«-Pára! Estás a fazer-me cócegas!» O lençol branco de cetim é por mim puxado de forma a expor mais carne branca onde o roçar a minha cara com barba de 3 dias provoca o contorcionismo que me diverte a mim e desespera a ela. Que frescura entra na alma de um homem quando um riso jovial e um desabafo de contentamento com a existência sai da boca da amante que regozija por ali estar. Sim, homens e mulheres podem morrer precocemente por excesso de passado, quando temos mais tempo vivido que tempo por viver. Quando a legião de mortos queridos, começa a tornar-se considerável e do outro lado chama por nós. Não digas a ninguém, mas não é o teu carrinho de marca, a tua casa onde bebes chá quente nas noites frias com peúgas felpudas, ou a tua roupinha bem arrumada que assenta bem no teu corpo para impressionares outros com pele maquiada e dezenas de artefactos pendurados nas orelhas, mãos e pescoço – nada dessa parafernália de merdas é o que importa. Primata de carbono, o que importa é a rede de relações que desenvolvemos com os outros. A forma como lidas contigo e com aqueles com quem te cruzas. Podes ter falhas de carácter, mas tens de as enfrentar de frente. O que importa é a verdade, a congruência e a aderência a um conjunto de princípios. Não podes ser um cabeça de papoila que marra com os cornos no vento às quatro direcções, só porque lhe dá o vento. Tens de te determinar, porque determinar é uma expressão de quem és. Não tenhas medo de falhar. É o medo, que nos impede de desenvolver relações deste tipo. O medo de sermos rejeitados, desconsiderados. Mas também nós rejeitamos a vida. Aquela ou aquele que achávamos que ia estar connosco para sempre, decidiu ir-se embora, rejeitando-nos e rude golpe deixando no nosso amor próprio. Achamos que éramos perfeitos um para o outro e que pelo outro ter rejeitado a nossa pessoa, algo de errado fizemos. Algo de tão errado que vai contra o que era suposto ser. E então daí para a frente, passados a rejeitar a vida, como alguém que no tricot continua a tricotar a camisola, sabendo que deixou um buraco visível, bem no peito, para trás, sabendo que nunca ficará nada de jeito. Cicatrizado para a vida, tudo o que vem depois já não tem apelo para o espírito. O que importa é o intangível. Marras com os cornos numa parede, por causa de um cabrão ébrio que espetou o carro contra o teu e te fez bater num poste de electricidade que espalho massa encefálica pelo asfalto, ainda a espreitas antes de exalar o último suspiro e reconheces nos pequenos montículos as recordações dos beijos que deste na praia, num outro o rosto da tua mãe, ou um abraço do teu pai, num outro jazendo aos elementos as memórias da primeira vez que te deitaste num tufo de relva com os botins azuis e amarelos e olhando o céu choraste com o belo azul que sorria para ti lá do alto. Fazem-te um velório onde os teus entes queridos que sobram cá deste lado, dispostos num círculo onde o teu corpo encaixotado, está composto por um fato que te fica mal, e só o rosto parece normal, cozido às três pancadas pelos gajos da funerária que arranjaram o cadáver para não parecer tão desfigurado, e deixar que as pessoas depositassem um último beijo sem asco ou maior aflição, na pele fria que se vai decompondo. Como em ondas concêntricas, as relações que desenvolveste com as pessoas, são identificáveis no velório, as com quem eras mais próximo, hesitam em afastar-se muito dos restos mortais, as que te conheciam apenas, como figura que passava amiúde na rua dizendo os bons dias, não se sentem engatadas no mesmo registo emocional das que choram lá dentro, e vêm cá para fora fumar um cigarro e comentar os motivos da morte, após manifestarem o pesar aos mais inconsoláveis. Já nada te importando, apenas vês o tecto branco com uma ou outra teia de aranha, e enquanto estás na fila para passares a luz ao fundo do túnel, lamentas teres estado tão entregue à tua estreita compreensão