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Lolita ao entardecer

6/5/2024

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Fotografia
​O dia esporra-se para longe, sedado pelas águas em que o Sol cadavérico se despede das pessoas e das coisas, sem um ‘até mais’ que não seja o mudo retirar-se para o seu ocaso.
Revolvo a beata morta entre os lábios, mordendo a morte esponjosa com sabor a alcatrão, e olho precisamente para essas águas onde se espelha o Céu.
Tal como personagem literária, da qual difiro, percebo que houve em mim um arco de desenvolvimento de carácter. E que em parte, parte em mim, desejaria não ter perdido a ingenuidade que desejei perder de início.
Tal como tu agora lês, e preferirias ler uma história de amor feliz, e não os redondos vocábulos de constatação do que todos sabem, mas gostariam de não saber. Sobre a transitoriedade da vida, da artificialidade das relações, das formas como nos fodemos psicologicamente uns aos outros.
Apesar do Sol estar a morrer, ainda me queima aquela zona do escalpe que os abades rapavam em sinal de humildade para com o Criador.
O Mercedes 230D descapotável, com estofos de cabedal e sem encostos de cabeça, bom para me estampar contra algo e desfazer a massa encefálica contra as paredes do meu próprio crânio, ou do volante massivo revestido com pele velha de animais mortos noutra era. Pega sempre à primeira e quando o comprei, pensei que ia fazer as delícias das gajas da Linha de Cascais, onde passei a caçar a vulva narcótica.
Imbuído de bom espírito, evito puxar de outro cigarro, e agarro uns testes que tenho para corrigir, e maldigo a minha preguiça em fazer testes por computador que ficam logo avaliados com respostas à americana, e que os miúdos e miúdas esquecem 2 dias depois.
Saco de outro cigarro e digo profanidades, que esta gaja chega sempre atrasada.
Mas lembro-me que tal deriva apenas de estar morto por a ver de novo, e não de me deixar de facto, várias vezes à espera.
O vento e som das crianças a brincar ao fundo, e o bote do Fonseca, com alguns mergulhadores que saem para um mergulho nocturno no Cabo da Roca, presumo, relembram-me a minha pequenez, ó puta que tão longe vais tu, e relembram-me de uma altura em que eu não era tão amargo e gostava mesmo de andar por cá.
Como os velhos que usam a comida para se prenderem à vida, eu persigo como hamster em roda eterna, algo que apenas depende de mim, mas que julgo adiar. O apaixonar-me, isto é, o conseguir acreditar em amanhãs cor-de-rosa , com a boca dela colada à minha quando acordamos de manhã e pela janela nos espreita o mar.
Percebo que se continuar com as contas de merceeiro e com a realidade da natureza das relações entre homens e mulheres, obtenho o que sempre quis, a verdade em vez da felicidade.
Mas foda-se, custa tanto. E eu não sou gajo de sofrer com a boca fechada.
Ela é uma jovem professora, que se pegou comigo quando gozei com a sua ingenuidade. Ela acredita.
Acredita na empatia, na ilusão de que as suas acções contribuem para um mundo melhor, que é uma bonita ideia, ainda que ingénua. Queria fazer um sarau pela diversidade, ali naquela escola de gente rica, e aqui o gasto e amargo eu, movido a troncos velhos de marxismo dentro da minha fornaça, fiz um esgar de gozo. Ela confrontou-me se eu não acreditava ser um tema pertinente e dos nossos dias, ao que eu retorqui que a Humanidade é a maior azelha possível. Ela e os colegas ficaram a olhar para mim enquanto me levantava da reunião, pensando que eu era atrasado mental, porque o que dissera nenhum sentido fizera. Foi quando agarrei a porta e me virei para trás, que entrou a punch line, «-Geração após geração tentamos sempre fazer o melhor, e pasme-se, estamos à beira de uma bomba nuclear e no meio de um surto de pedofilia.»
E fechei-a com força.
Fotografia
​Ao sair pelo portão da escola, farto de tanto wokismo e gente que nem chega a ser uma cópia do Flanders dos Simpson’s (que esse era bom por convicção), e ia repetindo para mim que todos querem ficar bem na fotografia a la minuta da ingenuidade, que não o é. Se parecesse mal ser-se ingénuo, esta malta andava toda com livros de Maquiavel, com a capa à mostra.
Mas uma epifania pequeno burguesa ocorreu-me.
Quem me julgo eu, para andar aí a destruir a ilusão alheia? Acelerando a disseminação geral da amargura existencial?
Até que ponto, até, aquilo que para mim era óbvio, não era uma espécie de folia que me confundia as ideias, levando-me a acreditar ser detentor de uma verdade fatal extensível aos outros?
Foda-se.
Voltei para trás, abri a porta e pedi desculpas, pela minha resistência e desdizer de esforço alheio.
Ficaram ainda com expressões faciais mais parvas, porque se haviam esquecido de mim a partir do momento em que bati com a porta.
Eu era um mal necessário até ao fim de Agosto. Iriam para casa apaziguados com a sua avaliação de mim, como pessoa de trato difícil e feitio belicoso.
Que há gente assim no mundo e é de adulto, lidar.
Mas ela não.
Ela ficou atenta à minha cara, séria para além do normal.
E naquele momento senti o que julgo ser um canal aberto de afectação mútua entre nós, como que se as almas falassem numa frequência qualquer fora do espectro electromagnético.
Nos dias seguintes tudo como normal, excepto quando um dia na cantina, ela saiu do grupo de amigas e veio pedir outro café quando me viu ir ao balcão comprar uma barra de Mars.
Tinha 4 horas de seguida e não iria perder tempo a almoçar, de modo que um chocolate para não desfalecer.
Não me lembro do que disse, sei que ficámos parados sem nada dizer, olhando dentro dos olhos um do outro, algum tempo, até ela se desligar por não querer passar uma ideia heterodoxa de si mesma, para mim.
Percebi que a intrigava.
E disse a mim mesmo que não iria conspurcar o espontâneo do agora, com as minhas lucubrações acerca da forma como o mundo é.
Aos almoços, almoçávamos juntos e não fui eu que primeiro lhe tocou na mão, enconado pela diferença de idades entre nós.
Foi ela.
E quando me pegou na mão, e ficou lentamente a olhar para ela, maior que a dela, com cicatrizes, com os nós dos dedos inchados de pugilatos prévios, o abismo de mim, cresceu na sua mente.
Eu era algo de insondável e respeitável para ela. Um homem com experiência, e aparente capacidade física de a partir toda na cama.
Lamento, se o factor cama vem conspurcar o que se estava a revelar como algo anexo às narrativas românticas de romances vendáveis. Passo o pleonasmo.
Mas se julgas que o sexo não é uma forma de hierarquização, é porque não falas com miúdas actuais de 20 e poucos anos, que fariam corar os taberneiros de há 30.
Nas nossas conversas dissera-lhe que a minha altura preferida do dia era o entardecer mesmo antes do ocaso.
E disse-lhe que adorava um spot ao pé da cidadela, onde podia ver o local onde entravam e saíam caravelas, mesmo por cima do maior cemitério da Barra de Lisboa.
Combinámos.
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