I Noémia havia escolhido o mais branco vestido, com bainha 4 dedos acima do joelho, mostrando as bonitas pernas que tinha. Fomos ter com os meus amigos, à inauguração de um bar novo, na frente renovada na margem do Tejo, desobstruída de contentores, por causa da vinda do Papa em 2022. Lambrusco à descrição, a esplanada era gigante e com soalho que fazia lembrar o convés de um navio de madeira. Reticente, em sair com ela para qualquer lado, porque vez sim, vez não, havia sempre um drama, uma discussão, um stress, algo que eu disse, que não disse, que devia ter dito, que fiz, que não fiz, havia sempre algo que ela tirava da cartola por causa da sua necessidade de indignação, por mais que eu pensasse e cobrisse todos os ângulos, todas as possibilidades. Até não haver pinga de espontaneidade em mim, e pinga de respeito dela para comigo. Sete anos de casamento. Ela chegara aos trintas e picos, e decidiu que a vida pode de facto terminar, e que não conseguia competir com a Noémia 7 anos mais nova. Intuitivamente percebeu que tinha de sair do casino e deixar de jogar à sueca da pila, e fixar uma que possibilitasse igualdade de rendimento para alimentar a potencial prole. Tinha uns 3 ou 4 na manga, e escolheu-me a mim. Trabalho num escritório e desde cedo sou gerente, fechado na minha microvida laboral, conhecemo-nos num after hours na Expo. Já estava casado com ela há 3 anos quando percebi que ela é que me tinha habilmente engatado, contra a minha crença até aí. Pensava que a minha verve e audácia a haviam impressionado, mas o meu instinto dizia-me que era algo demasiado bem fingido por ela. Depois arrependia-me por pensar isso dela, que podia estar a ser sincera. Ao ouvi-la dar conselhos a amiga ao telefone, percebi a mestria da predadora, e a contraposição da minha ingenuidade. A descrição cirúrgica de como a amiga havia de proceder para engatar um colega de trabalho. Fiquei sentado de boca aberta a olhar para ela até que ela percebeu que estava a ser observada, mudando completamente de fisionomia e entoação, que foi percebida pela amiga do outro lado que pelo altifalante do telemóvel percebeu que eu estava presente e mudou de assunto, numa espécie e irmandade feminina onde eu era um acessório ou algo de externo, até com a minha própria mulher. Comecei a perceber que a sua escolha por mim se resumira ao meu vencimento e à minha capacidade de ser domado, e não à suposta personalidade que eu tinha. O amor que sempre fizemos foi transacionado, fazia parte do «sim» dito no casamento. Sem ele, o sexo, ela sabia que não me conseguia controlar muito bem. O ressentimento levaria a melhor de mim, e portanto às pinguinhas lá me ia dando o sexo validacional para que eu não deixasse de acreditar que num ponto futuro e muito por culpa do meu esforço, iríamos ser felizes no projecto a dois, onde era sempre eu que a abraçava à noite na cama e começava a beijar, perguntando-me se ela se viraria para mim abrindo as pernas e esperando que eu me aliviasse, ou se algum dia me olharia nos olhos como se me amasse a sério, e desejasse muito. II Sou daqueles gajos pacatos, normais acho eu, sem carisma memorável e que por isso me esforço aquele extra para sobressair de entre os restantes. Sigo as regras e acredito nelas, e dou um pouco mais, faço-as cumprir. Só queria ter família, como todos fazem. Ter uma vida calma, sem problemas, passando pelo mundo e pela vida, como turista de passeio entre duas massas de Nada intercaladas por uma existência. Desde que não consegui resistir a Noémia, a minha vida tem sido como a de tentilhão em gaiola sob foco de luz constante. Não paro de cantar e rolar a cantiga pensando que é dia ininterrupto, meio cego pelo branco do trapo que me cobre a gaiola e não me deixa distrair com nada lá fora. Um monte de penas cuja existência é existir para fazer passar o ar pelos pulmões transmutando-os em sonoros e estridentes cantos, até que me canse e deixe de inspirar. Um monte de humano cuja existência é trabalhar e chegar a casa e sepultar-me no matrimónio onde até ambas as urnas estão separadas. Eu