da vida, que deixaste de ver os outros como igualmente prisioneiros de uma percepção menor. Lembras as merdas que fizestes aos outros e os crimes que cometeste contra ti. Recordas o ódio, a raiva e o choro continuado, por causa da incompreensão acerca das filha-de putices que achas que os outros te fizeram. Vem o Criador com a Sua mão pesada dar-te um estalo no focinho, de realidade. Tipo, olhá aí filho da puta, foi para isto que te dei o espírito? Para o subordinares ao ego e achares que tudo o que te fazem é mesquinho e pessoal? Achas que os outros também não são tapados, e imbecis e limitados, e a braços com os seus próprios desafios? Seu merdas, não vês que recebeste uma dádiva, um dom, um milagre, que jogaste à rua só porque as coisas não iam correndo como querias que corressem? Que fizeste ao sentido de humor que te dei, à infinita paciência e À força de conseguir estar de peito aberto a cada indivíduo novo, que te aparecendo não seria alvo de desconfiança por experiências anteriores? Antes de taparem o caixão ainda dás por ti a pensar que o teu ego, mesmo depois de morto te continua a querer proteger, alterando-te a percepção da realidade. Porra, estás morto e ele ainda traz tudo a ele para ser interpretado. Que raio interessa isso tudo agora. Não mais continua o jogo. Não mais cheirarás uma flor ou verás lúpulo crescendo na beira de uma estrada rural. Não mais serás escravo dos outros que te fizeram mal, nem néscio aos que te fizeram bem. Não mais darás poder de uns sobre ti, e desprezo de ti para outros. Os torrões de terra caem sob a madeira, ainda alguns gritos lancinantes de dor, dos que te vêem desaparecer de vez, perdendo a companhia do teu cadáver, a luz desaparece e recordas o círculo completo. Voltas ao saco de plástico preto de onde saíste quando nasceste. Apenas consciência, escutas manhã após manhã, o chilrear dos pássaros lá fora, os aviões que sobrevoam o ar em direcção à Portela, o barulho irritante das Famel dos bêbados que se dirigem ao mata bicho matinal de bagaço, que lhes permite superar a balança dos anos que ficaram para trás. Sabes que outros vivem a eternidade, dentro de caixões ao teu redor, o cemitério está cheio de gente.Mas ninguém fala uns com os outros, não conseguem. Morrem, que é a vida dos mortos na morte – tal como viver é a vida dos vivos na vida – sozinhos e em suplício. Não existe maior inferno que ter a consciência da vida fora de nós, mas não querer ou poder determiná-la através do amor e dos nossos cinco sentidos. Uma consciência de algo externo a si, condenada apenas a ser consciente de si própria através de um outro incognoscível que não ela própria. Dando em loucos, já só pedimos que a consciência pare, que Deus este que nos condena à eternidade com uns espasmos ocasionais de vida, para que saibamos o que deixamos para trás, que maldade profunda, limpa, eterna, esta. Nada, nem uma palavra, nem uma explicação, Deus não fala contigo, e nem chorar consegues, por não teres valorizado o que realmente contava, entretido por quaisquer das ilusões a que aderiste. O teu carrinho novo apodrece ao céu, para ser desmantelado num sucateiro, a tua casinha é vendida a outros que reeditam as sessões de foda que tinhas no sofá da sala com as tuas novas conquistas, como se tu nunca tivesses existido naquele espaço. Outro te substituiu no teu trabalho, e até à próxima festa de Natal da empresa, ninguém dará pela tua ausência. Apenas quem te amou, a tua família, aqueles a quem partiste o coração, os amigos que te abraçaram quando te viam chorar, apenas esses, se vão lembrar da tua cara, do teu rosto, do cheiro do teu pescoço quando davam um abraço. A esses agradecerás o amor, chamando-os a partir da cova. Serás mais um ou uma, a dar motivos a quem te amou, a não viver. Seduzes para os sete palmos de terra, para o inferno do esquecimento eterno, aqueles que te quiseram bem. Especialmente quem te agarrou