I Ter de ir a Castelo Branco. Não me apetecia, já lá tinha ido umas sete vezes este mês, e apetecia-me fazer outra coisa que não conduzir. Ou ir de comboio. Pensando melhor, o meu enfado nem era com a viagem, mas com a certeza de que o destino era o mesmo, uma tarde ou um fim de semana a satisfazer a peça teatral de outro. A Mónica vivia para aquilo que os pais pensavam dela. Como lhe estava vedado algum tipo de introspecção – boa parte das mulheres temem o abismo – aferia o seu próprio valor e sucesso na vida, pela imagem de si reflectida nos olhos dos pais. Se os pais a continuassem a ver como a princesa que para eles sempre seria, bastava-lhe. Não via isto como manipular a percepção dos pais, mas como agradar-lhes e fazê-los felizes e orgulhosos de a terem como filha. Só isso interessava. Desde o primeiro dia que dava para perceber que eu, fazia parte de um possível esquema de dignificação da vida. Dava para apresentar a família e amigos, não sendo marreco ou desdentado. Mas o sexo simiesco de desejo puro foi apenas um prenúncio em forma de gancho para me capturar na ponta do anzol, e o sexo inanimado do aqui me tens aqui me levas, mero cumprir de calendário para que eu me fosse embora. A forma clássica de utilização do próprio corpo, por via do desejo de outro, para adoçar a visão de outros. Que nome se dá a organismos que captam de outros para dar aos seus? Parasitas? Predadores? Não posso criticar. Fiquei. Sou pior, tirei de mim para dar a ela. Organismo autofágico sou, cúmplice da minha própria relativização. Portanto não posso censurar a falta de respeito da parte de outro, se eu próprio me desrespeito a mim? E pelo quê? Por uma descarga de sémen que no final sabe a desespero? Pelo controlo da percepção dos meus progenitores? «-Ah, ele tem mulher, está orientado na vida, segue o caminho que os nossos egrégios antecessores seguiram, portanto está certo.» Matava no berço as minhas inquietações espirituais e intelectuais, para poder viver na casa da mediania, sabendo de perfeita mão, que o meu bairro era outro. II As carícias dela à mesa sabiam a esferovite aguado. Nenhuma corrente emocional era transmitida pelas suas mãos, para mim, por mim. Meras coreografias para os pais verem a sua dedicação e enamoramento, de forma a que posteriormente, a velha desculpa do ‘apaixonada estava’ servisse de desculpa se aparecesse um melhor, e o promovido a descartável fosse etiquetado com ‘não serve’. Os pais lembrariam de facto as coreografias de paixão, e anuiriam com a nova narrativa do ‘ah ele é um madraço, ou cheira mal dos pés, ou limpa o nariz com os dedos dentro do carro’ – ou qualquer outra desculpa que surja para desclassificar a fralda humana usada. A filha é imune a defeitos de carácter, pois o verdadeiro, o valorizado é a razão, e o ‘amor’, no seu carácter de sentimento emocional excessivo, ganha foros de verdade absoluta. Bem utilizado, o ‘amor’ é o mais poderoso desengordurante alguma vez inventado pela Humanidade. Para os pais, para os seus olhos, a filha estaria sempre correcta, a adesão emocional confere verdade a uma ligação, cuja racionalidade vai corroendo. O gajo é pacato, não vai a lugar nenhum? Veste roupa velha e conduz óxido de ferro? É portanto um incapaz cujo único destino merecido é o descarte, racionalidade que vence por fim a força do ‘amor’. A Susana, por exemplo, tornava-se propositadamente chata, narrando à mãe que eu era lindo e tinha cara de Tom Cruise, e era muito inteligente, e que a fazia sentir com borboletas na barriga. Isto à hora de almoço, reunida a família em torno da mesa. À noite em sua casa, trocava de roupa com a porta da rua aberta, para que os habituais mirones a pudessem espreitar melhor, a ela que era a anedota, infelizmente, da terra. Não há aqui vitimas, dança quem quer e quem pode. A viagem de carro, onde passa horas olhando para os pinheiros sem algo dizer, é um mero cumprir de calendário numa vida que abomina. Eu, o prémio de consolação em relação ao gajo que comeu uma vez na festa de espuma em Ibiza. Diz o povo, tanto escolheu, que ficou com os restos que sou eu. A bem dizer nem escolheu, nem sou restos. Passou de ‘paixão’ em ‘paixão’ atrás dos altos de endorfina, cada vez mais baixos e exigindo doses maiores para se sentir bem consigo mesma, através dos olhos de outros, que é o que é ser-se desejada. Ou se calhar, viveu uma vida a fugir, sem se ligar decentemente a