sonhando na morte eterna, com a vida que podia ter sido. Noémia sonhando na morte eterna, com a vida que foi. Era suposto chegarmos a tempo. Chegámos tarde, e logo fomos brindados com cálices cheios. O Sol estava forte mas um toldo às riscas e a todo o comprimento do convés protegia-nos. Não sei o que foi. Eu julgo que foi um momento em que ela estava absorta a olhar para a festividade e deve ter recordado glórias passadas e a promessa de uma vida de excelência que o seu jovem corpo parecia garantir. Não sei, sei que estava de costas quando ouvi um grito da mulher que estava ao balcão, virada para o que estava nas nossas costas, a linha ferroviária, que rasga os subúrbios lisboetas em direcção ao Norte. Entre as duas vigas férreas estavam os pés descalços de Noémia que caminhava lentamente como que em bailado com os braços abertos em direcção ao comboio que fazia de Intercidades, Lisboa-Porto. Não tendo paragens naquela zona seguia a grande velocidade. A minha primeira reacção, estúpida, foi ver por onde descera ela. Por um carreiro entre a ravina, criado pelos pedreiros que haviam feito as obras de restauro que originaram o bar onde estávamos. Nesse carreiro rolaram carros de mão, com entulho bafiento, poeirento. Mais à frente começam aquelas pedras angulares, esbranquiçadas, onde em grandes orgias imóveis sustentam as férreas vigas paralelas por onde o monstro ruidoso desliza. A um quilómetro o maquinista vê Noémia e começa a apitar a buzina freneticamente. À velocidade que vai nunca conseguiria parar a tempo. Noémia avança, pé esticado ante pé esticado, como se dançasse o ‘Quebra-Nozes’, de braços abertos para receber a sua morte. Há uma tensão de calamidade no ar, é quando me apercebo da situação, desato aos gritos e mando-me ao carreiro, por onde escorrego rasgando-me todo num arame que estava saliente, uma verga puta de aço, que espreita pelo betão. Grito o nome dela, o som do pouca terra aproxima-se e o solo como que treme. Nota-se na sucessão de buzinadelas, o desespero do maquinista. Avisando-a para sair, a ela que dança de braços abertos para o aço inox móvel. Chispas saem debaixo da locomotiva, o maquinista trava a fundo, mas a inércia das composições traseiras faz apenas o metal comer metal. Um som oco, simples e ordeiro, termina com a tensão no ar. Os gritos vindos do bar, de pessoas que vomitam, choram, outras que viraram costas para não ver, choque e incredulidade dos que quiseram ver, curiosidade mórbida dos que não puderam não ver. III A composição cessa a marcha apenas 400 metros depois. 400 metros com restos mortais da mulher que eu amei. Rastejo de joelhos e olhos inchados de chorar até aos carris. No local do impacto, um olho fugitivo da órbita, está camuflado entre duas pedras ensanguentadas. Este troço aqui, sempre foi conhecido aqui na terra, como aquele que mais vezes era escolhido para suicídios. Quantos não ouvi eu, falar de quem se lançara contra o comboio?... Alguma vez me poderia passar pela cabeça que a minha esposa seguiria este caminho. Desatei a gritar com a voz que já não tinha, por ter gritado tanto e tão desesperadamente antes do som, do contacto entre carbono e ferro. Apetece-me arrancar todos os meus cabelos. Sinto no coração uma inundação de desespero e desesperança. Uma monção de morte asfixiando-me até ao âmago. Rastejo em direcção ao comboio, recusando-me a acreditar que o meu amor jaz espalhado nessa distância. Como não a vejo, nem acredito que os bocados de carne são dela. Entro em negação e afinal é tão surreal que não pode estar a acontecer, eventualmente acordarei. O pé esquerdo, e a tatuagem de uma roda de leme no peito do pé, é uma chapada de realidade, é o pé dela. Que beijei na primeira vez que fizemos amor, arrastando minha língua como catenária sob a bonita perna dela. Em direcção à vulva que me oferecera HPV, e onde beijei com luxúria aquela carne húmida, e salobra, algures agora sob pedras. Peguei o pé pela planta, assente na minha palma da mão e beijei-o, com lágrimas caindo em bica sob o pé, terminado acima do artelho com duas