-nos aos dois na mesa com melhor vista, debatemos um pouco de literatura e meia hora depois estávamos pior do que havíamos entrado. Raramente uma bebedeira me traz para baixo, mas o observar o meu casaco enquanto os outros dois entretidos a partir pedra sobre o absurdo existencial e a inexistência de algo além da própria consciência, e beber em um gole o conteúdo do copo, pausou-me depressivamente. Brincando com o cubo de gelo preso no topo da minha língua, apanhando palavra aqui e ali para alimentar o meu trem de raciocínio, olhando o cabedal que outrora fora um indivíduo bovino, contrastado com a minha cadela e gato, que por mera circunstância apenas recebem comida e afagos ad nauseam, e um pobre búfalo qualquer morreu sobre crueldade indescritível, sendo desmantelado como um monte de merda inerte e sem significado. Como se pode anular assim uma entidade, uma identidade, uma equação de tempo e espaço que nunca mais se repetirá neste mundo nem que o Eterno-Retorno se foda todo. Por isso não gosto de sair comigo às vezes. Eu sei que se a nossa moral nos deixa deprimidos então é a moral incorrecta, já sei, já sei. Mas o veneno está na minha alma, pendo sempre para demasiada lucidez, e esta lucidez não é bonita. Afagando o cabedal preto, gasto, fui inundado de tristeza profunda e fiz algo que muito raramente faço em público, chorei. Não aquele choro convulsivo. Não. Um choro resignado em que só as lágrimas escorrem sem controlo, sem som, sem caretas de dor. Só percebi que me olhavam quando as palavras deixaram de fluir. Quatro olhos incomodados e perplexos olhando para mim, como se eu estivesse à beira de algum colapso. Aquele olhar que os caçadores-recolectores de outros tempos faziam olhando um noviço mijando-se pelas pernas abaixo à vista de um mamute. «-Que se passa?» Para disfarçar inventei uma desculpa, dizendo «-Acho que me tornei incapaz de amar.» Pegou. Começaram os dois a falar sobre o tema, o que eu havia dito era credível e encaixava-se bem no que estavam a discutir antes. Contente pelo foco de atenção auspiciando inadequação, se ter desviado de mim, sequei as lágrimas guardando-as para uma bebedeira futura em casa, no anonimato silencioso do meu próprio quarto. A cabeça inclinada para trás que sempre se desequilibra quando estamos com malte a mais, fez-me reparar num vestido azul no outro lado da sala. Uma mesa com umas miúdas, bem vestidas e com sorrisos tão virgens como as praias do Brasil aos presuntos europeus de Cabral, verdadeiramente apaixonantes por emanarem uma crença na vida e um optimismo que alguma experiência de vida retira. Ri-me por lembrar que as ditas praias não eram virgens de pés dos índios, e imaginei uma cena de suruba com miúdas e índios, cuja piada duvidável só fazia sentido no meu cérebro inebriado. «-Porque dizes isso?» Voltaram-se de novo para mim. Epá, porque ou percebes ou amas, não podes fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Sob determinado ponto de vista, o excesso de informação dá-te a razão que anteriormente deixavas para a acção dos deuses. Depois de perceberes como funciona o macaco, deixas de crer na Afrodite. Falo com uma gaja e vejo-lhe a linguagem corporal identifico-lhe os maneirismos retóricos que visam manter-me na perseguição de forma a captar valor, percebo quando me testa para saber qual o meu estado mental em relação à abundância de parceiras e que falho o teste da forma mais ilógica, exprimindo que ela é a única a que a minha atenção se dedica, esse tipo de merdas. Consigo prever em 2 ou 3 fases da interacção, para onde a mesma se encaminha, e consigo até nalguns caso decidir e operar para onde será o destino. No passado era inebriado por um reino de significados e bruma, hoje vejo biologia evolutiva em todo o lado. Sinto falta da idiotice auto induzida que é acreditar na ficção amorosa e conferindo assim significado à minha interacção com a minha Némesis, a gaja. «-Percebo o que você diz. Mas penso que já devia ter chegado ao ponto de perceber que o ‘amor’ é uma cenoura que homens sem amo inventaram e inventam para fingir propósito e fugir ao sem sentido.» Pois, mas eu sei, sou é teimoso. Estou parado no meio da estrada, a função do escritor é lidar com estes problemas sem solução e forjar uma saída que tresande beleza. Não vale a pena escrever um livro expondo que todos nos mentimos a nós próprios para podermos viver. «-Já tens esse problema desde a faculdade. Sempre achei que fazias como o Quixote de Cervantes, olhavas para uma taberneira e escrevias para ela como se fosse princesa, transmutavas com o teu olhar, chumbo em ouro.» E o pior é que eu sei. Como posso clamar pela verdade se não consigo viver com ela? Alguém se aproxima da mesa. De vestido azul. «-Desculpe, você não é aquele escritor brasileiro que publicou um livro chamado ‘Dos mil rios desta terra’?» Rindo de orelha a orelha, Ivan respondeu afirmativamente. 3 colegas de Línguas e Literaturas Modernas, haviam saído à noite, e não pude deixar de reparar que vinham vestidas de azul, vermelho e verde. Fez-me lembrar RGB e o antigo Spectrum. Ri-me. De novo, com a minha palermice. A de azul sentou-se ao meu lado. Chama-se Diana. E disse que me achou graça, que ao olhar para ela a minha cabeça ondulava como uma trirreme. «-Diana, como podes constatar pela minha voz arrastada, não estou apto para conduzir.» Riu-se sonoramente. Muito seriamente disse-lhe «-Era capaz de te ouvir rir a noite toda.» Uma semana depois Ivan liga-me de São Paulo. «-Agora sei o que sofrem os agentes. Por causa da situação do Covid, ninguém está a publicar nada.» «-Caga para isso. Quando for aí logo vemos isso.»
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