nos cabelos enquanto se vinha, ou te virava de lado enquanto te penetrava, para te beijar as bochechas, sonhando que o momento não passasse. Quem ficou a olhar o telemóvel indagando que havia feito, para que tão facilmente tivesses esquecido, cagado e passado à frente, entretida com a tua vida, depois de teres cruzado a minha, descartando-me como fralda preenchida. Deitaste à noite convencida de que és uma boa pessoa, adulta, e que o ghosting foi a decisão adulta, que não, não foi reificação do outro, ele sabia o que estava a fazer. Achas mesmo que os beijos que ele, eu, te deu, foram fingimentos normais dos gajos que nos tentam convencer de amor para baixarmos as defesas. Esses cabrões são falsos e portanto é permitido fazer tudo a eles. Sentes que sou asqueroso apenas porque nas nossas conversas, não digo o mesmo que os teus amigos cocainómanos que reforçam as tuas crenças de provinciana, de morta-viva que quer ser surfista do seu tempo, sempre procurando a crista no meio de milhentos outros cadáveres flutuantes. Que sou demasiado complacente e pinga amor, porque procuro a ligação emocional de forma a não chegar a cadáver apenas com um carro novo apodrecendo ao Sol. Ou pensas que apenas procurava compromisso de forma a poder-te foder de forma regular sem que andes enrolada com outros, que é esse o acordo tácito das relações. A fronha da almofada faz-te comichão e viras-te para o outro lado. Os altos emocionais passados facilmente afogam a lembrança de mim, que cai para os corredores vazios da tua memória. Tapas a cova lá dentro, com as narrativas que constróis para ti que justificam o que fizeste. De há uns anos para cá, confesso, que evito mulheres com mais passado que futuro. Prefiro-as abaixo dos 28 anos, que aos 28 começam a ver ao espelho, os primeiros acenos da Morte, que oscilando os bracinhos no reflexo vai dizendo «-Ó sua puta, demoras muito?». Procuro nas mais novas, o que as matronas não me conseguem dar, testemunhos de vida. Vês, é que sem o viço da alegria de se estar vivo ou viva, estamos mortos. A partir do momento em que a vida se torna a sucessão de instantes em que apenas esperamos o que vem a seguir a ver se nos surpreende, somos consumidos por demasiado passado. Quando te contentas com alguém que não seria a tua primeira escolha, aninhas-te numa cova. Confesso que automaticamente me esforçava por abafar a vida dos outros, por incapacidade de gerar a minha própria. Mas depois de te conhecer percebi que eu é que estou vivo. Pois a capacidade de amar traz a capacidade de dar conteúdo emocional à vida. E a capacidade de amar não é mais que a capacidade de entrega além do excesso de passado que temos. Amar, que nada tem a ver com as mariquices dos romances de cordel, é o único acto intemporal, rebelião contra o Deus do Alfa e do Omega, que te recebe no final do túnel, exclamando ‘-Assim é que é meu puto!’ A partir dos 28 elas sabem que o Verão não dura para sempre. Que o tão bem que sabe a brisa de uma noite feliz, vai embotando a pele arrepiada. A partir daí apenas querem concretizar o seu plano, venha quem vier, e quanto mais avançam na vida, mais querem arranjar pretextos para esquecer a vida que não conseguiram ter e a que vêem nos outros. Nos dias de chuva, ouves os pingos de água sob o caixão, e a cansativa tarefa de rememorar todas as merdas que fizeste enquanto vivo, tem uma clareira de Sol: «-Epá, só me senti vivo quando amei quem me amou. A morte é-me familiar, porque amei algumas mortas que respiravam.» Fico contente pelas cócegas que ela tem. O vulgar adágio de que não temos idade para ter cócegas, como se a vida fosse embotando a derme. «-Queres que pare?», pergunto eu. «-E tu lá consegues?!», diz ela com mais um garoteado riso. «-Que queres fazer hoje? Eu quero ir contigo para um lugar que tenha Sol.» «-Eu quero ir contigo.» Bem respondido. Deus concorda.
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