armas apontadas ao céu, os vestígios da tíbia e do perónio. O sangue quente encostado na minha fronte parecia fazer lembrar o coração dela que ainda batia. Uma promessa de a ver viva ainda de alguma forma. Mas o próprio vestígio mortal nas minhas mãos me lembrava que era uma ilusão como a do algures além do arco-íris. A partir da lua-de-mel percebi que cumpria militarmente os deveres de alguma tarefa que para si assumira. O amor começou primeiro a escassear, e depois a tornar-se um mero pro forma. Um contrato em que nem sempre abria as pernas, só quando eu me portava bem. E ai de mim que reclamasse, que ela faria o amor quando lhe apetecesse, não quando eu queria. E quando me via mais desanimado e prestes a recuperar a minha dignidade, envolvia-me num abraço prolongado de braços e pernas, e lá se esmerava mais um pouco para fingir que gostava realmente de mim, o suficiente para eu ficar na dúvida e sob o peso de uma dúvida acerca do meu próprio carácter, afinal que monstro sou eu, para exigir sexo da minha mulher sem ela lhe apetecer, mas eu quero sempre mais, devo portanto anular-me. Deus me livre pensar em mudar de mulher por causa de algo tão trivial como foder. Como sabia ela manter-me no anzol. As vezes que me dizia que não lhe apetecia por algo que eu dissera, ou que havia feito, e que lhe havia retirado a vontade. Como queres que eu queira fazer o amor contigo, não estou com disposição, não tenho interruptores. Quando queria mesmo castigar, dizia que tinha estado com uma louca vontade e que estava quase a foder-me até partir o estuque do tecto do vizinho de baixo, mas que eu havia feito algo, arrumado mal a escova de dentes, respondido torto a uma provocação propositada dela, que lhe havia tirado a vontade. Sabia que a culpa, era insuportável. Ou o pote de ouro no fim do arco-íris futuro, ou o pote de merda no fim do arco-íris passado na forma de uma merda qualquer que eu tinha feito ou não. Raramente me beijava na boca. Fechava os olhos e eu pensava que ela imaginava ou recordava os outros, aqueles que a marcaram na sua idade fértil mais impressionável. Eu lá me podia comparar ao Caló, ao Justino, ao Inocêncio, aos que a levavam a ter nos olhos o brilho de admiração, que a seduziam para a vida. Esses eram a sorte grande mas nunca se contentaram com ela. Eu o prémio de consolação, em que no grupo de amigas dela lhe dava posição de autoridade numa hierarquia ganha com a sujeição e domesticação dos cônjuges. Os bocós como eu estabeleciam hierarquia nas reuniões sociais de baptizados e festas de aniversário. Mas os que não se deixavam vergar estabeleciam admiração e desejo, expresso em olhares e reverências. Acho que quando se nasce um cona mole, se morre cona flácida e oca. Lascado até ao último pedaço de dignidade, até onde só nos apetece meter os cornos debaixo de um comboio por sermos quem somos. O meu amigo mais próximo dizia-me que ela era tóxica. Ela percebeu que ele não a tratava com a bajulação de outros, ainda que educado. Ela sabia que ele apenas a tolerava por ser meu amigo. Não descansou enquanto não me afastou dele. Os acessos de raiva e chantagem e falar mal, não funcionaram. Então recorreu ao que sabia que funcionaria. Tive bom sexo por cinco meses, foi o prato de lentilhas pelo qual vendi o meu amigo. Ao longe vejo as pessoas que nem se aproximam da linha, e alguns passageiros saíram da composição. Pouso o pé dela gentilmente e continuo rastejando como que cumprindo promessa, e ao colocar a mão no carril algo escorregadio. Era um bocado de intestino. Que serpenteando pelo chão, mostrava o caminho como migalhas de Hansel e Gretel para a casa de uma bruxa. No fim do caminho estava a sua bacia, ancas sem pernas e torso. Agarrando-a pelas nádegas viradas para o Sol, puxei-a para mim e a sua vulva se revelou no lado oposto, própria com aquele fiozinho de pelos que dividia os hemisférios, culminando às portas do clitóris, já meio esbranquiçado e oculto pela falta do sangue que secava aos elementos. Nunca havia sido tão minha como agora, inerte e sem cérebro ordenado por