ninguém, por falta de amor próprio, por acreditar ser-se a merda que se é, só o sendo porque nela se acredita. Apareceram baixos, gordinhos, desdentados ou engatatões de colónia barata. Nenhum com o aspecto respeitável e promissor de gajo para casar. E como a sua felicidade vem por intermédio da opinião que dela os pais têm, a avaliação, a entrega, e a escolha de parceiro, decorrer do que ela pensa que os pais pensam. Conduzindo entregue à minha solidão pela estrada nacional ladeada de eucaliptos e alcatrão solto, parto o juízo a tentar perceber como posso gostar de alguém e ser tão infeliz ao ponto de não conseguir escolher o melhor para mim e largá-la. Comodismo, covardia, ou falta de amor próprio, os cúmplices do costume. As conversas reduzidas a mínimos, vejo que ela já iniciou o corte emocional que expõe uma avaliação da nossa pessoa como sub-merecedora do menor esforço. Agora é só uma questão de descobrir quem é esta pessoa realmente, já que nos últimos 6 anos de casamento, sei que tenho vivido com uma personagem por ela composta, tudo parte de um complexo plano de levar àgua ao seu moinho. Sei também que no final, mesmo no final de contas, sentirá o abismo sussurrando-lhe que viver através de farsas que não consegue evitar, não é viver. É fingir. III Deixo-a em casa dos pais e vou ao café que frequento quando lá estou e encontro o Paiva, que é o gajo com quem me dou melhor, e com quem troco impressões sobre este tipo de assuntos, apesar da escassa convivência entre ambos. Passou a respeitar-me, porque uma vez caído de bêbedo, deu em bater na mulher na rua, e eu impedi-o, manietando-o. No dia seguinte fui encará-lo para o caso de ter algum ressentimento comigo, e demos a trocar ideias sobre o bicho de estudo preferido, as mulheres. Com a 4ª classe, mas dotes de observação admiráveis, deu-me lições de contextualização acerca dos porquês, dos comportamentos e das manhas que não conseguem evitar. Falamos sem qualquer tipo de animosidade sobre elas, como dois cientistas olhando para o mesmo tubo de ensaio. Gostamos de mulheres e de perceber como funcionam. «-Então, vieste cá cumprir calendário?» pergunta-me ele com uma mini na mão. «-Pelos vistos. Acho que agora é aguardar que apareça algum prospecto melhor na costa. Ela já cortou comigo na sua cabeça, e nem estou para tentar reverter o processo.» «-Nem vale a pena João. Agora é melhor arranjares outra e não te deixares afectar pela imagem desta, a verdadeira imagem, que só conheces agora quando nenhum interesse tem em fingir.» - retribui ele depois de beber a cerveja toda com goela de pato, e depois da costumeira celebração quando o faz «-Sem espinhas, ahhhh!» «-Sim, agora é por demais evidente que já só desempenha peça para os pais, sei lá eu o que vai contar de mim para justificar a ruptura…» «-Se calhar a verdade!» diz rindo. Causa-me uma gargalhada que rio-me até ficar vermelho, pois não me posso isentar de ter defeitos e de ser também por ela estudado consoante o seu interesse. De como posso ser útil na sua vida, é a sua motivação de estudo. E que posso aprender com ela, é a minha. «-Com toda a certeza, e são muitos.» digo gracejando a sério. «-Solipcistas, são solipcistas.» - desabafo eu com termos caros para não dizer que só pensam no seu cú. «-Claro João, nem podia ser de outra maneira. Ou achas que seria útil no tempo daquelas pedras que vens para aqui estudar nas grutas, que elas se ralassem com o parceiro, mais que com a criança? Nunca tínhamos chegado até aqui. Se te queres queixar, o que é uma perda de tempo, queixa-te da ilusão geral de que os sexos são estritamente iguais, e que o amor perfeito é comum a homem e mulher.» Por amor perfeito queria ele dizer amor idealizado ou amor romântico, uma merda inventada por homens criados na guerra que tinham de ter vazão em tempo de paz. Nada como a dedicação a uma causa superior e transcendente na figura da deusa feminina. Como sempre, eu levando banhos de realidade. Em casa os risos sem conteúdo, e eu sempre iniciando a cópula, que acabada me faz sentir pior que antes, mendicante, esperando encontrar na que jaz ao meu lado, o mesmo entusiasmo pela oração que acabámos de fazer. Só para levar outro banho de realidade. O de que qualquer vingança saloia assente numa remissão futura, é apenas o meu ego a falar. Vivo através dos olhos dele, como se fosse meu pai e mãe.
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