I Perguntei-lhe se queria ir beber um café. Sorriu escancaradamente, por detrás do guichet da recepção do ginásio que frequento. Fiz de propósito para criar tensão com alguém, porque a rotina deprime-me, e se me envolver numa situação confrangedora com uma funcionária que vejo todos os dias, crio ali uns picos emocionais que ajudam a diferenciar todos os dias que se assemelham cada vez mais, até ao dia em que a amante morte, me enviar um sms a dizer que quer estar comigo. Eu, o meu próprio constrangedor para me forçar a sentir vivo. «-Podemos ir almoçar, saio às 13.» O tiro saiu-me pela culatra. Fui simpático, «-Ok, saio do treino a essa hora.» A última hora, passada a nadar, passada foi a pensar, se ela tinha dado alguns sinais, e que eu inconscientemente tenha gravitado para ela longe do meu propósito consciente de criar confusão na minha vida interior. Nos últimos 200 metros, já nem queria sair da água. Ter de ir com alguém que não conheço e com metade da minha idade, não que essa merda importe. Prefiro a conversa com miúdas novas, que com as balzaquianas, que muito geralmente ficaram presas num ponto passado da sua viagem na vida. Estou a ser talvez injusto. Esqueci-me de respirar e quando venho acima engulo o segundo pirulito do dia, água com cloro e vestígios púbicos. Sento-me na borda da piscina, tiro os óculos e a touca, olho para a água e pergunto: «-Mas és paneleiro? Não é uma miúda gira? É? Então deixa-te de mariquices, pá, és um homem.» O cabrão do reflexo tinha razão. A dúvida só me prova, o quão alienado e magoado emocionalmente ainda estou. E fisicamente, porque passei meia hora a mais no remo, a dor muscular já vem no correio. Ao passar o torniquete, vejo que ela já me aguarda, rio-me e convido ‘-Vamos?’. Ela acena que sim, e digo que vou colocar o saco no carro. Há um restaurante ali perto, que eu conheço, e que é simpático e serve bem. Ela percebendo qual o restaurante, diz que não, que prefere o outro, do outro lado da Avenida de Berlim. Olhei para o dito estabelecimento e pareceu-me demasiado formal para o meu gosto. Gosto de comer comida e não peneiras de peneirentos. Algo em mim, rasteiro, fazia por convencer a ir, por causa da gaja, de rabo de cabelo espartano, preto e comprido, olhos de amêndoas azuladas que espalham uma alegria formatada em todo o redor. Caramba que boa máscara para esconder uma personalidade dentro. Calças de ganga bem juntas às pernas torneadas, e um blazer turquesa sobre uma blusa branca desabotoada até meio, e o peito dividido por um colar de lantejoulas. Enquanto eu observava o museu ambulante de bugigangas decorativas femininas, e tentava perceber a intenção por trás, o semáforo fica verde e ela pergunta, «-Mas afinal?» Sentámo-nos, pedimos, e pouco ou nada consegui extrair dela, quem era, do que gostava, nem sequer se trabalhava ali há muito tempo. Eu estava com uma sensação que ela estava a fazer algum frete, que tinha pressa em sair dali, não fossem as garfadas atulhadas de comida, que dificilmente ingeria mastigadas. Perguntei se só tinha meia hora para almoço. Disse que tinha uma hora e meia. Foi 3 vezes ao buffet. Porra, miúda de alimento. A cada pergunta minha que rompia o silêncio total, uma resposta críptica e telegráfica, como se respondesse por cortesia num contexto qualquer que eu desconhecia. Tão rapidamente respondeu que queria ir almoçar/cafezar, e, no entanto, estava aqui com uma postura, francamente medíocre. Outrora exclamaria para mim, que as mulheres não são de entender. Havia uma razão, eu é que não estava a chegar lá. O guacamole era fantástico. Assim do nada, ela levanta-se, e diz que tem de ir, que depois nos vemos. Eu fico a olhar para ela, já de costas e exclamo ‘-Andreia!» Ela vira-se para trás, e vê-me fazer-lhe o gesto do dedo que chama, contorcendo-se como larva de mariposa. Aproxima-se. Pergunto-lhe se não come sobremesa, que paga o mesmo. Ela responde ‘-Mas não pagas tudo?’ «-Não. Eu pago o meu, e tu pagas o teu.» «-Mas tu convidaste-me… e é sempre o homem que paga…» O meu fusível auditivo fundiu ao mesmo tempo que o entendimento sobre o comportamento dela recebeu a luz do esclarecimento. Parece que ela se indigna e fala alto, chamo o empregado com o gesto de pagar conta e ele traz o multibanco. Saio pela porta, a rir-me na exacta proporção do choque na cara dela. Ao fechar a porta exclamo lá para dentro, «-Até amanhã!» A situação deixou-me bem-disposto, ri-me várias vezes a caminho de casa, e ainda me cruzei com ela quando estava a sair com o carro do estacionamento, e fez-me aquela cara, que fazemos quando queremos manifestar aos outros que os desaprovamos imensamente. II Liga-me um amigo: «Rabeta, queres ir tomar café?» Respondo «-Bora papa-pilas, encontramo-nos no E. Leclerc daqui a 20 minutos.» Encostei-me a um pilar, que ele para variar chega atrasado, contemplo o Tejo, e relembro quantas vezes a paisagem foi alterada no meu tempo de existência. E no de outros que me precederam a respirar este ar, este Sol, esta Terra. Em tempos passados. Quando chega ambos nos desmanchamos não com o fenómeno do sugardaddying, mas com a minha ingenuidade. Diz-me ele «-Ao menos tens moral para abordar qualquer gaja!» Mal sabia ele que a abordagem era efeito de uma causa prévia. «-Meu, havias de ver, o ar de choque por eu não fazer o que é expectável. Achava-se com mais direito ao almocinho, que ao ar que respira e água que bebe.Não vou criticar, pareço os velhos, mas digo-te uma coisa, isto cheira muito a prostituição de má qualidade para o cliente. A Deco devia fazer alguma coisa!» Mais uma sessão de gargalhadas, só interrompidas quando a sua ex mulher passa, no estacionamento onde nos encontrámos. Passou, altiva e como se fôssemos dois montes de esterco ressequido ao Sol de Inverno. Eu percebi algo de anormal se passando, pelo olhar dele, pois eu estava de costas para ela. O olhar despreocupado e de criança em plena celebração de existência, tornou-se pesado e uma dor pareceu emergir do âmago mais sensível da sua pessoa, tão vincado que sem palavras percebi da carga da situação. Tive compaixão por ele. Reconheci precisamente aquele olhar. Já o vira n vezes ao espelho. III Se me visses na rua falarias comigo? Que se poderia dizer entre duas bocas unidas em tempos passados, em quimeras pessoais de futuros comuns que nunca se chegaram a desenhar? Como não engolir em seco perante a presença de quem nos destroçou por completo, sem qualquer remissão de pena, sem qualquer consciência do mal causado, das noites de choro asfixiante, onde com gritos de lamento se uiva ao Céu, porque vim eu para aqui passar por isto? Quando o despejo da tua vida se segue de uma vida plena, onde eu não passo de um pormenor apenas lembrado quando limpas a tralha velha e encontras uma fotografia de nós os dois. Como se alguma vez fosse possível asfixiar o monstro que cresceu de mim por ti, gigantesco e que lembra todos os detalhes do teu rosto, o cheiro da tua boca quando comias sultanas, o cheiro do teu cabelo quando o espremias por entre a toalha do banho. Como lamentávamos a morte dos nossos cães, o teu envenenado, os meus de velhice e decrepitude, e o quão concordávamos que indo, levavam uma parte de nós, as nossas melhores partes. Passo os dias a tentar não pensar neles, e a não pensar em ti. O resultado é o mesmo, choro. Às vezes sabe bem, tirar o peso de dentro, que me constrange de forma aflitiva e total, apenas com uma nesga de oxigénio, para permanecer vivo a experienciar a angústia, não da tua ausência, mas da tua capacidade de cortares a direito a minha vida da tua, como se excisa uma metástase que promete mais umas migalhas vida depois de retirada. O verdadeiro acto criativo é este de pegar nos meus bocados estilhaçados pelo chão à tua passagem, e refazer-me de novo, de forma a não parecer tanto um tumor, e mais um ser humano. Menos um bocado de carne viva, que se replicou para longe do teu amor e apreciação, sem culpa intrínseca senão existir. Como se explicam amores que desaparecem apenas porque as pessoas mudam, e não por falta de estima de uma das partes? As decisões tomadas a dois acabam sempre no capotamento decorrente de uma decisão de uma das partes. Mas nem é por teres ido. É por me teres esquecido. É por me teres cortado da tua vida sem qualquer possibilidade de ter voz, não para te convencer a ficar, mas para me sentir mais que o objecto transitório no teu caminho para os braços de outro. Tiraste-me de ti, disseste que a culpa era minha, disseste coisas cruéis de mim, para te convenceres a ti mesma, sem pensar no impacto em mim, como alguém que se aquece num braseiro na noite fria com o outro a arder. A parede fria da indiferença, de um sair do caminho, para magoar. E nunca ganhar a coragem de falar. Mas que há a falar. Nada. Há que falar, mas nada a ser dito. Por mais que olhe para trás não percebo que crime mereceu tal castigo. Da tua cobardia, ou da forma como encaras as relações com as outras pessoas. E eu não cheguei a ser pessoa para ti, passas pelo estacionamento da vida, voluntariamente alheia à minha existência. O meu crime foi só amar-te. Felizmente esse amor está enterrado.
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