demónios. Quantos outros a guardaram assim, como eu agora, antes e depois de mim. Daria tudo para ter essas memórias, para a recordar, agora que sei que não a voltarei alguma vez a ver. Passaria pelo tormento de ter de a ver fazer amor com vontade não negociada e com outros. Se isso ao menos me trouxesse alívio da sua ausência. Quanto mais lhe dizia que tinha saudades dela, mais ela me desqualificava pela minha fraqueza em admiti-lo. Um certo desdém no seu olhar como se acreditasse que a minha vontade de estar com ela era apenas por causa desta bacia que sustento no ar entre as mãos. Como se fosse possível a um frouxo como eu distinguir a mulher da vulva, preocupar-me com ela, saber se está bem, não a deixar só numa altura de aflição. Mas o despeito dela só aumentava. Como se as minhas interpelações para saber dela fossem caprichos egoístas da minha parte. Não preciso de a foder para querer estar com ela. E ela nunca respeitou isso. Ela própria reduzia-se ao seu maior instrumento. Achava sempre que era desculpa minha para disfarçar a minha real vontade, para não parecer mal. IV O decorrer dos 7 anos pode ser analisado pela bacia de Noémia. Engodando-me com o que achava ser novidade para mim, a partir de ideias feitas a partir de outros. Que não se negava a experimentar anal, mas lá ao longe, no fim do arco-íris, quando as condições suficientes nunca estariam, saiba-se lá porquê, reunidas. Quando me via desligado, insistia em imagética explícita, para me excitar em torno da ideia, dando-lhe de novo o poder sobre mim através do seu corpo e da minha imaginação. Percebi isso à segunda vez que mo fez. Falava nisso com demasiado entusiasmo, para me arrastar, e depois negava-se monotonamente. Eu sabia que era treta porque certo dia a fazer administração remota do trabalho para o computador de casa, que tinha microfone ligado, a ouvi descrever proezas com natais passados, às amigas que a tinham ido visitar. Não me ralei, retiro mais prazer da observação solitária do que faz os outros viver e funcionar, que propriamente os seus jogos em relação a mim. Talvez a intenção fosse boa. As exigências, críticas e reclamações não serviam apenas para me reduzir, controlar…primeiro para aferir quão conas eu era. Depois para me castigar por ser esse conas. Depois para se vingar da vida em mim, por lhe ter saído em sorte, um conas. Mas apenas via que me fodia o juízo para me tornar melhor e salvar a nossa relação, num raciocínio infantil de que se eu me tornasse no que ela achava querer, alguma vez nos espalharíamos pelo futuro eterno. Seu ego mascarava assim a necessidade de indignação e o ressentimento com uma existência que não se sonhou que levasse ao ponto presente. E nada como o pobre diabo ali à mão de semear, que não se vai embora, pois mais ninguém o quer, ou ele nunca arranjará alguém tão bom como ela. Mas o que mais me magoava em segredo eram os seus demónios. Noémia tinha sofrido em criança, uma violência muito grande, abjecta. Que nenhuma criança pode e deve sofrer. Ninguém deve, mas especialmente uma criança, que a transportará para a cova depois de adulta. A violência provocada por quem acabaria por morrer anos mais tarde num bairro de lata parisiense, provocou-lhe uma desafectação, instrumental para desligar o ego da realidade que o mutilara. A desafectação tornou-se segunda natureza, e a segunda natureza, por força de lixiviação do ego, tornou-se virtude. A virtude tornou-se bitola, a bitola com que media os carris alheios. Quem não pensasse ou reagisse como Noémia, participava como coautor de um mesmo crime contra o ego da criança violentada. Reagia violentamente ao atropelo da sua ipseidade, percebido ou real, projectando nos criminosos o ónus de um crime repartido pelas décadas, mas como Caríbdis enchendo e vazando regularmente. Esse demónio levava a que os mutilasse com língua afiada até à total exaustão emocional, queimando em enxofre qualquer momento de coexistência com ela. Eu ou ia ao café, ou para casa dos amigos que me sobravam e por vezes ficava até às tantas da manhã, só para não ter de ir