Vejo morte a toda a minha volta.
Um gato ruivo levando no meio dos dentes uma pomba, salta para trás de um muro para em paz retirar a vida a outro ser. Entro na Nacional 10 e vejo ao longo do caminho para onde quer que vá, os restos mortais de não sei quantos animais obliterados pelo destino indo cada um à sua vida, neste caso à sua morte. Olho para o que calço, para os casacos de cabedal que visto, morte. Morte morte morte. E todos fingimos como se não soubéssemos. O verdadeiro acto de rebelião humana é a loucura. É como que um recibo de leitura de uma mensagem qualquer que o Cosmos envia ao indivíduo. Um visto na mente do sujeito que digere a mensagem. Não é possível ver, e de certo ponto de vista não enlouquecer, ou desatar a chorar como fatalista sentimentalista. As vezes que acariciei com a minha pele sensível o chicote da auto-flagelação, por achar que usava as mulheres para fugir das minhas tarefas ou da futilidade da existência. Quanta sabedoria fatal, intempestiva, há no fugir dos horrores de se estar vivo, e entretermo-nos com o que por via do instinto facilmente nos arrasta para dramas mais caseiros e de certa forma suportáveis? Que parte de mim me retira desta amarga realidade, amenizada por tons de esquecimento para que seja possível viver nela? A artificialidade é uma opção de um qualquer eu maior que eu próprio, em mim? Um eu que me observa guia e se diverte com a carrada de más decisões e paixões de alma que ciclicamente me visitam? As riscas de branco esgueiravam-se por debaixo do meu automóvel azul. Ia ter a Peniche ter com Beatriz. O interesse em fodê-la era quase nulo. Mas o ex namorado que a abandonara por rabo mais novo, achava que tinha direitos feudais sob tal território. Eu sei o que é a canalhice do abandono per se por causa de causas irrisórias sob um ponto de vista geral da vida. Porque o gajo é um calão, apesar de escrever 50 ou 60 páginas de texto por dia, mas ah…não traz o bacon para casa. O gajo não vai a lado nenhum, embora ela esteja enterrada na mesma função genérica de secretária técnica numa merda de empresa qualquer. É a profissão mais um lugar onde se esconde da vida, da exigência de descobrir o que a arrebata e por isso deixar-se matar. O gajo é um inadequado social, que não leva roupa nova para casamentos e baptizados, que não vê a necessidade de manter conversas que não passam de catadelas sociais, como os primatas que se catando, mordiscam carrapatos inexistentes só para provar ao catado a sua utilidade social. Então um gajo olha as estrelas e pensa nas variáveis e no que significa estar vivo, e esse é que é o inadequado? Ah, mas trata primeiro do corpo e depois o espírito se segue. Mas o trabalho mata-te o espírito diz ele. Há qualquer coisa de ti que morre no trabalho, especialmente quando é esse mesmo trabalho que te dá a comida. Nem todos podem ser poetas ou soldadores. Mas há qualquer coisa de nobre quando vens cá fora à noite, fumar o teu cigarro, e pensas sobre que raio tudo isto significa, mesmo que estejas preso num compromisso ontológico que não te permite muita manobra. Beatriz queria a minha pila redentora dentro dela, para redimir a rejeição, para vingar-se em parte, pois Miguel, não a larga, procurando acentuar o contraste entre vulvas de forma a sentir-se vivo e másculo. Dava a desculpa a ela de que tantos anos não são fáceis de apagar. E não são. Mas o que ele queria era variar, sorver dois corpos diferentes para não se embotar a novidade que se embota sempre que o sexo é rotineiro e garantido. Ela alimentava a ideia de que havia algo que podia ainda fazer para reverter o abandono, mostrar-se casta leal e compreensiva, na esperança de que o sacrifício moral pesasse mais na balança que um corpo com metade da idade do seu, pelo qual havia sido trocada. Eu seria um paliativo, uma distracção uma promessa de carro que ocuparia o lugar vago na garagem, sem qualquer modificação ou adaptação da casa. «-Tenho muitos amigos, João, se quiser tenho 20 ou 30, já.» Portanto a doação da sua vulva a mim, só poderia ser uma bênção, do meu ponto de vista, argumentava ela. As suas manipulações serôdias fizeram-me lembrar Célia. Daqui a uns 2 ou 3 anos, prevejo uma transmutação na ingenuidade saloia desta matrona. Nesse tempo vai aprender a tirar mais partido dos últimos cartuchos que o seu corpo ainda lhe permite. Então, o que agora parece cockluxe o escritor de jeans rasgados e discurso excêntrico, terá sido desqualificado ao ponto de desaparecer do radar da sua possível trupe de fornicação. Dando-me narigadas na púbis, olho pela janela do hotel e vejo o mar, e pergunto-me a mim mesmo que faço aqui, só para picar um gajo que nem conheço que acha que é dono da gaja que largou por outra? Que baixo desceu a minha vida, e quão bom é que esta miséria me força continuamente a olhar para o que tento não ver. Atrás de gajas para fugir ao horror de se estar vivo, e é pelas gajas que não consigo olhar para outra coisa. Quantos momentos de felicidade? As meias horas de tempo líquído em que afogo o mangalho num buraco molhado com um estranho em torno? Quantos momentos de realização genuína? Deixo-me distrair por este jogo que coloco como emboscada a mim mesmo. Habituada a anos de sexo baunilha, o que sabia de broches reduzia-se a joalharia de preços em conta. Finjo prazer, afago-lhe o cabelo e o ego. Deito-a na cama, beijo-lhe a mão. Penetro-a com o mesmo sabor retirado, que de uma bolacha de água e sal. Vem-se. Abraça-se a mim. Abraço-me a ela. Choro. Assusta-se. Pergunta o que foi. Respondo que sei o que é ter uma ferida cá dentro por causa das decisões injustas de outros. A mim faz-me ver o horror, talvez o reconheça no turbilhão da reencarnação e renasça sei lá, mais compatível com este mundo. Perdemo-nos num abraço seco, mas humano e honesto. Dorme, eu tenho trabalho amanhã. Cubro-a com o cobertor, faço-lhe festas no rosto e no cabelo. Desço as escadas a chorar. Lembro-me do mesmo vazio quando acabava de foder Rute e trazia o preservativo para colocar no contentor da rua e me perguntava se isto era um homem. Chegado à entrada do hotel, a luz reflectida na água por uma Lua enorme fez-me lembrar o Espírito de Deus no primeiro dia da Criação. Talvez esta merda da individuação seja um esquema que ainda não percebi, há que estudar mais, e submeter-me aos juízos de mais pobres de espírito, que querendo o meu bem, me fazem sentir mal por escolhas que não posso não tomar. «-Oh amigo.» Uma voz surge atrás de mim, volto-me e um tipo parado a uma distância de segurança. «-Sou o Miguel. O namorado da Beatriz.» «-Tás bom, como vai isso.» «-Venho aqui dizer-te que ou desapareces de cena, ou vais-te sanguineamente arrepender.» Comecei a rir-me. «-Amigo, nunca estive na cena. Mas já fiz a tua figura de palhaço.» Ele começa a avançar para mim, recuo estendo a mão e aviso «-Dude, fica aí se faz favor.» Não esperava que parasse, mas parou. «-Já estive nessa situação. Mas agora, lava-me a alma esta Lua reflectida na alma.» Virei costas e fui para o carro. Lisboa esperava por mim. Era dia. Pessoas faziam aquilo que chamam vida e que eu chamo morte. Distraem-se com a luz do Sol.
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