para casa. Amigos me diziam, o que pensavam ao fim de umas cervejas, é uma cabra sem carácter, só tem aspecto. O aspecto é a mais eficaz lixívia, pode fazer a merda que quer que se sente sempre inimputável por detrás de um rosto bonito, e da validação que qualquer portador de pila lhe dará assim que ela deseje. Crianças mimadas que se safam sempre com as suas traquinices, por serem crianças. Assim ela, carte blanche para tudo na vida. Tão certa de que eu não me ia embora, e se fosse que nada se perdia. E foi assim que sempre a usaram. Continuo a rastejar. Vejo carros da polícia e dos bombeiros. A 200 metros da última carruagem, vejo uma porção de massa encefálica. Pego nela, para nojo de algumas dezenas de observadores que se juntaram em redor. Seria neste pedaço de matéria que ela guardaria as boas memórias de amor por mim? Passando o pedaço de carne inerte de mão para mão como que se uma ampulheta se tratasse, lembrei que há 30 anos morava um gajo naquela zona da Nacional 10, que tinha tido um pastor alemão que amara muito, e que quando o cão morreu, o enterrou, cortou uma orelha, assou e comeu. O gajo era respeitado e por isso ninguém fez pouco dele, como que percebendo intrinsecamente que havia algum motivo válido para essa acção. Não sei porque me ocorreu isto. Noémia, meu amor, não vais embora sem fazer parte de mim. Levo a parcela de neocórtex à boca e mastigo a carne ainda tenra e tépida, alguns do que me olham vomitam, outros tentam aferir a minha sanidade mental, olhando-me. Dois polícias pararam a 40 metros de mim, olhando o que eu estou a fazer. A fazer do meu amor, uma parte de mim, um pedaço de rim, de músculo, o que seja. O que foi Noémia fará parte de mim, unidos até que a morte ou um comboio nos separe. Será que esta parte de cérebro que engulo, era a casa dos demónios da minha Noémia? Daqueles remoinhos que lhe determinavam todo o comportamento de viúva alfa, de ser humano que se afoga na existência? Em águas sem pé, ensinaram-me na tropa, a abordar quem se afoga, por trás. Aquele que morre não hesitará em matar para se salvar, sem muito pensar nisso. Imersos mergulhando, o mesmo, o que se afoga, é sempre abordado com cuidado, o desespero vira-se sempre contra quem tenta salvar. Abordei Noémia pelo ombro, nas suas costas, nadando em torno dela e esperando que recobrasse o fôlego. Ela só me viu como algo que não a salvando do afogamento, prolongaria uma medíocre estadia na superfície. Tão condenada a olhar para as sombras na sua parede, não tinha olhos para mim. Olho agora eu para minha parede, só, sinto a falta do meu arsénico, e lembro apenas o que de bom ficou para trás, quando lhe fazia festinhas no rosto, e ela sentindo-se amada, revelava um pouco do verdadeiro ser que era, espreitando pelas janelas da alma para a luz cá fora. Meu amor entrando pelos seus olhos apaziguava alguns demónios que deixavam de tapar a luz para dentro da sua alma. Não a salvei, nunca a poderia resgatar ao afogamento, do desespero para seus pulmões. Eu queria, era essa a minha maior origem de desespero, o querer-lhe bem e não lhe poder. Que mal há em querer o bem de quem queremos muito. Pelo cristalino ocular quando tinha sua cabeça viva nas minhas mãos, conseguia ver monstruosos demónios mexendo-se por detrás da porta em que tocamos à campaínha e quem está lá dentro não quer abrir, mas conseguimos perceber estar alguém em casa. Não sei o que foi, o que a levou a fazer aquilo naquela tarde. Será ter sido ver-me feliz consigo, por alguns momentos? E por achar não merecer ela ou alguém ser feliz consigo, caminhar para o Nada? Termino a refeição, sinto bocados de carne nos dentes. Uma mão pousa no meu ombro e uma voz diz, «-É melhor irmos ali para o carro-patrulha.» Levanto-me, não sei porque me tremem as pernas, sei que me doem os olhos de tanto chorar. Retiro um pedaço de cérebro resiliente, de um dente chumbado que tenho. Olho para o pedacinho de Noémia na ponta do meu dedo, e exclamo rindo, «-Amor, amor, eu não deixo ninguém fazer-te mal.»
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